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“Mitologias paralelas”e “Tédio e violência”

No documento Rosalume (páginas 128-143)

Este livro é para aqueles que, como eu, vivem nos intervalos de diferentes e por vezes incompatíveis mitologias – narrativas épicas que ajudam a conferir sentido à nossa breve vida na terra. Algumas destas mitologias tiveram a sua origem em lugares e tempos remotos, enquanto outras são uma criação do mundo moderno.

Estes mitos que herdámos do passado, independentemente de terem tido a sua origem numa religião monoteísta, como o judaísmo ou o cristianismo, ou numa tradição não teísta, como o budismo, partilham a visão que a vida humana só é totalmente inteligível quando encarada como parte de um vasto drama cósmico que a transcende. Ambos comunicam uma crença fundada em poderes ocultos – o serem divinos ou kármicos é irrelevante –, responsável por nos terem lançado neste mundo para enfrentarmos a tarefa intimidadora de nos redimirmos para toda a eternidade.

Os mitos da modernidade são de tal modo tangíveis que é difícil reconhecê-los como mitos. À semelhança das pessoas que vivendo em sociedades pré-modernas, cristãs ou budistas não encararam o seu mundo de forma mitológica, também nós somos incapazes de reconhecer as mitologias que sustentam o sentido da nossa existência e a natureza do universo em que vivemos. Um mito dominante da modernidade, que se impôs no Ocidente nos últimos dois séculos, é o que é fornecido pelo conhecimento científico do mundo. Tão completa é a sua explicação sobre as origens do universo e da vida, tão extraordinária é a sua capacidade de predição, tão espectacular é a tecnologia decorrente da compreensão física do mundo, que somos levados a rejeitar que haja algo de mítico nessa forma de conhecimento.

Mesmo que aquilo em que acreditamos, com base no conhecimento científico, possa ser empiricamente verificável, tal não impede que não opere como mito. Por mais “verdade” que contenha a moderna visão do mundo, ela desempenha, presentemente, nas nossas vidas, uma função semelhante à visão dominante pré-científica das pessoas que viveram em culturas pré-modernas. Também a visão científica explica como é que a vida humana só se torna totalmente inteligível se a encararmos à luz da sua participação num vasto drama cósmico que a transcende. Também ela se fundamenta em crenças. Cremos que o universo explodiu a partir do nada há quinze biliões de anos; cremos que os humanos evoluíram a partir de formas primitivas de vida por efeito de uma selecção fortuita de mutações genéticas; cremos na existência de electrões e de quarks. Mas seremos capazes de demonstrar a verdade subjacente a qualquer uma destas proposições a alguém que não acredite nelas?

O conhecimento humano é invariavelmente limitado e parcial. Por mais inteligente e melhor informada que uma pessoa seja, é muito pouco o que ela pode razoavelmente conhecer com total certeza. Tudo o que conhece é necessariamente mediado pelas suas faculdades, os seus sentidos, a sua razão, o seu cérebro. É-lhe impossível aceder a um estado não mediado, independentemente dos seus instrumentos de percepção e do seu organismo, a partir do qual possa verificar se o seu conhecimento não imediato corresponde à realidade em si. Por mais perfeita que seja a sua explanação, a realidade

     

permanece essencialmente misteriosa. E acerca das perguntas fundamentais, qual o sentido de nascer e morrer, de fazer o bem e o mal, as ciências naturais nada dizem.

Os mitos ancestrais têm, porém, raízes profundas. E continuamos a sondá-los para responder a essas perguntas. O ateísta e o materialista confessos sentem-se desconfortavelmente agitados por passagens da Bíblia. O budista converso descobre mais sentido do sagrado numa igreja em ruínas duma aldeia em Inglaterra do que em todos os mosteiros que visitou no Tibete. Em momentos de desespero, não deixam, porém, os dois de invocar o deus que abandonaram.

Estou ciente, enquanto cidadão ocidental que tem praticado o budismo ao longo dos últimos trinta anos, das mitologias paralelas que no meu íntimo disputam a minha atenção. Não tive uma educação cristã, mas reconheço que interiorizei os mitos e os valores do cristianismo do meio pós-cristão, liberal e humanista em que me situo. O meu temperamento inclina-se mais para as artes do que para as ciências, mas não deixo de me entusiasmar com a emergente visão científica do mundo que informa a sociedade de que faço parte. A minha vida adulta tem sido dedicada a traduzir textos budistas, a ensinar meditação e filosofia budistas, a escrever livros que apresentam uma interpretação contemporânea do budismo. E enquanto me debato por compreender e articular os ensinamentos e os mitos da fé que abracei, não deixo porém de prestar atenção a outras vozes que também me animam.

