• Nenhum resultado encontrado

Rosalume

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Rosalume"

Copied!
143
0
0

Texto

(1)

   

 

A   grande   revolução   não   será   feita   pelas   palavras   […]   mas   quando   o   silêncio   impregnar   as   palavras   para   que   nelas   transpareça  o  que  está  além  das  palavras.  

∗∗∗

O  poeta  apreende-­‐se  através  das  coisas     e  atinge-­‐as  através  de  si  mesmo.  

  António  Ramos  Rosa  

(2)

ficha técnica

/.|

 

direcção Paulo Borges comissão de honra François Jullien Hans Küng Jean-Yves Leloup

RaimonPanikkar(In Memoriam)

MatthieuRicard

Agostinho da Silva(In Memoriam) conselho de direcção

Pe. Anselmo Borges

Constança Marcondes César(Brasil)

Carlos João Correia Frei Bento Domingues António Cândido Franco Markus Gabriel (Alemanha)

Dirk-MichaelHennrich(Alemanha)

Rui Lopo Amon Pinho(Brasil)

Andrés Torres Queiruga(Galiza)

Miguel Real José Eduardo Reis Luiz Pires dos Reys AdelSidarus

Francisco Soares(Angola) conselho editorial

João Read Beato FabrizioBoscaglia(Itália)

Duarte Drumond Braga AntonioCardiello(Itália)

Paulo Feitais Miguel Gullander Cem Komürcu(Turquia)

José Lozano(Galiza)

Rui Matoso

Jorge Telles de Menezes Rodrigo Petrónio(Brasil)

Romana Valente Pinho(Brasil)

Cinzia Russo(Itália)

Isabel Santiago Luís Carlos Santos Maria Sarmento Maurícia Teles da Silva Ricardo Ventura

direcção de arte

Luiz Pires dos Reys

design gráfico

Xénia Pereira Reys

comunicação e imagem

Isabel Metello

tradução, transcrição e revisão de texto

José Eduardo Reis Luiz Pires dos Reys Gisela Ramos Rosa

impressão

Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

propriedade Paulo Borges tiragem 1000 exemplares ISSN 1647-6697 depósito legal 309912/10 edição Âncora Editora

Avenida Infante Santo 52 - 3º esq. 1350-179 Lisboa

tel+ 351 213 951 223 fax + 351 213 951 222

e-mail ancora.editora@ancora-editora.pt web http://www.ancora-editora.pt assinaturas(pedidos à editora)

1 Ano 2 Anos

Portugal € 30.00 € 55.00 Europa € 35.00 € 65.00 Extra-Europa € 40.00 € 75.00

pagamento: cheque ou transferência bancária direitos de autor

© 2010 Cultura Entre Culturas

Revista ENTRE Rua Carlos Ribeiro, 30 - 4º 1170-077 Lisboa

(endereço para correspondência) tel + 351 918 113 021 (para lançamentos e apresentações) e-mailculturaentreculturas@gmail.com bloguehttp://arevistaentre.blogspot.com

facebook http://www.facebook.com/group.php?v=info&ref=ts&gid =230286389667

Todos os artigos são da inteira responsabilidade dos seus autores.

 

 

 

 

(3)

nem  tanta    sophia

|\|  

nem  tanta    philia:    

poesia  

 

e d i t o r i a l 1

É o quatro o número da completude material na realização.

Nele se consuma a unidade na diversidade, quer mediante a tripla adição sucessiva daquela, quer pela soma da dualidade à dualidade, quer pela adição da unidade à tríade. É pois o número da estabilização no âmbito e curso da acção, no variegado campo de activação das linhas de qualquer propósito: entre o projecto e o progredir da sua consecução.

Conseguir, de que provém o haver consecução, é implicitamente com-seguir, seguir pois um intento com o propósito de algum fim ou fins em vista, ou além da vista que sejam.

Chegados pois que somos ao número 4 da revista Cultura Entre Culturas, cabe dizer que, como sempre em tudo o que verdadeiramente importa, o realizado, ainda que imensa e enormemente além do previsível de lograr-se ao início, desafia-nos ainda e sempre ao prosseguir Entre. Mais do que nunca, para sempre. Isto é, como nunca, mais do que sempre.

Dedica-se, neste número, uma especialíssima atenção a António Ramos Rosa, nome maior da nossa poesia, certamente o seu maior vulto vivo.

É o poeta de Voz Inicial voz sapiente que almeja ao silêncio. Como ele mesmo o diz: “temos de destruir a linguagem, tudo o que na linguagem se interpõe entre nós e o real, para que só a visão nua do silêncio ilumine a realidade”2.

A poesia de António Ramos Rosa é, na verdade, o grito claro de tal continuado, laborioso e persistente propósito, na demanda do que confere plenitude à “boca [sempre] incompleta”.

Na verdade, só mediante o “incêndio dos aspectos” que nas coisas nos limitam e aprisionam, é possível a “construção do corpo” verdadeiro, do corpo “perfeitamente abandonado”, “aberto à divindade”, visto que, como o poeta há muito nos diz, “o divino é o absolutamente natural”.

(4)

Remanesce permanentemente a isto o poeta e o homem António Ramos Rosa, não n’ “as aparências, mas [no] aparecer da realidade”: ali onde precisamente nasce o poeta, o verdadeiro homem e o homem verdadeiro, qual Ramos Rosa os é, a um e a outro, um no outro, um do outro. Isto, na vacuidade que, como ele insistente garante, é a própria “condição inicial da [...] liberdade”, nesse “espaço vazio”, “esse não lugar”, que permite “que o sentido seja encontrado”, no “espaço em que todos os sentidos flutuam e em que o silêncio vibra na imanência de todos os nomes”.

Tal silêncio, e a sua nomeação, como que muda e cega, e tão interminamente impossível de alcançar quanto o mais sublime dos horizontes, constituem a fonte, a voz e a foz da poesia de António Ramos Rosa.

Deixa-se aqui expressa a mais profunda gratidão ao Poeta, por ter-nos permitido aceder ao seu espaço de intimidade, à sua obra (escrita e desenhada) mais recente e inédita, ao seu olhar de tão oceânica vastidão, ao toque especialíssimo de suas mãos de afecto, ao sorriso de sábio ancião-menino que desde logo desarma e desaba todo o cuidado espúrio e toda a insensata razão e seu pretenso enraizar de fundamentos.

António Ramos Rosa é, para além de um poeta sábio, um sábio que é poeta. Nem sempre as duas coisas vão a par e, menos ainda, estão indestrinçáveis como nele estão. Mas quando o estão, a presença de um tal ser, indelével que se nos mostra, e silenciosamente inesquecível, é outrossim serena sementeira de fertilidade para a vida, para toda a vida: “marcas no deserto”, “sobre o rosto da terra”, de quem haja o privilégio de lê-lo, seja nas palavras da sua poesia, seja na poesia do seu silêncio. A ele, aqui, a gratidão sem nome.

A Agripina Costa Marques, companheira de vida do Poeta – poeta da sombra das coisas e poeta porventura na sombra, e da abdicação de sê-lo –, o profundo agradecimento pela sábia disponibilidade e sempre tão cordial hospitalidade com que nos acolheu e acolhe, tanto quanto pelo denodado, persistente e tão difícil silêncio de veladora.

Conviver com um ser da estatura de António Ramos Rosa é tudo menos tarefa fácil. É certamente um privilégio, mas porventura um privilégio ingrato, sobretudo quando quem com ele convive é um ser da dimensão e profundeza de Agripina. Disso sabia por certo René Char quando escreveu: “Dans nos ténèbres, il n’y a une place pour la Beauté. Toute la place est pour la Beauté.” Eis o retrato de Agripina. O nosso bem haja pois, por tudo sobretudo que nas palavras não cabe nunca, nem mora jamais3.

Por fim, aos íntimos e amigos do Poeta, de sempre e de hoje ainda, que não quiseram faltar a este encontro “à mesa do vento”, o nosso bem hajam, por aqui estarem. A iluminação da palavra de Ramos Rosa brilha em cada uma das vossas palavras, como um eco do “inexprimível [que, como ele nos diz] não existiria sem a linguagem”. Precioso, pois, o olhar nos vossos “olhos de silêncio”, que aqui haveis trazido.

