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josé machado pais

No documento Rosalume (páginas 105-108)

 

r  o  s  a  l  u  m  e  

 

 

 

Querido amigo, queria dar-lhe conta da minha enorme satisfação pelo encontro de sábado passado [29-08-2011]. As mais de três horas de convívio – na boa companhia de Agripina e Gisela – sumiram como se fossem manualmente rodadas em ponteiros de um mostrador de relógio. Lamento que a sua hora de jantar quase tivesse sido atropelada por esse tempo desalmadamente em fuga. E, no entanto, como que por artes de magia, esse tempo evadido tornou-se terna e eternamente presente em sua ausência, assim a modos da presença- ausência que aparece no seu belo poema «A palavra é frágil» (Génese).

Se bem se lembra – sim, também andámos à volta de lembranças de Vitorino Nemésio – levei-lhe, em fotocópia, uma carta que Henri Lefebvre escreveu a Octávio Paz, infelizmente nunca enviada, ainda que publicada como preâmbulo do seu livro La Présence et l’Absence. Nela, o sociólogo lançava interrogações à sensibilidade do poeta que muito o intrigavam. A dado passo, perguntava-lhe: «?Cómo nace para el poeta esa doble presencia, él con su verbo, y ante él el mundo?». Esta, querido poeta, é daquelas perguntas que não me atrevo a fazer-lhe, assim de repente. Por isso deixei-a, sorrateiramente, em cima da mesa redonda dos seus aposentos, na fotocópia da carta de Lefebvre, limpinha de sublinhados.

No cume da pilha de livros que se alojam na mesa redonda da sua habitação vi, por mero acaso, um livrinho de Octavio Paz, Al Paso. Que surpreendente coincidência! Até aqueles outros livros que repousavam tranquilamente no sofá se agitaram, tombando alguns para o chão, al paso que o de Octavio Paz viajava pelas nossas mãos, ávidas de palavras e de tudo o que elas nos dão em seu trânsito. Depois surgiu a oportunidade de, a páginas tantas (não foi por acaso a página 185?), comungarmos do «brinde ao prémio Nobel». Não espanta que tivéssemos derivado a nossa conversa para os acasos do acaso, tendo vindo à baila Picasso («Yo no busco, encuentro»). Como sociólogo, frequentemente me questiono: que caminhos levam ao nascimento das descobertas científicas? Sem dúvida, caminhos árduos, de caminhadas disciplinadas, feitas por caminheiros cansados de buscas acumuladas. Eis senão quando, inesperadamente, ao virar de qualquer esquina da descrença ou da desmotivação, o deslumbramento da descoberta. Como por acaso.

Em nossas divagações, vimos que o acaso é feito de trânsitos. Creio que é nesses trânsitos que as palavras adquirem vida. Por isso mesmo, Octavio Paz dizia que «les mots font l’amour». Como o meu querido amigo escreveu num sábio poema («As palavras juntam-se e juntando-se separam-se», Animal Olhar), «as palavras «atravessam o vazio do tempo e são formas do tempo que flui no exterior e no íntimo de nós». Teremos aqui o filão da matriz de pensamento que permitirá dar resposta às inquietações lefebvrianas?

Entretanto, viajámos por um livrinho de poemas de Ulalume González de León, poetisa uruguaia, naturalizada mexicana que, bem reparei, deixou-lhe uma simpática dedicatória. Já não me lembro é do nome do livro (será que estou a ficar com aquela maleita do esquecimento de cujo nome não me quero lembrar?). Ao ler-nos alguns versos do livro, de viva voz, fazendo dançar as palavras com o silêncio, percebi melhor o sentido de um poema seu: «Não se pode viver sem», (Relâmpago de Nada): «A palavra deverá apagar as lâmpadas eloquentes e precisas e esperar a vaga do silêncio para que de si mesma possa partir como o navio branco da sua própria essência».

A tertúlia em volta das palavras fez-me compreender que elas são boas não apenas para comunicar, mas também para pensar, sentir e até jogar. Viu como cantámos, em diferentes melopeias, Ulalume?