No âmago do despertar do Buda está o reconhecimento contra intuitivo de que a experiência humana é radicalmente transitiva, insegura e contingente. Siddhattha Gotama (o Buda histórico) compreendeu, pela atenção firme e não sentimental que votou à sua vida e à vida em seu redor, que nenhum “Eu” essencial se sustenta ou permanece em si, e apercebeu-se da sequência integrada de cores, formas, sons, sensações pensamentos e sentimentos que aparecem e desaparecem a cada instante na consciência. Esta surpreendente intuição revolveu-o até ao âmago daquilo que achava que ele próprio era. A convicção instintiva de ser um eu imutável e isolado extinguiu-se. A vida passou a ser apenas uma surpreendente experiência encadeada de processos contingentes, manifestando-se mediante complexas sequências de causas e efeitos, sem nenhum princípio discernível e sem nenhum poder divino que as orientasse para um fim pré ordenado.

Para Gotama esta revelação de uma realidade que para ser entendida não precisava de um eu intrínseco ou de um deus foi profundamente libertadora. Libertou-o das compulsões e dos medos auto centrados que o tinham aprisionado em infindáveis e aparentes ciclos de tédio e angústia. Gotama referiu-se a esta libertação como “nirvana” – literalmente um “extinguir” dos “fogos” daquele descontentamento existencial. Noutro contexto, referiu-se a essa libertação como um “vazio”, um espaço aberto em que a ideia de um “Eu” permanente e isolado deixa de poder exercer a sua ilusão. Este vazio é “a morada de uma nobre pessoa”1 donde se pode ir ao encontro e responder ao mundo

numa perspectiva despojada mas cuidadosa. Um vazio gélido e niilista em que o sentido e o valor tivessem sido extintos é o exacto oposto do que o Buda quis dizer com “vazio”. Para ele, uma compreensão do vazio significou transformar um ciclo compulsivo de

                                                                                                                         

 

     

medos e anseios num caminho de sabedoria que catalisou a liberdade interior e a compreensão sensível. Em vez de uma ausência de significado e de valor, o vazio é uma ausência do que limita e do que impede as capacidades de uma pessoa realizarem o devir potencial da vida humana.

Pensar o vazio como uma dimensão subtil da realidade ou como um estado mental místico é correr o risco de o converter num outro fetiche ou num objecto de raras virtudes religiosas. Nagajurna, o grande pensador indiano do século II, estava profundamente ciente deste problema:

Os Budas dizem ser o vazio Uma opinião a renunciar. Os crentes no vazio São incuráveis2

O vazio não é algo sagrado em que se tem de acreditar. É um “esvaziar”, é um abrir mão dos estados compulsivos de fixação que nos encerram num eu que, qual célula fechada, aparenta existir isolado e separado do turbulento fluxo da vida. Este esvaziar leva a que se abandonem hábitos mentais constrangedores e embaraçantes, permitindo – qual barreira removida de um rio – que a corrente represada da vida flua livremente.

Abrir mão, mesmo momentânea e initencionalmente, daquela desesperada e obsessiva fixação ao eu não te aniquila, mas abre-te para um mundo essencialmente fugaz e contingente que partilhas com outras criaturas ansiosas como tu. É algo que pode ser assustador, porque a única certeza que se tem neste mundo é que nalgum momento nele morrerás. Compreendes que o teu eu não é algo invariável ou uma essência pessoal, mas uma história confusa e errante que avança para a sua conclusão. Isto pode fazer com que regresses precipitadamente às crenças, percepções e rotinas familiares em que te sentes seguro. Mas, uma vez iniciado o processo de te esvaziares, agarrares-te a tais consolos é impedir que te sintas inteiramente vivo. Tornar-se vazio, como repete Nagarjuna, é ir ao encontro da contingência nua e crua da própria vida. O desafio do vazio é mergulhares na corrente da vida, em vez de vagueares pelos seus contornos.

