• Nenhum resultado encontrado

2.1. PRIMEIRA IDA A CAMPO

2.1.5. APÊNDICE – CARNAVAL 2014

Sem a possibilidade de acompanhar in loco o carnaval de 2014 em Salvador, acabei prestigiando a folia através da cobertura televisiva da TVE, já mencionada rede de televisão pública da Bahia, disponibilizada online em seu portal de internet. A emissora baiana foi a única a se dedicar a passagem dos blocos afro e afoxés pelas ruas da capital baiana.

Acompanhar o carnaval via cobertura televisiva representou a oportunidade de enxergar a festa por outro ângulo, diferente do que a presença física me permitira um ano

antes. Para quem seguiu os blocos pelas ruas e avenidas, restringir-se ao áudio e imagens da transmissão televisiva trazia consigo a angústia de querer ver e ouvir mais, mas ter de se conformar com o que me era oferecido. Afinal, quem decidiria onde deteria meus olhos e ouvidos não era mais eu, mas sim o operador de câmera e a edição da transmissão.

A experiência de acompanhar os desfiles através da transmissão televisiva não se compara, de forma alguma, com a experiência de vivenciar o carnaval dos blocos in loco. Por mais que os jornalistas se esforcem para fornecer informações relevantes, e que os cinegrafistas busquem os melhores ângulos para capturar as imagens da folia, acompanhar a passagem dos blocos tendo a mediação da televisão impede sua plena vivência. Aquilo que tanto me afetou no ano anterior. A possibilidade de observar a concentração de um músico, o cansaço de uma vendedora ambulante ou a felicidade de um espectador. Sentir na pele, literalmente, a batida dos tambores. Como disse Miguel Arcanjo, um dos fundadores do Malê Debalê, em entrevista:

Se um cara estiver tocando um surdo, quando bate você sente batendo no coração, fazendo tum, tum, tum. E ele parece que acompanha, né? E as vezes o coração acompanha ele também, né? É por isso que o cara não pode nem acelerar muito, porque quem está ouvindo pode ter um infarto. De repente o coração se descompassa, se torna independente, começa a acompanhar a batida do tambor e seu corpo não aguenta. (Miguel Arcanjo. Origem dos instrumentos de batuque - Malê Debalê)36

De toda forma, e com todas as limitações existentes, foi possível observar alguns aspectos do desfile.

OLODUM - O povo Ashanti - O Trono Dourado - a Rainha Mãe Yaa Asentewaa

Naquele ano, dentre as agremiações pesquisadas, coube ao Olodum a primazia nos desfiles, ganhando o Campo Grande na sexta-feira, as 19h00min, para apresentar a história da etnia Ashanti, originária de Gana, bem como a tradição da metalurgia e ourivesaria africanas desde tempos remotos, além de um vislumbre da figura da rainha Yaa Asentewaa.

Patrocinadores estampados em enormes balões e nas laterais do trio, como no ano anterior ganhavam certo destaque. Acima, os cantores, três homens e uma mulher, trajados com abadás essencialmente brancos, tingidos com alguns pontos coloridos que lembravam o salpicar de tinta, ora revezavam-se na condução das canções, ora cantavam em uníssono.

36YouTube. “Origem dos instrumentos de batuque - Malê Debalê”. Vídeo (4min01s). Disponível em:

O grupo de músicos também estava dividido. A maior parte seguia do asfalto, com roupas marcadas por grafismos em preto e branco. A outra parte, composta pelos músicos que fazem parte da Banda Olodum, acompanhou os cantores no alto do trio. Suas roupas em tons de amarelo, laranja e verde limão, diferenciavam-se por completo da utilizada pelos percussionistas de solo.

Entre os foliões o abadá ganhava o predomínio da cor amarela, com algumas listras nas cores verde, vermelho e preto, alusivas ao próprio Olodum e ao continente africano. Era perceptível a presença de alguns diminutos elementos gráficos nestes abadás, sendo, no entanto, possível identificar somente o símbolo do bloco, destacado ao centro.

