r o s a l u m e
Querido amigo, queria dar-lhe conta da minha enorme satisfação pelo encontro de sábado passado [29-08-2011]. As mais de três horas de convívio – na boa companhia de Agripina e Gisela – sumiram como se fossem manualmente rodadas em ponteiros de um mostrador de relógio. Lamento que a sua hora de jantar quase tivesse sido atropelada por esse tempo desalmadamente em fuga. E, no entanto, como que por artes de magia, esse tempo evadido tornou-se terna e eternamente presente em sua ausência, assim a modos da presença- ausência que aparece no seu belo poema «A palavra é frágil» (Génese).
Se bem se lembra – sim, também andámos à volta de lembranças de Vitorino Nemésio – levei-lhe, em fotocópia, uma carta que Henri Lefebvre escreveu a Octávio Paz, infelizmente nunca enviada, ainda que publicada como preâmbulo do seu livro La Présence et l’Absence. Nela, o sociólogo lançava interrogações à sensibilidade do poeta que muito o intrigavam. A dado passo, perguntava-lhe: «?Cómo nace para el poeta esa doble presencia, él con su verbo, y ante él el mundo?». Esta, querido poeta, é daquelas perguntas que não me atrevo a fazer-lhe, assim de repente. Por isso deixei-a, sorrateiramente, em cima da mesa redonda dos seus aposentos, na fotocópia da carta de Lefebvre, limpinha de sublinhados.
No cume da pilha de livros que se alojam na mesa redonda da sua habitação vi, por mero acaso, um livrinho de Octavio Paz, Al Paso. Que surpreendente coincidência! Até aqueles outros livros que repousavam tranquilamente no sofá se agitaram, tombando alguns para o chão, al paso que o de Octavio Paz viajava pelas nossas mãos, ávidas de palavras e de tudo o que elas nos dão em seu trânsito. Depois surgiu a oportunidade de, a páginas tantas (não foi por acaso a página 185?), comungarmos do «brinde ao prémio Nobel». Não espanta que tivéssemos derivado a nossa conversa para os acasos do acaso, tendo vindo à baila Picasso («Yo no busco, encuentro»). Como sociólogo, frequentemente me questiono: que caminhos levam ao nascimento das descobertas científicas? Sem dúvida, caminhos árduos, de caminhadas disciplinadas, feitas por caminheiros cansados de buscas acumuladas. Eis senão quando, inesperadamente, ao virar de qualquer esquina da descrença ou da desmotivação, o deslumbramento da descoberta. Como por acaso.
Em nossas divagações, vimos que o acaso é feito de trânsitos. Creio que é nesses trânsitos que as palavras adquirem vida. Por isso mesmo, Octavio Paz dizia que «les mots font l’amour». Como o meu querido amigo escreveu num sábio poema («As palavras juntam-se e juntando-se separam-se», Animal Olhar), «as palavras «atravessam o vazio do tempo e são formas do tempo que flui no exterior e no íntimo de nós». Teremos aqui o filão da matriz de pensamento que permitirá dar resposta às inquietações lefebvrianas?
Entretanto, viajámos por um livrinho de poemas de Ulalume González de León, poetisa uruguaia, naturalizada mexicana que, bem reparei, deixou-lhe uma simpática dedicatória. Já não me lembro é do nome do livro (será que estou a ficar com aquela maleita do esquecimento de cujo nome não me quero lembrar?). Ao ler-nos alguns versos do livro, de viva voz, fazendo dançar as palavras com o silêncio, percebi melhor o sentido de um poema seu: «Não se pode viver sem», (Relâmpago de Nada): «A palavra deverá apagar as lâmpadas eloquentes e precisas e esperar a vaga do silêncio para que de si mesma possa partir como o navio branco da sua própria essência».
A tertúlia em volta das palavras fez-me compreender que elas são boas não apenas para comunicar, mas também para pensar, sentir e até jogar. Viu como cantámos, em diferentes melopeias, Ulalume?
Que musicalidade tem a palavra! Depois fizemos rotações de palavras, insólitos jogos entre o sentido e o som, num idioma de metamorfoses que nos fez aportar em palavras inimagináveis, como rosalume. Sílabas que se unem entre si, formando unidades sonoras: mantras, sem significado conceptual, mas ricas em sentidos emotivos, mágicos, religiosos: amuletos verbais, talismãs linguísticos, escapulários sonoros que Octavio Paz tão bem soube identificar na sua vasta obra. E descobrimos, como aquele nosso presidente da República que em Espanha se confessava embarassado [engravidado] por não dominar bem a língua espanhola, que há palavras que também se embaraçam de significados briguentos ou então trazem no ventre outras palavras: os trânsitos, por exemplo, podem dar à luz o transe. E não é que os literatos estão grávidos de ratos? Volto a recordar-me de Octávio Paz quando, discorrendo sobre a Nueva Picardia Mexicana, de Armando Jiménez, logo sobrevoou os múltiplos significados da picardia: do acto real de picar à picada imaginária. Creio que por essa via chegámos aos chistes e às anedotas, retratando ocorrências bem reais. «Esta é a última!» – mas havia outra mais, só mais uma para terminar. Assim perdemos a noção do tempo. Enfim, rimo-nos de outros e de nós mesmos e, desse modo, descobrimos a nossa dualidade: nós nos outros, os outros em nós.