“Contingência” é uma tradução concisa e razoavelmente fiel do conceito budista paticasamuppada (geralmente traduzido por “origem dependente”). Tudo o que é contingente depende de algo para existir. Como tal, podia não ter acontecido. Bastava que uma dessas condições não se tivesse materializado e algo de diferente teria ocorrido. Fazemos planos de “contingência” porque a vida é cheia de surpresas e, frequentemente, por mais minuciosos que sejam os nossos preparativos, as coisas não correm como o previsto. A complexidade diabólica dos sistemas vivos torna difícil prever como um dado sistema (seja ele uma pessoa ou um bando de pássaros) se comportará no próximo momento, menos ainda no próximo mês ou no próximo ano. A contingência revela uma liberdade caótica no seio de acontecimentos ordenados por uma dinâmica causal. Por mais tentador que seja invocar a mão de Deus, o karma, ou o destino para atribuir uma ordenação oculta ao que parece aleatório, abraçar a

                                                                                                                         

 

     

contingência requer a vontade de aceitar o inexplicável e o imprevisível em vez da complacência de buscar a anestesia confortável da metafísica.

O oposto da “contingência” é a “necessidade”. Por mais efémera e insignificante que eu reconheça ser esta minha vida humana, não consigo desembaraçar-me da convicção intuitiva que, em última instância, a minha existência é necessária no esquema geral das coisas. Ao prestar cuidadosa e fundada atenção à natureza contingente da experiência, a prática de meditação budista desafia o sentimento instintivo que somos, nas palavras do Satanás de Milton, “auto-gerados, auto-realizados / Pelo nossos ágeis poderes.”3 Ao

erodir este sentido de que somos seres necessários, acabamos por intuir como a pessoa irrepetível e sem precedentes que nós somos emerge de uma matriz sublime de múltiplos acontecimentos contingentes – nenhum dos quais necessitava de facto ter sucedido. Obtém-se um profundo entendimento do vazio do “Eu” não por eliminação deste, mas por se entender que ele é contingente, antes de ser necessário.

Quando, na perspectiva do vazio, se dissolve a obstinada e rígida solidez dos eus e das coisas, abre-se um mundo contingente, fluido e ambíguo, fascinante e aterrorizador. Esse mundo não só se projecta diante de nós apenas com temível beleza, complexidade e majestade, mas um dia devorar-nos-á no seu rasto tumultuoso com tudo o que nós estimamos. A infinita e tocante beleza da criação é inseparável da sua diabólica destruição. Como viver num mundo assim, turbulento, com sabedoria, tolerância, empatia, disponibilidade e não-violência é o que, ao longo dos tempos, santos e filósofos, se empenharam em articular e realizar. O que impressiona na proposta budista é que, em vez de postular um “Eu” imortal e transcendente, imune às vicissitudes do mundo, Buda insistiu em que a salvação consiste em abdicar dessas fantasias consoladoras e, em vez delas, abraçar a própria essência da vida que nos destruirá.

Este livro é uma meditação sobre algumas destas antigas interrogações. Grande parte dele é uma interpretação da visão budista, dos seus mitos, doutrinas, filosofia e prática. No entanto, por eu ser alguém que se reconhece a viver nos intervalos entre culturas e tradições, as ideias budistas justapõem-se e entrelaçam-se com material de fontes tão diversas como a Bíblia, Baudelaire, Roland Barthes ou a biologia evolucionista. Muito embora cite as escrituras monoteístas, eu não acredito em Deus mais do que acredito em Hamlet. Mas isto não quer dizer que Deus e Hamlet não tenham nada de válido a dizer. As páginas deste livro estão povoadas de figuras míticas e históricas de várias tradições que me são familiares. O caminho que traço segue pelos intervalos entre diferentes religiões e mitologias seculares que me ajudam a dar sentido à minha vida. Quanto mais avanço, mais suspeito que este caminho não é senão a anarquia dos próprios intervalos.

Tédio e Violência

O génio de Charles Baudelaire foi o de ter reelaborado o mito cristão do demónio à luz da emergente situação crítica duma consciência humana alienada e céptica. Ao fazer o luto resignado pelo fim da era clássica que inspirara Dante e Milton, Baudelaire antecipou

                                                                                                                         

 

     

uma modernidade que se cristalizava na sua pessoa. Compreendeu a presença do diabo como uma intrusão perturbadora no seio de uma cultura secular, auto-centrada. De entre “os monstros que grasnam, rosnam, rastejam e uivam”, ele identifica “um bem mais feio, mais cruel, imundo!”