Ao passar pelo circuito da orla, o Olodum assemelhava-se aos demais blocos de trio que por ali também passavam, sendo basicamente um trio elétrico com cantores e músicos seguido por um conjunto de foliões trajados com abadás e com espaço delimitado por cordas. Já no circuito do centro da cidade, o Olodum passava a compartilhar da mesma organização observada nos demais blocos afro, contando com um grande número de percussionistas no chão, a amplificar a sonoridade produzida pelo trio, bem como a presença de ala de dança coreografada, sendo esta composta por homens e mulheres trajados com uma túnica branca repleta de símbolos dourados e trazendo um lenço branco a cobrir parte de suas cabeças.

Em suma, ficava patente a metamorfose que sofre o Olodum ao alternar entre os dois principais circuitos do carnaval soteropolitano. Embora dotados da mesma essência, a forma escolhida para apresentar o mesmo tema nos distintos locais era consideravelmente diferente, demonstrando capacidade de adaptação do bloco aos dois contextos carnavalescos, sem perder de vista o mote escolhido para o desfile.

MALÊ DEBALÊ - Malê Debalê: 35 anos quebrando paradigmas

O sábado foi novamente dedicado à observação televisiva da passagem dos blocos pelo Circuito Osmar. O primeiro a ganhar o largo do Campo Grande foi o Malê Debalê, as 18h00min.Completando 35 anos de fundação, o bloco optou por apresentar sua própria história na avenida.

O trio do bloco trazia três cantores, sendo dois homens e uma mulher, conduziam as canções quase sempre em uníssono. Trajavam uma túnica predominantemente vermelha, com uma estamparia central em padrão tradicional do bloco, e os dizeres “quebrando paradigmas”. Seguido ao trio veio a ala dos músicos. Dezenas de percussionistas trajando calças vermelhas e túnicas no padrão de estamparia do bloco. Era possível identificar, tanto por

imagem como por sonoridade, a presença de surdos, caixas, repiques e timbais, todos caracterizados com o símbolo do Malê, dentre os quais vários carregavam os dizeres “Malê Afro Beat”.

Um segundo trio elétrico trouxe duas figuras em destaque. Na parte da frente do trio, uma mulher trajando um suntuoso vestido em branco e dourado, com detalhes em palha, fazia graciosos movimentos. Era a “Rainha do Malê”, cuidadosamente anunciada através de uma música específica em sua honra.

Na parte de trás do trio um homem recebia semelhante destaque. Trajado com roupa que seguia o mesmo padrão da usada pela Rainha, era este o “Negro Malê”, também responsável por elegantes movimentos perfeitamente alinhados com o toque dos tambores.

A passagem do bloco seguiu com um grande número de foliões, que também trajavam vestes baseadas na estamparia já mencionada, bem como uma grande quantidade de alas de dança. A multidão que compunha estas alas era tão impressionante que a transmissão televisiva optou por apresentá-la sempre em ângulo aberto, tentando dar cabo de todo aquele contingente.

A jornalista responsável por conduzir a transmissão ressaltou, por mais de uma vez, que o bloco era composto por mais de quatro mil componentes. O tamanho do Malê Debalê impressionava a imprensa e a mim mesmo que, um ano antes, pude sentir a pulsação de suas batidas, mas não consegui mensurar corretamente sua dimensão.

A abertura do ângulo de câmera, além de proporcionar uma perspectiva mais geral da passagem do bloco, permitiu perceber um pouco do entorno, onde se estabelecia o público. O quadro me pareceu um pouco menos desolador quando comparado com o ano anterior. Mesmo as arquibancadas, completamente vazias durante a passagem do Malê Debalê, em 2013, desta vez contavam com um pequeno, mas presente, público. Provavelmente a ocorrência do desfile em horário antecipado privilegiou o bloco.

Durante a transmissão do desfile do Malê Debalê, por vezes a locutora lembrou aos telespectadores que em alguns minutos a emissora passaria a transmitir a saída do Ilê Aiyê de sua sede, na Liberdade, o que de fato se concretizou com o Malê Debalê ainda na avenida.