(5)

Mediadores da palavra de António Ramos Rosa somo-lo certamente nós todos que o lemos e amamos, mas sobremaneira são todos aqueles que, além da palavra, lhe têm escutado o cultivo daquele silêncio, de tão sublime cumplicidade, onde floresce o melhor da amizade e do amor.

O Poeta está vivo e escreve sol: e nós, para sempre, vivos na sua palavra.

 

Paulo Borges Luiz Pires dos Reys

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                                                         

 

1 A Gisela Ramos Rosa, sobrinha do Poeta, também ela poeta, o agradecimento pelo entusiasmo com que

desde logo abraçou, mediou e contribuiu para este projecto da Entre. Dela são (salvo explícita menção em contrário, e a óbvia exclusão das fotografias de família mais antigas), as fotografias do poeta, do ambiente em que vive, dos objectos que toca e usa. Para ela pois o nosso afecto, em gratidão por tal serviço ao poeta e à Cultura.

2 São todas as citações deste editorial, ou extraídas da obra de António Ramos Rosa Prosas Seguidas de

Diálogos (Faro, 4Águas Editora, 2011), ou são títulos de obras suas, que aqui se convocou como esteio das

presentes palavras. N.B.

Seja-nos permitido, em lateral rodapé, exprimir aqui pública ainda que desatempadamente, a Cláudia Souza e a Nuno Ribeiro, a gratidão imensa pelo acesso concedido a material muito específico dentre o espólio pessoano (cuja equipa de investigação de forma tão brilhante ambos integram), e que inestimavelmente enriqueceu o nº 3 da Entre, dedicado a Fernando Pessoa, como é sabido. O nosso bem hajam.

(6)

 

philo

|

.|:

 

sophia  

_________________________________

 

sophemas  

 

 

As  coisas  só  na  aparência  têm  limites   e  cada  uma  é  uma  rede  inextricável   e  silenciosamente  vertiginosa   António  Ramos  Rosa    

*    

A  linguagem,  se  presentifica  os  seres  e  os  objectos     do  sujeito  e  do  real,  torna-­‐os  presentes  na  sua  ausência.  

  *    

O  que  não  pode  ser  dito  é  uma  sede  submersa     que  desejaria  beber  o  horizonte  do  mundo.  

  *  

 

A  tua  virtualidade  pode  actualizar-­‐se     na  matéria  sensível  do  mundo  e  revelar     a  integridade  inexprimível  do  Instante.    

(7)

dirk-­‐michael  hennrich

 

alguns  aforismos  sobre  filosofia  e  poesia    

(em  homenagem  a  José  Marinho)  

A filosofia especulativa só pode ser poetomórfica, como escreve José Marinho. A sua Teoria do Ser e da Verdade é uma ascensão ao píncaro, de que fala Teixeira de Pascoais no primeiro aforismo do seu Verbo Escuro, para contar aos outros a paisagem contemplada. Esta paisagem não é fictícia nem real. É uma paisagem que se consolida através duma nova linguagem. O pensador e o poeta são visionários e os seus olhos estão nas pontas das suas línguas. Imagine-os como uma espécie de serpente. Anfíbios com uma linguagem bifurcada, poesia e filosofia, a procura do regresso ao Paraíso.

Quando a filosofia enfrenta as festas nocturnas e dionisíacas onde a lua aparece como o verdadeiro sol e como uma sombra branca, nasce o pensamento poetomórfico. Aí todos já sabem o fim do herói – rasgado e devorado pelos Titãs. A filosofia que espanta toca o véu da verdade com dedos poéticos. Não é que os filósofos desprezem a poesia ou os poetas, como dizem de Platão e Wittgenstein, mas contestam um certo lirismo sentimental e nebuloso cujas imagens não atingem o sentido do enigma. O Eros vigia bem a sua amada.

A fala sobre a verdade despida, a nuda veritas, só pode ser uma invenção de um chulo – ou de um positivista sem nenhum sentido poético.

O aforismo é uma corda entre a poesia e a filosofia – e só um tolo ou um funâmbulo sabe manter a balança.

A poesia apenas sussurra a verdade. Apenas sibila. Sibilina como ela é.

A filosofia enquanto busca da verdade absoluta retoma o caminho da linguagem não meramente de forma poética, mas sobretudo meditativa. Toda a filosofia sistemática ou aparentemente não-sistemática, que pretende atingir uma verdade ou, o que é a mesma coisa, a demonstração da impossibilidade da verdade, parece uma Mantra: um poema repetitivo, uma insistência que alguns poderiam chamar estilo e que é nada menos do que uma profunda meditação.

(8)

Poesia e filosofia emergem do mesmo sentido pelo inefável, o enigma e o mistério, o lado sombrio da coisas. José Marinho e Teixeira de Pascoais não são apenas o único exemplo.

Enquanto a ciência rasga o véu das coisas, a filosofia apenas lhe toca para sentir as suas formas sinuosas. A diferença é o valor erótico da poesia e da filosofia – e Diotima é a amante de ambos os géneros.

O Eros não tira o vestido das aparências. Ele apenas envia o vento leve do verão e as pétalas tombam sozinhas.

O poético é considerado como fictício, fantástico, imaginário, sentimental, alheio à verdade factícia, do dado bruto, da realidade – enfim tudo aquilo que é um alimento da liberdade.

Entre caminhos e linguagens alvorece o lar da consciência, o lugar da dor que se estende entre a remota partida e futura chegada, a demora em que a carne envelhece e o desejo cresce como uma flor vermelha num campo de batalha: espelho do sangue perdido, verde olhar da esperança, um perfume espalhado no vento que vem depressa sem regresso ao paraíso. Tempestades e relâmpagos numa noite infinita. E a luz pálida do luar na testa do caminhante.

O conceito da utilidade infectou a humanidade e a filosofia, que não é aplicável à banalidade do dia-a-dia, é considerada inútil. Daí o falso conceito da filosofia em geral, a convicção que a filosofia é uma ciência, dando respostas validas para fenómenos do quotidiano, tornando-a numa espécie de consultório para todas as doenças e perversidades civilizacionais do homem moderno, pretendendo-o útil e funcional. Mas afinal a filosofia e a poesia não são ciências. A consciência da plena inutilidade do homem será o seu primeiro e último remédio.

A filosofia e a poesia são festas à beira da cratera de um vulcão – e Empédocles é o nosso ídolo.

 

 

 

 

 

 

  Desenho  de   António  Ramos  Rosa  

(9)

                                 paulo  borges            

grãos  de  areia  

 

Em português e castelhano “ser” vem do latino “sedere”, estar sentado, residir, ficar tranquilo, pousar. “Ser” vem de “sedere”, “estar” de “stare”: estar de pé, que também significa estar a favor de ou contra alguém.

Intimamente sentados somos, repousando na sede, no centro, sem qualquer sede ou estado/levantamento mental de adesão ou rejeição. Assim nos contemplamos inseparáveis de tudo e de todos. E assim podemos erguer-nos, estar de pé, numa acção não dualista, para o bem de tudo e de todos, sem preferências nem exclusões.

E entre o sentar e o levantar, o ser e o estar, não somos nem estamos: por isso podemos ser e estar, sentar e levantar, ser-estar, sentar-levantar.

Não há entes, apenas entres.

A filosofia pretende compreender o mundo ou mostrá-lo incompreensível, a poesia (re)cria-o e celebra-o, a meditação suspende-o. Exerce-as simultaneamente.

Porque agarra tão tenazmente o recém-nascido o dedo que lhe estendem? Porque agarra o moribundo intensamente a mão que lhe dão? E porque, entre o nascimento e a morte, não cessamos de nos agarrar avidamente a tudo, desde a chucha a essas outras chuchas que são brinquedos, telemóveis, computadores, televisões, pessoas, casas, carros, carreiras, poder, prestígio, riqueza, dor, prazer, ideias, emoções, drogas, medicamentos, comida, tabaco, álcool, experiências sensoriais, intelectuais ou espirituais? Porque vivemos e morremos agarrados? Porque vivemos e morremos agarrados à própria ideia de viver e morrer?