“Que mesmo recusando gestos ou clamores Facilmente faria da terra um destroço E num simples bocejo engoliria o mundo.”4

É o tédio [l’Ennui], escreve Baudelaire, “aquele monstro sensível”, um composto de frustração e fastio que se agita entre o sentimentalismo auto-piedoso e o devaneio ausente. Trata-se de uma variação moderna do que o Buda designou por dukkha; a temível angústia inerente à nossa condição mortal.

O livro de poemas de Baudelaire Les Fleurs du Mal (AsFlores do Mal, 1857) deu o tom à angústia contemporânea que marca muita da literatura e filosofia produzidas desde então. Em Kafka e Beckett, Kierkegaaard e Sartre encontramos a mesma inquietação reflexiva. Os poemas de Baudelaire são o primeiro passo no caminho que leva ao niilismo estilhaçado de The Waste Land e American Psycho.

Em meados do século XIX, o conceito do Mal comportava ainda ecos da distinção teológica entre o mal “natural” e o mal “moral”. O “mal natural” referia-se a todas as calamidades e catástrofes que ocorrem na vida, enquanto que o “mal moral” denotava os pensamentos, palavras, e acções associados com o pecado, sofrimento e morte. Nos princípios do século XXI, perdeu-se por completo o significado do mal natural. Soa a forçado e a arcaico definirem-se as doenças ou as inundações como “males”. Mesmo no seu sentido moral, o “mal” transformou-se num termo que comporta uma reacção moralista de condenação a quem comete acções abomináveis. A originalidade do discurso de Baudelaire está em que os seus versos iluminam a concepção moderna do mal como um deficiência do eu em vez de o tomar como um traço da própria realidade.

“O erro, a mesquinhez, o pecado, a tolice”, escreve o poeta, “excitam-nos o corpo e ocupam-nos o espírito.”5 Os ímpetos do mal impelem-nos portanto a agir, sombria e

furtivamente, a partir das profundidades obscuras do nosso ser. Satanás deita-se ao nosso lado à noite, com a cabeça “na almofada do mal.” Julgamo-nos indivíduos livres e independentes, mas Baudelaire insiste que o diabo “Embala devagar a nossa alma encantada. E até o metal rico da nossa vontade / Vai sendo evaporado por esse alquimista.”6 “Os cordéis que nos puxam, prende-os o Diabo!”, escreve. “Como um

milhão de vermes, nas nossas cabeças / Enche-se até fartar um povo de Demónios.”7 Os

conceitos teológicos sobre “o mal” e “demónios” adquirem aqui um significado psicológico. São cifras de algo sinistro e perturbador que intuímos obscuramente em nós, mas que não compreendemos.

                                                                                                                         

 

4 Baudelaire, Charles, As Flores do Mal. Trad. Fernando Pinto do Amaral. Assírio e Alvim, “Ao

leitor”, p. 47.

5 Idem, p.45.

6 Ibidem

     

Apesar disso, persiste um sentido impessoal do mal. No seu poema “Destruição”, escreve Baudelaire:

“Sem parar, ao meu lado, o Demónio agita-se; Nada em torno de mim como um ar impalpável; Vou-o engolindo, queima-me os pulmões e sinto-o Enchê-lo de um eterno desejo culpado.”8

O poeta suspeita que a fonte deste perturbante, mas irresistível sentimento é algo de dinâmico, mas insubstancial, que existe independentemente dele (“um ar impalpável”), sobre o qual não tem controle e que não pode deixar de respirar. Embora o “desejo culpado” pareça irremediavelmente o “meu” desejo culpado, eu não escolhi sentir uma tal emoção. Ocorre em mim, irrompe na minha consciência vindo de algures. Submeto- me ao potencial destrutivo do demoníaco quando me disponho a acolher este género de ataques fortuitos dirigidos ao âmago da minha alma. “E quando respiramos”, escreve Baudelaire, “desce-nos a Morte / Aos pulmões, como um rio de surdos lamentos.”9 Ao

colocar em maiúsculas a “Morte”, Baudelaire relaciona-a com o “Diabo” e o “Demónio”, recuperando assim a identificação teológica da Morte com Satanás e antecipando a luta freudiana entre eros (desejo) e thanatos (morte).