     

Que musicalidade tem a palavra! Depois fizemos rotações de palavras, insólitos jogos entre o sentido e o som, num idioma de metamorfoses que nos fez aportar em palavras inimagináveis, como rosalume. Sílabas que se unem entre si, formando unidades sonoras: mantras, sem significado conceptual, mas ricas em sentidos emotivos, mágicos, religiosos: amuletos verbais, talismãs linguísticos, escapulários sonoros que Octavio Paz tão bem soube identificar na sua vasta obra. E descobrimos, como aquele nosso presidente da República que em Espanha se confessava embarassado [engravidado] por não dominar bem a língua espanhola, que há palavras que também se embaraçam de significados briguentos ou então trazem no ventre outras palavras: os trânsitos, por exemplo, podem dar à luz o transe. E não é que os literatos estão grávidos de ratos? Volto a recordar-me de Octávio Paz quando, discorrendo sobre a Nueva Picardia Mexicana, de Armando Jiménez, logo sobrevoou os múltiplos significados da picardia: do acto real de picar à picada imaginária. Creio que por essa via chegámos aos chistes e às anedotas, retratando ocorrências bem reais. «Esta é a última!» – mas havia outra mais, só mais uma para terminar. Assim perdemos a noção do tempo. Enfim, rimo-nos de outros e de nós mesmos e, desse modo, descobrimos a nossa dualidade: nós nos outros, os outros em nós.

Por fim, e voltando à presença-ausência. A sua exposição – Rostos da Escrita – que em boa hora se realizou no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no passado mês de Junho, deixou marcas. Os seus desenhos – com muitos rostos femininos – já não estão em exposição mas, imaginariamente, continuam, para quem quer, a interpelar-nos o olhar, o pensamento, o sentimento. É que há rostos que, mesmo na sua ausência, nos olham com a profundidade de um poema, da mesma forma que há traços, marcas e palavras que nos permitem abarcar tudo o que se possa imaginar.

Em Las Palabras Andantes, Eduardo Galeano sustentava: «Tudo tem, todos temos, rosto e marcas. O cão e a serpente e a gaivota e tu e eu, quem vive e quem viveu e todos os que caminham, se arrastam ou voam: todos temos rostos e marcas. Os Maias acreditam nisso. E acreditam que as marcas, invisíveis, são mais rosto que o rosto invisível». A sua exposição continua presente na sua ausência, à sua sombra teceram-se memórias. Por nos ter dado oportunidade de desvendar as marcas invisíveis dos rostos que desenha. Por não termos deixado de nos sentir olhados pelas miradas invisíveis dos rostos da sedução. Por nos termos descoberto no poema de cada um dos seus desenhos porque de poesia são feitos os rostos que nos continuam a olhar, na sua ausência. Simplesmente porque os podemos imaginar.

Agora sim, vou mesmo de abalada. Como Agripina manifestou interesse em ter acesso ao livro Sousa Martins e suas Memórias Sociais. Sociologia de uma Crença Popular é com muito gosto que lhe envio um exemplar. Quer saber de outra coincidência? José de Souza Martins – não o nosso «santo» mas aquele que é um dos expoentes máximos da sociologia brasileira – convidou-me para, em Outubro próximo, participar numa «mesa redonda» sobre Lefebvre, a realizar em Caxambu. Suspeito que a mesa nada tenha de redonda, costumam ser quadradas. Terei saudades da mesa redonda dos seus aposentos, qual estuário de rio em maré cheia de barcas de palavras.   Gisela conhece Souza Martins, que este mês acabou de publicar mais um livro apaixonante: Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica. Ele é também um grande admirador da obra do meu querido poeta. Em Maio de 2006, se bem me lembro, esteve na Casa Fernando Pessoa, no lançamento de Vasos Comunicantes. Já agora, aproveito para lhe enviar um exemplar do meu mais recente livro, Lufa-lufa Quotidiana. Ensaios sobre Cidade, Cultura e Vida Urbana. Não, não trata tanto daquele tempo benfeitor que nos presenteia quando foge sem dar-mos conta – esse é o tempo dos encontros gratos, como o que tivemos no sábado passado, gerador de memórias que o tornam presente em sua ausência. Há outro tempo, o que nos embaraça e consome em seus contratempos. No «correr de vida» que, como dizia Guimarães Rosa, «embrulha tudo».