Há crise de identidade ou a identidade é (a) crise?

A morte é o despertar do sonho de estar vivo. Mas dá-se quase sempre uma recaída. A ocupação com a identidade é uma preocupação com a diferença.

O silêncio cala a palavra. Rara e preciosa a que o faz falar.

Se a meta é o ponto de partida, todo o caminho é desvio e obstáculo, incluindo o conceber meta e ponto de partida.

(10)

O chamado homem é o modo de consciência que está no cume, no centro e no fundo de reconhecer que não há cume, centro ou fundo algum e que tudo é igualmente sagrado e infinito.

Para onde quer que olhes, neste preciso instante, concentra-te e absorve-te aí, até te fundires. Nesse ponto está todo o universo, todos os seres e tu mesmo, sem que lá esteja coisa alguma. Neste preciso instante se cumpre toda a tua vida.

Põe-te no lugar de todos.

Existir é estar preparado para tudo. O círculo desenha-se no apagar-se. Obscura a palavra, claro o indizível.

Escreve de modo a que cada palavra se absorva e esplenda no luminoso vazio da página e do mundo.

Na infinita generosidade do real, o essencial é sempre o mais íntimo, simples e disponível. Só a distracção do desejo o fantasia alheio, complicado e remoto. Respiramos a cada instante no coração de todas as coisas.

Haver realidade é o escândalo que a razão jamais poderá abafar.

Somos como uma ampulheta, feita apenas de grãos de areia. Cada instante que passa, cada pensamento que flui, é um grão de areia que desce pela fenda estreita da consciência. Quando passar o que imaginamos ser o último, viveremos isso a que chamamos morte e a ampulheta dissolver-se-á para reaparecer voltada ao contrário e com outra forma, continuando o seu fluxo descendente. Cada grão que passa confere a sua qualidade a todos os outros e molda a ampulheta. Tudo o mais deixamos para trás. Cuidemos pois da passagem de cada grão de areia. Mas sobretudo vejamos que na garganta estreita da consciência a ampulheta afinal se abre no espaço sem dimensões nem ampulhetas e que os grãos de areia - se não lhes juntarmos os grãos de areia de lhes conferirmos realidade, qualidades e importância, de nos identificarmos com eles ou de concebermos haver quem com eles se identifique - , nele se dissipam como bolas de sabão. Então compreenderemos que a verdade desta alegoria é a sua falsidade e seremos livres da própria ideia de sermos e de liberdade. Aí, sem nada disso termos por real, também veremos que cada grão de areia é outra ampulheta com infinitos grãos de areia que são outras ampulhetas com infinitos grãos de areia que são outras ampulhetas com infinitos grãos de areia que são... bolas de sabão, sorrisos absoltos no imenso.

Escrevemos para que mais esplenda o branco do ser e da página. Escrevemos para que mais se desnude o sem porquê nem para quê.

A poesia e a filosofia são duas tentativas de calar o silêncio, tanto mais frustradas quanto mais conseguidas.

(11)

Reduzir-se ao mínimo é descobrir-se (a)o máximo. O nosso íntimo é o unimultiverso.

O único ismo com profundidade é o sismo/abismo.

A linguagem está na origem de toda a perda e falta de comunicação.

Um dia olhas ao espelho e vês o unimultiverso. Esse dia conclui a história do mundo. A tua história.

Um dia olhas ao espelho e vês que não há espelho, que tudo é imediato.

O agressor e a vítima indistinguem-se na Presença/Ausência que lhes é comum, mas o atacar de um e o defender-se de outro velam-lhes isso. E assim o agressor se torna vítima e a vítima agressor. A tragicómica história do mundo. A nossa história.

Ver-se vítima é ser agressor.

Contempla o espaço infinito: espelho menos infiel do que és.

Em torno de uma mente imóvel rodopia o inteiro unimultiverso. No espaço infinito dissipam-se imobilidade e movimento, mente e unimultiverso.

O teu verdadeiro nome

Neste preciso instante, infinitos fluxos de ser/consciência cruzam o espaço em todas as direcções, com todo o tipo de formas, sensações, percepções e volições distintas, mas inseparavelmente entrelaçados e constituídos pela mesma matéria e energia, em constante metamorfose e em diferentes níveis de manifestação do mesmo espaço insubstancial. Consciente ou inconscientemente, tudo o que fazem visa o bem-estar/felicidade e evitar o sofrimento. Todavia, ao procurarem isto, praticam todo o tipo de acções - mentais, verbais e físicas - e estabelecem entre si todas as interacções possíveis: amam-se, ignoram-se, odeiam-se, protegem-se e destroem-se, temem-se, defendem-se, atacam-se, abraçam-se, oprimem-se, exploram-se, devoram-se... E assim vivem e morrem, sempre os mesmos e sempre outros, mudando e trocando constantemente de formas, lugares e funções, pois tudo o que aos outros fazem a si o fazem: quem oprime é oprimido, quem agride é agredido, quem devora é devorado, quem protege é protegido, quem alimenta é alimentado, quem ama é amado. Assim rodopia o mundo no turbilhão da ignorância de se crer haver seres separados, do desejo ávido e do ódio, na vertigem do medo e da esperança ilusória de se ser feliz a sós e fazendo sofrer.

Mas esse turbilhão febril pode parar. Na sua contemplação. Nisto que agora mesmo acontece. Nesta visão que surge. O seu nome é sabedoria e tem uma manifestação natural: amor-compaixão.

(12)

Com sabedoria-amor-compaixão podes estar no mundo sem ser arrastado pelo seu turbilhão. Podes estar no mundo como um médico: livre do sofrimento, mas não indiferente a ele e capaz de o atenuar e suprimir. Partilhando esta visão, sem nada esperar em troca. Levando outros a parar e ver. E a amar tudo o que vêem.

É só a partir daqui que surge espontaneamente uma acção libertadora, para ti e para os outros, inseparáveis de ti. Para o bem de tudo e de todos.

É só a partir daqui que a Vida para ti começa. A esta Vida és chamado. Pois Ela é o teu verdadeiro nome.

(13)

fátima  valverde

 

ministério  da  estética:  para  uma  consciência  social  do  belo  

Intróito

Tentarei sintetizar neste abreviado artigo, algumas medidas pertinentes que preconizam melhorias abrangentes da qualidade de vida dos cidadãos, e não restritas e afuniladas, para uma convivência consciente com o Belo, uma das manifestações essenciais de harmonias e equilíbrios vários, a integrar em áreas só aparentemente distintas e distantes.

Começo por apresentar alguns aspectos polémicos num apelo ao comentário e à exortação do Belo nas nossas vidas colectivas, o que se reflectirá beneficamente, em meu entender, nas vidas particulares.

Numa sociedade em que politicamente se propaga e alastra o pânico da crise, abordada exclusivamente sob a vertente económica (real, claro, mas não independente de outros factores que deveriam ser também realçados), e se protagonizam corrupções, desfalques e gastos supérfluos distribuídos por vários ministérios, pode parecer inconsistente, inconsciente e mesmo incongruente, propor mais um ministério. Alerto, sobretudo para a facilidade que este encerra de congregar várias tarefas e medidas num mesmo objectivo, o que exige opções validadas previamente, quer nas decisões quer nas actuações como mais-valia para evitar despotismos.

Num milénio avançado da história da humanidade é necessário, aceite e justo recorrer a bancos alimentares para salvaguardar a sobrevivência dos mais carentes, porque parecerá pedantismo e petulância criar um manifesto para reavivar o Belo? Se assim for, salve-se a utopia para reformar a democracia … Aliás, com a execução do feio degradado já existe quem se (pre)ocupe.

Num tempo em que, nacional e mundialmente, se assiste a diferentes vertentes de crises, rupturas e dissoluções variegadas, pode parecer superficial, leviano até, falar-se de Estética e do que vulgarmente lhe está associado: categorias inerentes a aspectos físicos, a artificialidades concebidas para o prolongamento obcecado da juventude ou a materialidades vãs de quem não tem dificuldades económicas ou criou dívidas por isso mesmo. Em suma, o Belo reduzido ao excremento do Luxo. Como veremos, não é disso que se trata, mas sim de desfazer a associação automática da díade Belo-Luxo para desenvolver e aplicar o elemento luminoso que ambos intrinsecamente contêm.