Por fim, e voltando à presença-ausência. A sua exposição – Rostos da Escrita – que em boa hora se realizou no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no passado mês de Junho, deixou marcas. Os seus desenhos – com muitos rostos femininos – já não estão em exposição mas, imaginariamente, continuam, para quem quer, a interpelar-nos o olhar, o pensamento, o sentimento. É que há rostos que, mesmo na sua ausência, nos olham com a profundidade de um poema, da mesma forma que há traços, marcas e palavras que nos permitem abarcar tudo o que se possa imaginar.
Em Las Palabras Andantes, Eduardo Galeano sustentava: «Tudo tem, todos temos, rosto e marcas. O cão e a serpente e a gaivota e tu e eu, quem vive e quem viveu e todos os que caminham, se arrastam ou voam: todos temos rostos e marcas. Os Maias acreditam nisso. E acreditam que as marcas, invisíveis, são mais rosto que o rosto invisível». A sua exposição continua presente na sua ausência, à sua sombra teceram-se memórias. Por nos ter dado oportunidade de desvendar as marcas invisíveis dos rostos que desenha. Por não termos deixado de nos sentir olhados pelas miradas invisíveis dos rostos da sedução. Por nos termos descoberto no poema de cada um dos seus desenhos porque de poesia são feitos os rostos que nos continuam a olhar, na sua ausência. Simplesmente porque os podemos imaginar.
Agora sim, vou mesmo de abalada. Como Agripina manifestou interesse em ter acesso ao livro Sousa Martins e suas Memórias Sociais. Sociologia de uma Crença Popular é com muito gosto que lhe envio um exemplar. Quer saber de outra coincidência? José de Souza Martins – não o nosso «santo» mas aquele que é um dos expoentes máximos da sociologia brasileira – convidou-me para, em Outubro próximo, participar numa «mesa redonda» sobre Lefebvre, a realizar em Caxambu. Suspeito que a mesa nada tenha de redonda, costumam ser quadradas. Terei saudades da mesa redonda dos seus aposentos, qual estuário de rio em maré cheia de barcas de palavras. Gisela conhece Souza Martins, que este mês acabou de publicar mais um livro apaixonante: Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica. Ele é também um grande admirador da obra do meu querido poeta. Em Maio de 2006, se bem me lembro, esteve na Casa Fernando Pessoa, no lançamento de Vasos Comunicantes. Já agora, aproveito para lhe enviar um exemplar do meu mais recente livro, Lufa-lufa Quotidiana. Ensaios sobre Cidade, Cultura e Vida Urbana. Não, não trata tanto daquele tempo benfeitor que nos presenteia quando foge sem dar-mos conta – esse é o tempo dos encontros gratos, como o que tivemos no sábado passado, gerador de memórias que o tornam presente em sua ausência. Há outro tempo, o que nos embaraça e consome em seus contratempos. No «correr de vida» que, como dizia Guimarães Rosa, «embrulha tudo».
Um abraço amigo deste que muito o admira. José Machado Pais
josé bivar
A mão que canta os pássaros…
Foi em 2008 inaugurada no museu coleção berardo pelo então ministro da cultura francês Jack Lang a exposição "Desenhos de Escritores", com cerca de 300 desenhos de uma centena de autores consagrados, que pretendeu promover uma reflexão em torno do que une e separa a escrita do desenho e da pintura. Esta exposição inédita reuniu uma grande diversidade de escritores que também desenham, de George Sand a Bernard Heidsieck, do romantismo à poesia sonora, passando pelos surrealistas, até à "beat generation", representada, por exemplo, por Jack Kerouac e William Burroughs.
Coube agora a honra à Associação de Artistas Plásticos do Algarve de apresentar uma colecção de desenhos inéditos do nosso mais ilustre poeta vivo, na sua terra natal -‐ Faro. Mas ouçamos o que nos diz o poeta deste seu acto criador:
"Eu faço uns desenhos que são rostos e faço-‐os com uma grande espontaneidade: são automáticos e confluentes, quer dizer, não estou a pensar se faço uma linha, que vou fazer aquela linha: depois é que sai o meu trabalho -‐ e por isso é que eu faço em segundos um desenho."
A obra poética de António Ramos Rosa, como a de Henri Michaux, escreve a crítica de arte Maria João Fernandes, «não é mero contraponto verbal do seu discurso de sinais vivos, que hoje nos apresenta, fugazes, densamente coloridos, ou de um negrume palpitante que duplica os enigmas que lhe estão subjacentes. Mas uma voz que torna audível, compreensível, o maravilhoso que preside a toda a experiência estética, estado que nos devolve "o jardim exaltado" (Henri Michaux) do paraíso, sublimando um terror, um espanto originários e inseparáveis da condição humana».
De acordo com Maria João Fernandes, a contaminação entre as linguagens da poesia e da pintura na modernidade vem de uma tradição europeia que passa pelos gregos, Idade Média, Barroco e pelos pioneiros que renovaram esta tradição Mallarmé e Apollinaire. No caso de Ramos Rosa, o desenho tem vindo a acompanhar a sua obra, como sinal caligráfico evocando a fragilidade da poesia.
Parafraseando uma poetisa que dedica um poema aos desenhos de Ramos Rosa, Maria do Sameiro Barroso,
“ (…)Nos olhos de um Poeta, a dança do mundo, os seus desenhos festivos acariciam a luz, os seus bailados.(…)”
Acrescentaria que esses bailados são a expressão deste Algarve andaluz que transparece nos rostos femininos e no trinar dos pássaros que a sua mão solta para o canto amoroso e fugaz num gesto que é todo uma filosofia do Ser deste lugar ao Sul.