O iluminismo europeu do século XVIII inaugurou uma era em que o demoníaco perdeu a sua identidade, deixando-nos sem saber o que ele passou, se é que passou, a representar. A alma do homem do início da era moderna viu-se cindida, em conflito entre a razão autónoma cartesiana e a emoção romântica wordsworthiana. Os racionalistas, crentes no progresso sistemático do homem e no estabelecimento de uma ordem racional mundial, diabolizaram as explosões caóticas de emoções irrefreadas que punham em risco as suas concepções. Os românticos, por seu lado, afirmaram o primado do sentimento e encararam qualquer tentativa de impor regras abstractas, controles ou medidas na fluida espontaneidade da vida como uma forma de inibição demoníaca. Nietzsche encarou o estado moribundo da civilização europeia como o legado de uma repressiva e asfixiante tradição apolínea que carecia ser revitalizada pelo ressurgimento da energia e da paixão dionisíacas.

Ao longo dos últimos cem anos, a gestão deste conflito no interior das mentes individuais humanas tem sido fundamentalmente prosseguida por psicólogos e psicoterapeutas. Freud compreendeu que o sentido angustiado do nosso eu (ego) derivava, em grande medida, de duas forças irreconciliáveis: os impulsos cegos da biologia (o vasto inconsciente do id), e as restrições morais da sociedade (o superego). Estas duas forças são características de Mara: os anseios e medos violentos que nos assolam, e os pontos de vista e opiniões que nos limitam. Sucumbir a irresistíveis impulsos e vícios ou ficar paralisado por obsessões neuróticas são duas formas psicológicas de articular a nossa contínua coabitação com o diabo.

Ao identificar o tédio como o mal primordial, Baudelaire encara o demoníaco mais como constrangimento e inibição do que como compulsão violenta ou erótica. Porque

                                                                                                                         

 

8 Idem , “Destruição”, p.279.

     

ao transgredirmos conscientemente fazemo-lo sempre com sentido de culpa. “Colhemos, ao passar, clandestino prazer / Que como uma laranja moída esprememos”, escreve Baudelaire10. Esta perturbação da consciência, de se estar psicológica e

moralmente enredado em forças que mal se percebem, surge tematizada nos romances de Franz Kafka. “Alguém deve ter caluniado Joseph K.”, lê-se no início de O Processo, “visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito mal algum.”11 O infeliz

K. nunca saberá porque foi feito prisioneiro, não conseguirá penetrar no labirinto do sistema judicial e, por fim, será executado. O diabo, tido como um “mentiroso” e “um assassino desde o princípio”12, que bloqueia o nosso caminho (nos aprisiona), assume

aqui o disfarce de poderes sinistros e invisíveis que, sem aparente razão, invadem e destroem a vida de uma pessoa comum. Este subtil aprisionamento secular é registado na prosa minimalista, hesitante, de Samuel Beckett: “Bruscamente, não, com o tempo, com o tempo, não pude mais, não pude continuar. Alguém diz, Você não pode ficar aqui. Não podia ficar e não podia continuar.”13

Ao confrontarem o demoníaco com fracas expectativas de redenção, estes escritores praticam curiosamente uma forma civilizada de niilismo. Ao mesmo tempo que parecem distanciar-se de qualquer expectativa de salvação religiosa, asseguram, pelo menos momentaneamente, uma forma secular de redenção pela actividade transformadora da sua arte. Redimem o seu desespero, fazendo dele um desespero belo. Num dos projectos de prefácio que escreveu para as Flores do Mal, Baudelaire admite: “Pareceu-me agradável, e tanto mais aprazível quanto mais difícil era a tarefa, de extrair a beleza do Mal.”14 (o itálico é da autoria de Baudelaire). O poeta frui de um prazer estético no

próprio acto de se confrontar com os demónios que o atormentam. Assim como o conhecimento de Mara liberta o Buda das garras de Mara, reimaginar o diabo enfraquece as cadeias com que o demoníaco prende o poeta. O sufocante desespero evocado nos seus poemas contrasta com a fluidez fácil do ritmo dos seus versos. Ao descrever a sua difícil situação às mãos do diabo, Baudelaire parece deixar-se ir na “brisa impalpável” que o envolve:

Vai-me guiando assim, longe do olhar de Deus

No documento Rosalume (páginas 128-143)