A necessidade duma visão estética aplicada ao quotidiano

A palavra «estética» surge no séc. XVIII com Baumgarten para expressar uma teoria da sensibilidade de acordo com a sua etimologia do grego aisthesis, assumindo no século seguinte uma autonomia própria em termos de teorização, tendo sofrido alterações aos longos dos séculos acompanhando as mentalidades vigentes.

Esta reflexão desvia-se, contudo, duma perspectiva cronológica para adoptar a via do reconhecimento da necessidade de Beleza como um aspecto relevante na evolução da consciência humana no quotidiano exterior e interior, uma vez que sentimentos de alegria e de bem-estar lhe estão intrinsecamente associados. Os exemplos que o confirmam atravessam a História de todas as culturas e civilizações. Não se trata, pois, de estabelecer a

(14)

distinção básica entre «belo» e «feio», um dos fundamentos da definição de Arte, duas faces aceites como vectores estruturantes e (de)limitativos, nem tampouco de evocar «o «culto do feio», apontado no princípio do passado século por Ezra Pound ou a existência duma «Estética do Feio», anotada por Karl Rosenkranz no século XIX, cujo intuito é escapar a estereótipos integrados nas conhecidas designações de «clássico, romântico, moderno, kitsch, camp, vintage». Podemos ler também a obra de Umberto Eco sobre o Feio, que muito ensina e leva a reflectir sobre padrões canonizados e respectivos desvios igualmente canónicos.

Os textos de autores antigos e contemporâneos de referência que se ocupam do assunto são, indiscutivelmente variegados; ler e reler os clássicos para recuperar valores de harmonização, reconhecer uma evolução estética que rompeu padrões rígidos em prol duma expansão criativa livre será sempre útil e necessário, mas por agora dispensável, uma vez que a questão foge de quaisquer distinções ou promoções em torno de conceitos mais ou menos estereotipados.

Dois séculos idos, há que contribuir, de algum modo, para a sensibilização estética das consciências e vencer torpores enegrecidos que se têm vindo a instalar, vivamente manifestos na fealdade de lugares, paisagens e atitudes, como se tal fosse uma consequência aceitável da evolução humana, logo, de fácil assimilação individual e de sustento colectivo garantido. Sendo irrelevante historiar, defender ou condenar as rupturas estéticas, a recorrência à caricatura, a tradições imitadas, adaptadas, renovadas, vanguardistas ou outras orientações face à contemporaneidade em que o propósito de discutir gostos, estilos e pormenores é substituído pelo meu contributo de propor a formação dum Ministério da Estética como órgão central de outros ministérios subjacentes, tendo como eixos articulatórios fundamentais a Educação, a Cultura e a Saúde para um desenvolvimento da consciência através da fomentação da atitude criativa e da participação voluntária.

Considero um benefício as interacções articuladas em detrimento das relações unívocas em prol duma sanidade ambiental que seja o espelho dos indivíduos e contribua ao mesmo tempo para educar, desenvolver e manter. Um meio será o fundamentar a sensibilização das consciências, de modo a permitir a expressão individual de potencialidades criativas, subtilmente submergidas pelo caos opressor duma desordem em permanente renovação, o que irá precaver e apaziguar alguns malefícios dela advindos.

A linha principal basear-se-á na implementação do Belo, ao invés da instigação de lutas contra o Feio, pois, parece-me mais pertinente perguntar o que não mudou em vez de continuarmos a tecer indagações e debates em torno do mesmo eixo, ou seja, o que mudou para justificar os erros pelas mudanças, continuando a permitir que as situações se repitam. É urgente que se recicle a própria noção de reciclagem e nesta se inclua uma componente estética que toca outros domínios além dos habituais, mais especificamente o das ideias e dos sentidos, entre outros, com a finalidade de contribuir adequadamente para um sentido estético, pois interessa proporcionar aos cidadãos uma qualidade de vida assente na mais-valia de contactos harmonizadores para uma vida centrada na qualidade. Assim, a díade platónica Belo-Bem convergirá num ponto comum adaptável e necessário em todos os tempos: o favorecimento duma sensibilidade educada livre e conscientemente, despertando o ser humano para a importância de manter os sentidos libertos dos vários lixos, progressivamente acumulados e permanentemente tóxicos.

Ideologicamente, não defendo a divisão governamental em ministérios. Todavia, perante a reconhecida dificuldade de mudar estruturas sem mudar mentalidades, urge encontrar uma solução que escape à utopia, com possibilidades de efectivação. Aproveitando o critério duma sociedade subdividida, parece-me exequível incrementar estratégias eficazes a partir daquilo que existe e retirar do conceito de «Ministério» aquilo que ele contém de valorativo, sumariamente, a focalização num assunto específico, a distribuição de responsabilidades e a regulação actualizada de tarefas como deixei entrever no Intróito deste artigo.

(15)

A grande finalidade será conceder o acesso à preservação e à autonomização do zelo estético, proporcionando práticas de enraizamento ético e estético. O Ministério da Estética é um passo na aprendizagem da interiorização de valores fulcrais, uma forma de autonomia da visibilidade do Belo, uma via concreta para diminuir a sobrecarga pardacenta incrustada nas nossas vidas sempre que somos obrigados a contactar com o exterior das nossas casas. Estarão presentes atitudes fulcrais tais como a confiança, o respeito e o civismo em alternativa ao medo, ao abuso e à incúria.

Apesar dos nós frágeis das visões ministeriais oriundos na sua própria departamentalização, conceda-se-lhes o benefício da possibilidade duma organização operacional de medidas úteis actuantes na realidade quotidiana, de modo a instalar não o perfeccionismo redutor e ditatorial, mas, pelo contrário, incrementar através da prática uma consciência estética, contribuindo para sensibilizar os cidadãos para a importância de educar esteticamente. A orientação ministerial pode significar algo mais do que a disseminação de responsabilidades e o embargo de medidas práticas, contendo a possibilidade exequível da congregação diligente entre princípios estéticos e éticos, fomentadores duma actuação harmonizadora de ambientes.

Quem seguir este caminho facilmente encontrará um paradigma de subdivisões que tenderá para a criação de pequenas, médias ou grandes congregações ministeriais. Entre elas poderíamos encontrar um eventual Ministério das Artes Lúdicas e Terapêuticas, responsável pela planificação de estruturas e actividades que ajudassem a vencer desistências, negruras e queixumes, equacionando as três áreas atrás referidas, a Educação, a Cultura e a Saúde. Este exemplo não pretende anular a seriedade do assunto central. Pelo contrário, reconhece nele uma fonte para novas inspirações.

Fundamentos gerais para um Ministério da Estética

Sem entrar em considerações de ordem teórica e abdicando dum aparelho bibliográfico adjuvante, proponho, por agora, algumas considerações, agrupadas sinteticamente, para uma clarificação de objectivos essenciais e respectivas medidas coordenadoras, nos quais assentaria uma prática consciente e vigilante sem ser censória, assente em seis objectivos gerais e respectivas medidas, de modo a instruir e a desenvolver sensibilidades estéticas:

1.definir estratégias flexíveis e adequadas aos seres, espaços e circunstâncias que libertem os espíritos do desacerto ambiental e os incentivem a cuidar do mundo com uma liberdade responsável e a (re)estabelecer equilíbrios estéticos e sensoriais;

2.actualizar permanentemente estratégias de prevenção, impeditivas dos habituais corrupios poluidores através da propagação duma Ecologia Prática e Espiritual que defenda, divulgue e aplique critérios essenciais de respeito pela Natureza e pelo Ser Humano;

3.responsabilizar os cidadãos através duma educação estética fundada em aprendizagens práticas de hábitos e atitudes que os ajude a abandonar padrões estratificados e fortalecidos por teorias e práticas cinzentas;

4.proteger o meio circundante, desenvolver acções de interacção estética que eduquem progressivamente os cidadãos para a interiorização da importância da expressão equilibrada e harmoniosa nas estruturas arquitectónicas, decorativas, civis e outras;

5.consciencializar os vários grupos de cidadãos da importância da ordem, da harmonia e da beleza especificamente nas suas vidas profissionais e comunitárias para uma sociedade esteticamente aprazível, atribuindo a respectiva relevância para a Saúde individual e de grupo; 6.relacionar áreas fulcrais para o bem-estar (Higiene, Nutrição, Cuidados de Saúde, Desporto, Linguagens, Expressões Criativa, Espiritualidades), integrando uma visão filosófica e

(16)

estética para uma melhor qualidade de vida pessoal e colectiva, numa recusa progressiva face aos desequilíbrios ambientais de todo o tipo e numa melhoria estética dos ambientes1;

Tais fundamentos, a ordenar em torno de princípios, atitudes e actividades diversificadas, estariam centrados numa educação estética dos espíritos, actuante no quotidiano em vários sectores, cuja matéria-prima seria alargada ao domínio público. Neste sentido, estas práticas poderiam suprir algumas lacunas da sociedade e enriquecer este ministério com alguns eixos de carácter terapêutico e lúdico, com a expansão de novas atitudes de promoção criativa do trabalho e do lazer.

