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luís filipe pereira

No documento Rosalume (páginas 108-111)

 

Como  leitor  de  António  Ramos  Rosa,  esta  impressão  breve  não  será  mais  que  a  fantasia  de   um  pássaro/preso  na  ténue  rede  das  palavras  oblíquas  

 

 (Génese  seguido  de  Constelações,  2005)    

     

  Da obra ramos-rosiana elejo a centralidade do espaço como pórtico de uma poética que, infatigavelmente, assume como função primeira a abertura de um espaço e sua sucedânea inscrição no endoespaço - que não é o espaço convencional, antes o da invenção de uma cosmologia da visibilidade por onde zarpa o Navio da Matéria (1994) rumo à interrogação do Ser e à reabilitação das nuas e lídimas matrizes do mundo, por via de um caminho de palavras, quais escopros de sal - do poema.

A criação de um espaço, que acolhe e transfigura os emblemas do ser, sincroniza-se com a instauração de uma arquitectónica criativa cuja geografia nómada oscila entre a disforia de um círculo de cal e a euforia de um espaço de festa, conjugando-se sob o signo solar, porquanto O Sol é Todo o Espaço (2002), a convocar-nos para uma lógica, eminentemente heliocêntrica, para uma dinâmica originária comandada pelo Volante Verde (1986) da língua e levando-nos ao cerne do mundo que, no seu alvor transmudado na habitação aberta do poema, exibe a infinidade de possíveis para que tudo possa ser reinventado no corpo oblíquo da palavra poética, mediadora de horizontes incomensuráveis. Eis como no corpo do poema irradia um novo espaço, aquém ou além de quaisquer sistemas de referência, através da ficção da sutura da Intacta Ferida (1991) – aquela de que brota o vaivém imóvel do perpétuo, e sempre principiante, questionamento ontológico: intrépido vagabundear em núpcias com o espaço. Assim, a viagem – princípio de desejo – da obra de Ramos Rosa acompanha, alusiva ou obliquamente, a eclosão, sem porquê nem finalidade, e irradiação do Ser, as suas solares incidências para que, no âmago do poema, o mundo repouse no seu próprio ser. Leio: A energia secreta do poema não chega a constituir o rosto do invisível mas a pulsação das suas sílabas identifica-se com o ritmo do inominado ser que é a origem e o horizonte da palavra e de que a palavra é o início e o motor que o instaura na sua trama obscura e incandescente (Relâmpago de Nada, 2004). Concêntrica com a invenção do espaço é a fundíssima exigência de um questionamento do Logos poético, já que a vertente metapoética é omnipresente na obra ramos-rosiana e torna este Poeta- filósofo (também na acepção heideggeriana reportando-se aos filósofos pré-socráticos) constante construtor de um espaço em génese, constituinte e não constituído, de um espaço sempre em estado nascente, aberto e relacional, interpelando-nos para a criação de uma ocupação, para a ars inveniendi de uma habitação susceptível de cumular o anelo do ser por mais ser: reabilitação da fonte e reinstauração da sede. Na linha de Heidegger, a poesia pensante – sendo-a, eminentemente, a de Ramos Rosa, traço aliás que a torna ímpar, pois nenhuma outra a levou tão longe como esta aventura militante do autor de Ocupação do Espaço (1963) – é topologia do Ser, facultando-nos o poeta um espaço genésico, processual,

     

desmultiplicando-se em intensidades matizadas de desejo e afecto: um espaço organicamente erótico, de abertura ao informulado, ao ilimitado: espaço do possível à revelia do espaço objectivo, efectivo. Uma espacialidade que o poema escava na falante concavidade da página para nos dar a ver a respiração de uma matéria espacial que, ab ovo, reflui até ao campo do proto-Ser - o já do ser, com o sol de permeio, em que somos animais marinhos de uma delícia verde (Dinâmica Subtil, 1984) – fazendo-nos mergulhar no mais extreme canto aéreo, excessivo de leveza e de lume, em que reverberam as palavras sempre ao rés do silêncio, porquanto são elas o órgão da luminosidade que, respigando-se aqui o mito de Leandro, permite ao poeta atravessar o Helesponto e a árida escuridão para encontrar no irisado espaço da poesia (como se Hero) a fugitiva plenitude por entre as cruzadas margens do corpo e do mundo, para incorporar no espaço a dimensionalidade universal da sua existência: Estou vivo e Escrevo Sol (1966). Deste modo, se em Ramos Rosa estamos condenados ao sentido (Maurice Merleau-Ponty) não é todavia o poeta que, sobrevoando-o, cria o sentido do mundo, antes abre-nos um espaço onde o mundo vem soletrar, como se index sui, o poema mudo que possui e que requer do poeta a despossuição da tirania do eu como criador do sentido, uma vez que na poesia ramos- rosiana a relação ao mundo faz-se do interior, na comunhão com o mundo: no átrio de olhá-lo de dentro. Daí que os poemas sejam superfície de uma profundidade inesgotável, como se tudo começasse à boca do poema (Boca Incompleta, 1977) sendo tarefa continuada da criação poética a de restabelecer a intimidade de uma afectuosa sintonia/libertando-o [o homem] do peso obscuro da alteridade do nada (O Sol é Todo o Espaço, 2002). Num tal espaço, que a poesia de Ramos Rosa instaura e nos oferenda para que nele erijamos um germinativo habitar, de envolvimento – que é intensivo e não extensivo, afectivo e não efectivo -, a um tempo sinestésico, carnal, cósmico e estesiológico, entrevemos um infrene apelo do Uno em que, libérrima, advém a fulgurante presença do mundo, a sua materialidade rediviva e disseminada pela palavra amotinada pelo frémito amante e mediadora de entre-espaços, alcandorando-se o dialogismo a canto do mundo, por via de uma dança centrífuga de permanente aproximação à misteriosa integralidade do ser e que ressurge na voz sempre inicial do poeta, essa que clamava já, embrionária e urgente, nos primeiros poemas de António Ramos Rosa, em 1958, coligidos no caderno titulado como O Grito Claro e também já tornada fruto no ensaio do poeta na revista Árvore com o título A poesia é um diálogo com o Universo.

     

 

         Manuela  Justino  

“orquestração”  

     

 

No documento Rosalume (páginas 108-111)