Um abraço amigo deste que muito o admira. José Machado Pais

     

 

 

 

josé  bivar    

 

A  mão  que  canta  os  pássaros…      

   

Foi  em  2008  inaugurada  no  museu  coleção  berardo  pelo  então  ministro  da  cultura  francês   Jack   Lang   a   exposição   "Desenhos   de   Escritores",   com   cerca   de   300   desenhos   de   uma   centena  de  autores  consagrados,  que  pretendeu  promover  uma  reflexão  em  torno  do  que   une  e  separa  a  escrita  do  desenho  e  da  pintura.  Esta  exposição  inédita  reuniu  uma  grande   diversidade  de  escritores  que  também  desenham,  de  George  Sand  a  Bernard  Heidsieck,  do   romantismo   à   poesia   sonora,   passando   pelos   surrealistas,   até   à   "beat   generation",   representada,  por  exemplo,  por  Jack  Kerouac  e  William  Burroughs.  

Coube   agora   a   honra   à   Associação   de   Artistas   Plásticos   do   Algarve   de   apresentar   uma   colecção  de  desenhos  inéditos    do  nosso  mais  ilustre  poeta  vivo,  na  sua  terra  natal  -­‐  Faro.   Mas  ouçamos  o  que  nos  diz  o  poeta  deste  seu  acto  criador:  

 

"Eu   faço   uns   desenhos   que   são   rostos   e   faço-­‐os   com   uma   grande   espontaneidade:  são  automáticos  e  confluentes,  quer  dizer,  não  estou  a   pensar  se  faço  uma  linha,  que  vou  fazer  aquela  linha:  depois  é  que  sai  o   meu  trabalho  -­‐  e  por  isso  é  que  eu  faço  em  segundos  um  desenho."    

A  obra  poética  de  António  Ramos  Rosa,  como  a  de  Henri  Michaux,  escreve  a  crítica  de  arte   Maria   João   Fernandes,   «não   é   mero   contraponto   verbal   do   seu   discurso   de   sinais   vivos,   que   hoje   nos   apresenta,   fugazes,   densamente   coloridos,   ou   de   um   negrume   palpitante   que   duplica   os   enigmas   que   lhe   estão   subjacentes.   Mas   uma   voz   que   torna   audível,   compreensível,  o  maravilhoso  que  preside  a  toda  a  experiência  estética,  estado  que  nos   devolve   "o   jardim   exaltado"   (Henri   Michaux)   do   paraíso,   sublimando   um   terror,   um   espanto  originários  e  inseparáveis  da  condição  humana».  

De  acordo  com  Maria  João  Fernandes,  a  contaminação  entre  as  linguagens  da  poesia  e  da   pintura   na   modernidade   vem   de   uma   tradição   europeia   que   passa   pelos   gregos,   Idade   Média,  Barroco  e  pelos  pioneiros  que  renovaram  esta  tradição  Mallarmé  e  Apollinaire.   No   caso   de   Ramos   Rosa,   o   desenho   tem   vindo   a   acompanhar   a   sua   obra,   como   sinal   caligráfico  evocando  a  fragilidade  da  poesia.  

Parafraseando  uma  poetisa  que  dedica  um  poema  aos  desenhos  de  Ramos  Rosa,  Maria  do   Sameiro  Barroso,  

 

“  (…)Nos  olhos  de  um  Poeta,  a  dança  do  mundo,     os  seus  desenhos  festivos  acariciam  a  luz,     os  seus  bailados.(…)”  

Acrescentaria  que  esses  bailados  são  a  expressão  deste  Algarve  andaluz  que  transparece   nos  rostos  femininos  e  no  trinar  dos  pássaros  que  a  sua  mão  solta  para  o  canto  amoroso  e   fugaz  num  gesto  que  é  todo  uma  filosofia  do  Ser  deste  lugar  ao  Sul.  

     

 

 

No documento Rosalume (páginas 105-108)