Este projecto implica um aperfeiçoamento dos registos mental, espiritual e sensorial, entre outros; terá de contar com a gestão de vários sectores a transformar, e abranger, pelo menos os seguintes aspectos:

1.alargamento do conceito estético às práticas comuns do quotidiano, ou seja, incrementar noções, incentivos e práticas de Beleza, ao invés de a remeter para museus, galerias, monumentos, espaços e ocorrências criados para o efeito;

2.combate ao analfabetismo estético pela educação teórico-prática, esclarecedora das diversas opções artísticas com a informação histórica, cultural sobre Artes e Ofícios, de modo a facultar, transmitir e valorizar o exercício do gosto e do gesto estético-criativos no quotidiano;

3.construção, reconstituição, remodelação e embelezamento de espaços públicos, abertos e fechados, atribuindo uma dinâmica viva e harmonizada a objectivos adaptados e criados para uma funcionalidade estética.

A par dum conceito de património mundialmente reconhecido virado para o passado monumental e histórico desenvolver-se-iam práticas organizadoras de outros patrimónios mais restritos em termos da contemporaneidade. Estes seriam reconhecidos pela sua ancoragem num presente humano, que aspira naturalmente ao bem-estar, materializado em centros de cultura e lazer, fórum de ideias e práticas, galerias de artistas e artesãos, entre outros, num ritmo de expansão adequado à formação de necessidades reais. Contemplar-se-iam para articulação e exequibilidade de ideias e esforços enquadradas em diversos locais e também em ambientes ajustados aos objectivos.

Será, pois, da competência específica do Ministério da Estética evitar processos que contemplem a defesa árida de critérios económicos alheios ao espírito ético, estético e filosófico. Tal incumbência é indispensável a uma política humanista e humanizada, que defenda meios de promover as artes e afaste clichés infortunados referentes a uma minoria de «artistas», «galeristas», «coleccionadores», «museólogos» e grupos afins, tendo em conta a manutenção específica de cada grupo e a liberdade necessária à criação.

Em suma, almeja-se que o Ministério em causa conduza os seus princípios e medidas com liberdade e coerência, de acordo com critérios em permanente actualização e adaptação a mudanças sociais, para elas contribuindo activa e criativamente. Em pleno, contribuirá para desanuviamento de mentalidades e libertação de espíritos de padrões estéticos massificadores

                                                                                                                         

 

1Recordo uma reportagem televisiva realizada com uma equipa de designers portugueses que se

ocupava da ornamentação de paredes de enfermarias pediátricas num Hospital português, que aderiu ao seu projecto. Apesar de não poder referenciar cronologicamente os dados recolhidos, pelo que apresento as minhas desculpas, não quero deixar de anotar o que a memória gravou: a exequibilidade e a relevância pedagógicas. E o mais importante foi a constatação dos respectivos benefícios para a saúde, salientados por todas as partes envolventes, incluindo alguns pais e crianças hospitalizadas. Defendo que este tipo de projectos deveria ser alargado adequadamente a várias instituições que implicam o afastamento do lar.

(17)

que têm implicações nefastas a níveis mais subtis da vida dos cidadãos. À medida que as consciências forem despertando, os efeitos das oposições e inércias serão afrouxados e o impulso estético, de índole ética, desenvolver-se-á progressivamente até ser natural, criativo e libertador.

Desafios duma esteticização fundamentada das consciências

Vislumbram-se desafios e dificuldades nesta mudança, a executar e a equacionar gradualmente, sem violentas rupturas ou forçadas imposições contando com as diferentes inércias instaladas, as habituais resistências às mudanças e as adaptações à realidade. Para tornar exequíveis algumas medidas poderia partir-se, por exemplo, duma despoluição estética geral do ambiente que beneficiaria largamente, entre outras consequências menos visíveis, um apuramento dos sentidos e um desanuviamento ecológico e saudável que equilibraria o convívio humano e com a Natureza. Todos conhecemos esforços realizados neste sentido e que integrarão, sem dúvida os programas do Ministério em foco.

A título de exemplo, poderia começar-se pelos locais de grande concentração de massa humana tais como jardins, locais públicos de funcionalidade diária, ambientes degradados, destinados à educação, cultura e saúde, mais especificamente edifícios escolares, bibliotecas, hospitais, centros de saúde, prisões, lares de idosos, gabinetes e repartições públicos. Os ambientes normalmente destituídos de cariz estético associados ao nível social sofrerão alterações progressivas, diminuindo a separação radical entre educação e saúde privadas e públicas reservando às primeiras as preocupações pautadas por um cunho estético e às segundas a total carência do mesmo.

Um dos desafios desta proposta estética aplicada ao quotidiano será a manutenção do respeito comum, a capacidade de gerir com liberdade, a pertinência de práticas inovadoras e estruturantes, estabelecer prioridades e responder sabiamente às agressões poluentes oriunda de várias frentes. Outro desafio será a integração da componente filosófica como base de actuação e difusão adequada, indispensável para o avanço das mentalidades.

Promulgo por isso uma raiz organizadora de cariz estético assente em princípios éticos fundamentais que equacionem liberdade e respeito, actuando a nível de despoluição visual, olfactiva, auditiva, táctil e outras, pois estou consciente do perigo de atitudes extremas, que não reparariam de modo algum a inestética generalizada e conduziriam, pelo contrário, à propagação dum policiamento facilmente conducente ao terrorismo estético.

Ancorado numa base profundamente ética, o Ministério da Estética salvaguardará abusos de monopolização de critérios e de manipulação de expressões assim como evitará ditaduras fundamentadas em padrões consumistas e compulsivos, que não contemplam princípios de harmonização dos seres e dos ambientes. Será assim salvaguardado o bem-estar dos cidadãos permanentemente assediados pela sobrecarga consumista da publicidade alienatória e efeitos oriundos duma permanente desatenção ao Belo, comummente manifestos e habitualmente aceites, ao abrigo de leis inertes que vegetam por todo o lado.

Apesar de estar consciente dos obstáculos e da polémica aqui levantada, acredito na possibilidade da inteligência humana reconhecer as disfunções advindas dum caos estético negligenciado, assim como acredito na possibilidade duma viragem relativamente ao preconceito de que a arte só provém, serve e se destina a minorias dotadas ou interessadas inatamente, só se exprimindo em guetos próprios arquitectados para o efeito. Além disso, já é tempo de abandonar políticas estritamente assentes em preocupações económicas desgarradas dum teor filosófico, ético e estético.

Em meu entender, a perspectiva estética deverá estar sempre presente para uma progressiva adaptação e um natural convívio dos sentidos com o Belo. O direito à

(18)

contemplação difundida da harmonia e da beleza enriqueceria, decerto, os conhecimentos estéticos e outros, uma vez que não os entendemos isoladamente, o que possibilita a definição individual e a selecção autónoma de critérios. De realçar que os valores estéticos aplicados articuladamente com as necessidades reais e específicas de cada sector devem sair de circuitos hermeticamente isolados e ser accionados eticamente numa participação produtiva em prol da transformação benéfica do mundo que passa pela repulsa gradual, cada vez mais consciente, das consequências dos actos poluidores.

O retrato apresentado remete para uma sociedade apta a receber a qualidade integrada em todas as áreas úteis e recreativas, difundida e alargada a várias formas de expressão e expansão de ideias, emoções e sentimentos, que associa o Útil ao Belo e nele o integra. Sem pretensões inovadoras, pode recorrer-se a áreas já especificamente orientadas no âmbito artístico como as Artes de palco, as Artes gráficas, a Decoração, o Design, a Pintura, a Escultura, Arquitectura, a Fotografia, o Cinema, a Música, a Literatura que, separada ou conjuntamente, podem transformar salutarmente um mundo empobrecido num mundo esteticamente organizado. Porém, a grande finalidade é chegar a ambientes massivos e de concentração de actividades e tarefas excessivamente contempladas na sua funcionalidade e, como tal, alheias e insensíveis a toda esta problemática.

Espero que, de algum modo, a sucinta explanação aqui apresentada, que suprimiu estratégias minuciosas e condicionantes previstas por não ter sido esse o objectivo maior, possa entusiasmar e inspirar alguns espíritos atentos a reformas e reformulações profundas que o dia-a-dia clama e exige. Neste sentido, intentei contribuir para uma política visionada como arte aplicada ao quotidiano dito banal e passar a incluir, naturalmente, uma faceta estética ao serviço do bem comum, assente numa raiz ético-ecológica, despida de futilidades vãs e optimismos singelos, em prol do que poderemos aperfeiçoar.

Termino com um apelo à inteligência, imaginação e sabedoria dos leitores não só para encontrar vantagens e desvantagens na minha proposta, mas, sobretudo, para o aprofundamento duma questão urgente na sua aplicação porque negligenciada na sua essência: a implementação do Belo na consciência social.

(19)

carlos  h.  do  c.  silva

 

 

Pessoa  pluralidade  possível  -­‐  encenação  de  uma  leitura  temporã  e  de  permeio*

 

«Pas de connaissance, pas de métier, pas de science, pas d’art, pas d’action, pas d’ascèse, – qui ne soit visible dans ce Théâtre.

(…) Toutes les natures individuelles du monde, avec leurs mélanges propres

de bonheur et de malheur, avec leurs gestes particuliers et autres moyens d’expression, – c’est cela qu’on appelle Théâtre.

Au Savoir sacré, à la science et aux mythes, il fournira un lieu d’audience, et au peuple un divertissement : tel sera le Théâtre. »

(Nâtya-çâstra, 1re lecture : « Origine du Théâtre », apud René DAUMAL, «Traductions du sanskrit – Quelques textes sanskrits sur la poésie», in : Id., Le Contre-Ciel suivi de Les dernières paroles du poète, éd. définitive, Paris, Gallimard, 1990, p. 229)

§ 1. Leitura plural da pluralidade

De Sul para Norte, de uma cultura inglesa colonial sedimentada na África do Sul, veio, para o

espraiado Tejo de uma ‘Lisbon Revisited’ e ainda ‘medi-terrânico’ espelho mágico, um Pessoa.4

Máscara por autonomásia de tanta viagem assim infantil e contra o Céu5, este Fernando, não da

Baviera6, nem tocado pelos restos da pristina civilização boreal, traz sim da clássica lembrança os

vultos muitos de uma possível ‘multiplicação dos pães’7, porventura sem milagre de vontade.8 Tão

só no ‘drama em gente’ da constatação plural de qual fome de sentir universal…9

Ler 10 poderá ser a “manducação” de um sentido também assim sensibilizado até à

consonância11 que arrepia de vida as múmias12, ou dá voz aos espectros gráficos13, desse mais ou

menos que universo, em diversidades infindas.14 Donde aquela afirmação do poeta de que ‘só

aprendemos a ler o que já vivemos’ e por assim o havermos sentido.15 Não a metáfora elaborada

do ‘teatro’ de sentimentos alheios16, mas o ‘sim, sim; não, não’, sem sequer o evangelho de uma

virtude.17 Tudo no avulso de algum momento, no dito efémero de um encontro, como aquele em

que um pensamento de Pessoa, aliás pelo interposto António Mora do «Regresso dos Deuses»,

um dia ‘nos vibrou de sentido’…18

Duas notas ainda deste pretexto: tanto essa consonância de alma, que é como quem diz de

‘corpo’ com tal sentir19; quanto essa inteligência também ‘desalmada’ de um perceber a exacta

demora dos Deuses20, que será quase o inverso do que, em Heidegger se diz “tarde demais para os

deuses e por demais cedo para o Ser”.21 De facto, neste último registo, mais teorético, ou até

visionário, é a própria demora dos deuses que há-de contar uma história real como se não fosse22,

outrossim, bem mais a virtualidade do que se sente sem tempo, mas no a tempo desse ser

tangido…23 Sim, tocado por uma afirmação de Pessoa sobre a Natureza, como se esta fosse tão

contrapolar das pessoas24 e da própria unidade conceptual que leva a divinizar a Natureza, como

aliás a naturalizar assim, ainda que incompletamente, os Deuses, os tais Universais, as Ideias.25

A afirmação que aqui se lembra é a seguinte:

“A religião pagã é politeísta. Ora a natureza é plural. A natureza, naturalmente, não nos surge como

um conjunto, mas como “muitas coisas”, como pluralidade de cousas. Não podemos afirmar positivamente, sem o auxílio de um raciocínio interveniente, sem a intervenção da inteligência na experiência directa, que exista, deveras, um conjunto chamado Universo, que haja uma unidade, uma cousa que seja uma, designável por natureza. A realidade, para nós, surge-nos directamente plural. O facto de referirmos todas as nossas sensações à nossa consciência individual é que impõe uma unificação falsa (experimentalmente falsa) à pluralidade com que as cousas nos aparecem. Ora a religião aparece-nos,

(20)

apresenta-se-nos como realidade exterior. Deve portanto corresponder ao característico fundamental da realidade exterior.” 26.

Independentemente do contexto da religião, ou talvez não (pelo que também chamamos

“tentação” mental ou assim luciferina…)27 o politeísmo das coisas-deuses, a pluralidade variada dos

muitos nomes ‘cousados’ dessa maneira28 e por debaixo deles essa pulsação29 do que surge…

como todas as sensações, vibrações que ritmam a consciência, há a experimentação falsa enquanto

nível “zero” de uma tal mentira do mundo exterior como Universo, como unidade.30

§ 2. O multíplice sensível e o uno possível: os limites heterónimos do pensar…

O totum não será pensável senão como limite já num arrepio imaginário de sentir tudo ou

pretender senti-lo de todos os modos.31 Porém, aquela pretensa ‘exterioridade’ do que se sente

‘surgir à consciência’ pode constituir apenas um refluxo inconsciente disso ‘que fica por pensar’32,

disso que só ao ser sentido, como se exterior, se torna tal. E será mesmo tal ?33

A tentação (peirasmós, ou “delimitação” assim em provação…34) está em resumir como quem

conta, não só somando mas totalizando, encaminhando de um viver que só sobrevive vário, e à

solta35, para um pensamento que mede pela igualdade do seu mesmo nexo.36 E isto sem ‘balança’ ou

sem a mercê sequer de uma dialéctica conciliação sonhada.37 Tentação que reflecte o lado mentale

“mentiroso” que se situa na linguagem e na capacidade de simbolizar o alheio sem de facto se

alienar, não podendo sair de si senão para mais reconhecer, em si mesmo, estar entrado.38

Donde a consciência perplexa aquém ou além desse percurso reflexivo perante um ontológico

paradoxo de ‘haver entes e não o nada’39, de o próprio fundamento se complicar num Ser dos

entes que não coincide com a onticidade vária de outras diferenciações possíveis.40 Como se o

pensamento unitário se rasgasse e se abrissem abismos nem sequer da Origem41, do Uno42…, mas

das muitas géneses que cada momento de conhecimento implica além da causalidade pensada de

tudo.43 De facto, na totalidade da lógica mental não se esgota o possível de tudo mais44, pelo que se

volta ao porquê?, além do como?45

Diríamos que em Fernando Pessoa não há a métrica estatuída da interrogação que sonda

abismos, nem a pergunta meramente modal que explica banalidades.46 Antes um tal? Questionante,

tão enigmático como um sorriso triste ou o limite misterioso do vulto heterónimo súbito

aparecido no espelho…47

Os heterónimos não são sentidos (quando muito experimentados, como acima ficou dito pelo

Autor); são, antes, pensados48; comportam-se como “categorias” lógicas de um universo absurdo

‘em que se espera o inesperado’, ou em que se faz tempo para coisa nenhuma…49 Por outro lado,

todo o imenso caudal poético que ritma o sentir é sentido neste velado leito de muitos olhares e nomenclaturas que o tecem como se possível, quando em si ortonimamente, ou nunca tal, o viver é

para se sentir e não para se pensar.50

§ 3. Não a unidade da acção, mas a diversidade técnica do poder.

Então, a lógica está toda no jogo das personalidades e na inter-subjectividade ausente desse ‘drama em gente’, enquanto as estesias poéticas ressaltam do tear de mundos no embaraço de haver cores e sabores, sentires e lembranças, e… sem que deva aí corresponder com alguém para

sequer o reflectir.51

A questão não está na comunidade de um sentir que acerte valores de símbolo ou céu

misticamente acessível a todos52, mas o drama de muitos como primitiva sociedade em que não há

um nós de acção, uma intersubjectividade prática, na glosa fáustica de um absoluto ‘começo na

Acção’.53 Outrossim, sócios vários da Natureza instintiva e solidária em ressentimentos e presenças de poder, antes de sequer consciencializado nosso. Algo pois de retintamente anti-fáustico nesse

drama em fragmentos54 do ‘contágio’,55 sem um «Ao começo…» solene, nem um “afinal”, mas tão

só no tremendo poder do que fica. Fica, como quem não quer a coisa, de permeio.56

É essa societas “avant la lettre” da polis e da nossa sociedade de conhecimento e interesse57 que

(21)

contornando em cada coluna o labirinto da ‘floresta de enganos’ e acertando as falsas portas de

uma orientação outra, onde o sentir respire, ainda que de permeio e sem tempo social senão pela arte do seu efeito.58

Mas será que uma coluna, sequer de palavras tão esbeltas como um sutra, tem efeito que não seja o de poder suportar a sua base e o seu céu no silêncio singular?

“Ideias bruscas, admiráveis, fraseadas em parte com palavras intensamente próprias – mas

desligadas, a coser depois, erigíveis em monumentos; mas a vontade não as acompanharia se houvesse de ter a estética por parceira e não ficar em parágrafos do conto possível – só como linhas, parecendo admiráveis, mas que, em verdade, só o seriam se em torno delas se houvesse escrito o conto em que elas eram momentos expressivos, ditos sintéticos, ligações…” 59

Ou terá a voz possibilitada de se circundar de glosas, moinhos de oração, na parábola social e

no redondo circuito do mercado de actos sem poder?60

Aqui dividem-se os poemas de Pessoa. Talvez apenas para mostrar nuns o efeito nulo de

outros absorventes dos primeiros, ou nem isso…61 Circula nessas possibilidades extremas do dizer62

uma quase-xamânica ‘inspiração’63, assimilando-se em telúrica e ‘antiquíssima noite’ alquímica64 o

que não é, pois, símbolo, mas o sacramento do saber trazido ao ante-sabor do ser.65 Do ser como um

perfeito intermédio sentir-poder ou poder-sentir.

Foi esse o tempo (sempre a ficar impensado em Pessoa)66 que se deixa colher em roteiro de

viagem, em arte do instantâneo de tantas imagens paragens, de um sentir assim de permeio.67

§ 4. Alternativa lição da estética antiga – o neo-paganismo.

Pessoa trouxe, pois, do Sul africano, sob a máscara da cultura inglesa e europeia de base68, o

gesto profundo e equivalente a uma génese sapiencial do Egipto grego69 a partir desse âmago etíope

e mais recôndito até70, fazendo inverter a filtragem germânica e centro-europeia da tradição ária,

como se passagem também cristã e obrigatória para a recuperação do génio antigo.71 A Cultura

Clássica já não será assim obrigada segundo a erudição linguística indo-europeia e o reflexo

hermenêutico de um pensar activo da moral do Ocidente.72 O germe, outrossim oriental, porque

de novo orientante da “mensagem” de Pessoa, provém ainda da épica das estesias homéricas e do frémito plural de um paganismo salvo da história ou do drama da própria helenização do

Cristianismo.73

A volta de retorno a este – por isso, neo-paganismo ‘antigo’ – evita a tradução “filológica” e

mais ainda a sedução mental do significado e, sobretudo, da representação.74 A Hermes bastaria

‘indicar sem ter de declarar’, menos ainda de explicar, como se a hermenêutica pudesse ser chave

de uma compreensão.75 Não. Ali o banquete tem os sabores dos saberes das coisas todas e muitos

os cheiros, as cores e os sons deste bailado da estética helénica nesse puro dar-se conta desse sem conta…

De facto, o pretenso ‘caminho’ do sentir, nem sequer é via, como suposto método, já que ‘por aqui e por ali’, no avulso desse ir andando como quem não quer a coisa, aquilo que impressiona é

até a invasão mística dessas sensações.76 Melhor dizendo, do que me sente a mais de mim mesmo e

no equivalente de tantas supostas pessoas de suporte, de sujeito, como as objectivas máscaras de tanto e tão variado sentir. Porém, mesmo o dizer variado é por demais e, neste ponto zero dos indicativos, caem-nos aos pés as máscaras, sendo de rosto nú, ou sequer sem face alguma, que se

vê sem olhos, se ouve sem ouvidos, se entende sem órgão pensante…77

§ 5. Diferente do ensimesmamento a inquieta vária física de alma…

Estamos próximos do teatro grego, como das tertúlias dos cafés de Lisboa78, nesta evidência

heterónima de um Pessoa que sabe medir este trânsito do oriente da Hélade no ocidental das Hespérides, afinal num entremeio que exclui todo o passo que não seja o “drama extático” de uma

outra viagem: a deslocação do outro em mim.79 Tal como na sábia vertente mediterrânica de uma

(22)

Sohrawardî,80 é, por outro lado (há sempre um outro lado como “lugar” de transcendência…81), uma pátria celeste – uma terra celestial – que mente a todos os pontos cardeais e se mantém

simplesmente no meio.82

Eis o que, cruzando a viagem Sul – Norte com este outro trânsito ‘ex oriente lux’, mostra o banal de uma pretensa geografia euclidiana de Portugal e desta unidade de língua que aqui e agora

refere tal orientação.83 O tal meio é meio do meio e também extremo de toda a orientação possível,

permitindo, aliás, observar como na fragmentação sucessiva, qual aporia lógica dicotómica infinita, se descobre o irredutível de tal ou qual, mesmo que (e sobretudo se) “um não sei quê” que

indómito se sente.84

Então, bem se pode compreender que em pessoa não há a metafísica da Pessoa e das sensações

assim elevadas a estruturações do espaço e tempo como abstractos deuses85, ‘faróis’ da mente e

ofuscantes possibilidades reais mas, outrossim, a naturalização do espírito86 ou, aquém da

virtualidade deste, em tal sempre “segundo parto”87, uma física da alma a justificar a pluralidade das

pessoas.88

Se não a “metafísica das sensações”, segundo a coerência hermenêutica do dito idealismo

mágico, mais rés-vés à profundidade de uma flor da pele, cantam nele as melodias dessa mística sempre dos sentidos e do que neles fica sempre no êxtase carnal bem aquém do dizê-lo ainda.89 Porém, seria pretensão admitir este retensivo assim aquém da linguagem como se esta não fosse, em Pessoa, uma chave zen de um dizer fotográfico, de uma imediatez infindamente serena em seu

mesmo desassossego.90 De facto, indicar a sensação na saudade de um apesar de si mesmo e de

um embora assim usar da linguagem, é por demais exorcizante do que, no heterónimo, era o

cristalizado de um sentido sentido.91

§ 6. Mística de fingir o que se sente para se sentir o que se finge…

A mística pessoana ronda pelos esconsos das ‘moradas’ pouco consistentes de personalidades projectadas, ainda que como exercícios tulku de um visionar objectivante e daquele modo

idealmente consequente, ou seja, numa theoría mágica.92 Todavia não é a vontade que aqui se

condensa numa hiper-práxis que dê a ver93, outrossim, uma inteligência linguística lúdica e deíctica

que pensa como quem pesa na tal “física da alma”, o teor, o tonus, o próprio tropeço de cada sentir

(ainda que assim levado ao grau do puro anestésico).94

Há deste modo “valores” intermédios às personalidades, às razões de dizer, às Ideias absolutas ou ao relativo ainda dos Deuses em processo abstractivo, verificando-se uma falta de abstracção

do sentir sem unidade, sem capacidade outra que não mental, da sua inexorável mentira.95 Mas, se

as sensações são assim fingidas em sua mesma verdade aparente96, aparentam também um lastro

fictício que devolve, da possível abstracção linguística que as nomeia, em direcção a um tal sentir

sem pensar, inefável ou incomunicável.97

Isto que, aliás, parece bem sabido nos “estatutos” nietzscheanos e dramáticos da cultura ocidental revela-se, entretanto, longe do binómio: apolíneo, de um falar sem viver, e dionisíaco, de

um instinto incomunicável98, numa mais ancestral solução que se encontra na perspectiva

caleidoscópica de Pessoa. Trata-se de um olhar inteligentíssimo capaz de tanger o que se sente

como se em sua natureza própria; isto é, intermitentemente.99 E, se o caminho se traduz no

iniciático símbolo do zigzaguear da serpente, os feixes derivados em cada elo desse movimento coleante despertam para transcendentes geometrias que, de facto, abortam a coerência tradicional

do ensinamento inteiro.100

Ficam, isso sim, fragmentos, momentos como ‘peles despidas’ de uma lembrança a mais…, que

a vida está aí, intersticial e oportuna, na pluralidade mesma plural de tal natureza.101 Eis o que faz

pressentir antigos processos técnicos de uma primordial sinergia na construção da mente, das suas supostas regularidades e regime mnésico, face à desproporção até física e sensorial de outras

estesias.102 Numa palavra, a clara consciência da arte de tal split, não tanto de “alma” em corpo,

mas deste e do mais que o pulveriza em sensações múltiplas, no que, – muitíssimo mais tarde, em linguagem transcendental – se pode comensurar como a assimetria entre sentir o que não se pode

(23)

§ 7. Multidimensionalidade da poesia pessoana

Há, pois no “pluralismo” pessoano os expedientes múltiplos desta persistente assimetria, até como garantia de uma fronteira do diverso que não se converta universalmente. Ou seja, técnicas

avulsas para delimitar o que, no seu próprio limite, é instável e efémero.104 E, sejam as linhas de

contorno dos heterónimos, sejam as periferias de uma possibilidade mais elástica de a todas entrelaçar num mesmo suposto ortónimo discurso, como o das considerações em prosa, das

interpretações e auto-análises, etc.105, o que importa salientar é o multidimensional, entretanto

reconhecido do lado diverso, no outro do próprio sentir dispersivo.106

Aqui está o génio de Pessoa, não tanto em fazer-se ouvir através do medium vário de deuses

próximos que lhe falam na inteireza interior de um discurso possível107 ou até no hiper-poeta e

trans-poético dos seus outros “eus”108, quiçá impedindo outra escuta dos Superiores Incógnitos que

imponham um voto de silêncio109; outrossim, nessa geometria não-euclidiana que cava ‘cavernas’

celestes no sentir falso, fazendo das aparências a filigrana em que o cá e o lá se correspondem de

exclusão e incoincidência absoluta.110 Ou nem sequer isso…, que implicava supor um universo e

sua quântica singularidade111, mas o que, em termos de tempo, se limita aos desenhos fractais de

quanto tempo neste mais que dois e menos que o todo.112 Enfim, um símbolo roto e caótico cuja fecundidade se deixa habitar, ora agora, ora noutro hic et nunc por um êxtase assim consciente de

sentir.113

Todo o cuidado de Pessoa está em não fazer declinar esta descida aos ritmos variados da vida numa memória continuada, duracional ou bergsoniana, em que tudo pudesse ser contado, mesmo

que não entendido, numa ‘história pessoal’.114 Não, não há autobiografia e o rio do que se sente

corre na hora parada de um entrelaçar de mãos, como a técnica de tecer, do tear, do fazer tempo

ou do puro passa-tempo.115

Donde não haver nada a fazer116 e só assim a demiurgia maior da vida ao arrepio das várias

sensibilidades, da psicologia da alma dos respectivos heterónimos e do que neles se filtra de

comentário ético, político, artístico, religioso…117 É apenas o limiar instrumental, ou o novum

organon de Pessoa, esse pensar por (ou em) pessoas, já que no ‘espelho mágico’ de um ver sem falar,

ou de um ouvir a voz como se na visão fractal e do ancestral saber védico, se desorganiza a mente

em poesia e esta, em desfaçatez.118

§ 8. Meditação da pluralidade e diferenciação consciente

O hipertrofiado desassossego não é geral, nem sequer assim diz o mesmo de muitos modos ao longo de um drama banal, ou do próprio banal trazido ao extremo tédio de tudo poder conjugar em

deformações do espelho sem toque sequer de imagem, menos ainda de carnação sofrida.119

Assinala, outrossim, como a Mensagem soleníssima o número cabalístico do momento único nesse supremo fingimento de tal ou qual inquietude, talvez sossegado desassossego, ou tão só

desfaçatez.120

Nesse tempo que não tem de ser definitivo, – mas se desfaz do “Era uma vez…” e outras

quejandas expectativas genesíacas ou simétrico eros teleológico121, por conseguinte tão só num

kairós (que até pode não ser oportuno),122 e assim se purifica no que fala sem nada dizer, – é que

se medita a pluralidade.123 Pura pluralidade que é isto e aquilo e aqueloutro e…, não se havendo

sequer de pensar como “terreno” de um sentir, tantas vezes pré-ordenado como sensório comum.124

A meditação está implícita na conjugação extática do verbo de Pessoa, ainda como uma intensidade que tem os seus dias, os seus versos, os seus fragmentos de frases… e diz directamente “estados de coisas” na directa “representação” do que se diz sentir (fingindo, é

claro).125 A pluralidade está sempre a mais e é outra ‘mercê da vida’, ou desta fazendo dom, sem o

nexo subjectivo que obriga a ser actor ou espectador e a reagir na ética de um ‘mundo

justificado’.126 Não que a pluralidade seja uma “solução estética” alienante da mente, mas até

conversiva das possibilidades pensantes para a lucidez consciente. Atenção assim, momentaneamente liberta daquela causalidade de actos e consequências, ou distendida para o

Referências

Documentos relacionados

ABSTRACT: The toxicological effects of crude ethanolic extracts (CEE) of the seed and bark of Persea americana have been analyzed on larvae and pupae of

Consoante à citação acima, destaca-se mais uma vez a contraposição de Pascal em relação ao racionalismo hegemônico no século XVII, pois, enquanto os filósofos implicados

Figura 8 – Isocurvas com valores da Iluminância média para o período da manhã na fachada sudoeste, a primeira para a simulação com brise horizontal e a segunda sem brise

 Para os agentes físicos: ruído, calor, radiações ionizantes, condições hiperbáricas, não ionizantes, vibração, frio, e umidade, sendo os mesmos avaliados

Outros discordaram e alegaram que mesmo sendo usado o mesmo texto, a cada aula percebiam informações novas acerca da fábula e as estratégias não só auxiliaram

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Deste modo, o adequado zoneamento e sua observância são fundamentais para a conciliação da preservação ou conservação de espécies, hábitats e paisagens dentre outras e

Com o objetivo de compreender como se efetivou a participação das educadoras - Maria Zuíla e Silva Moraes; Minerva Diaz de Sá Barreto - na criação dos diversos