AFRÓDROMO

A segunda-feira seria concentrada no Circuito Osmar, com o ressurgimento do chamado Afródromo. Diferente do que ocorrera em 2013, quando os blocos foram aglomerados em um desfile único, realizado as 11h00min, onde a desorganização e a falta de

cooperação de parte do público e imprensa deram o tom, o Afródromo agora ganhava novos contornos.

A primeira mudança foi de horário. Abandonou-se a manhã em favor do desfile noturno, a ser iniciado às 18h30min. A segunda mudança foi o desmanche do grande e amorfo bloco que ganhou as ruas no ano anterior, passando a contar com a apresentação de cada entidade de maneira individual, obedecendo a uma ordem pré-estabelecida. No entanto, para os desavisados, ou desatentos, nada havia de visível que diferenciasse o desfile do Afródromo dos demais desfiles recorrentes no Circuito Campo Grande. Seria a mera continuação da ordem de passagem dos blocos, iniciada tão logo a tarde se apresentou.

Quando o projeto do Afródromo surgiu, ainda em 2013, havia entendido que se tratava de uma forma de luta legítima por mais espaço e prestígio para os blocos afro e afoxés dentro do carnaval de Salvador. Por isso mesmo, contava com uma participação maciça destas agremiações, a despeito de algumas posições contrárias como a assumida pelo Olodum.

Entretanto, não foi o que pude observar neste ano de 2014. Salvador conta com mais de sessenta blocos afro e menos de uma dezena destes se viu representado na avenida. Em geral, os que ganharam as ruas sob a chancela do Afródromo foram os que sempre tiveram espaço, mesmo que periférico. Se a organização dos circuitos, ao enfileirar blocos, privilegiava os de trio aos afros e afoxés, estes também definiam prioridades ao organizar seu próprio desfile.

Nos três dias de desfile do Afródromo (domingo, segunda e terça), passaram pelo Campo Grande os blocos Ilê Aiyê e Malê Debalê, protagonistas deste estudo, bem como Muzenza, Okambi e Cortejo Afro. Também tiveram espaço os afoxés Filhos de Gandhy e Filhas de Gandhy, bem como os blocos de índio Comanche (acompanhado dos grupos Viola de Doze/Filosofia de Quintal) e Apaches do Tororó, sob regência do cacique Carlinhos Brown, idealizador do projeto. Segundo palavras do próprio Brown: "A gente passa a ter um Circuito. Conseguimos ordenar algo que estava perdido. O carnaval precisa passar por isso. Nós precisávamos disso, encontrar um lugar, trazer os blocos37".

ILÊ AIYÊ - Do Ilê Axé Jitolú para o Mundo – Ah se não fosse o Ilê Aiyê

37

"Carnaval 2014 terá Vila Infantil e 3 dias de Afródromo: veja novidades". (Disponível em g1.globo.com/bahia/carnaval/2014/noticia/2013/11/carnaval-2014-tera-vila-infantil-e-3-dias-de-afrodromo-veja- novidades.html. Acessado em 9 de junho de 2015.)

Na segunda-feira, coube ao Ilê Aiyê a primazia nos desfiles do Afródromo. Oportunidade para tentar observar tudo aquilo que não fora possível na cobertura televisiva de sua saída do Curuzu, ainda no sábado.

Logo após os balões com os costumeiros patrocinadores, foi a ala de dança a primeira face que o Ilê Aiyê apresentou. Com um bailado nitidamente coreografado, mulheres evoluíram na avenida, trajando vestidos em tons de amarelo e dourado, bem como os indefectíveis turbantes, uma das marcas do bloco.

Na sequência um pequeno grupo de senhoras, todas vestidas como as tradicionais baianas - ou como as iyalorixás do Candomblé - avançou pelo circuito, resguardadas por grandes sombrinhas que funcionavam como alegoria, já que nem o Sol, tampouco a chuva, se faziam presentes.

Mesmo antes da chegada do primeiro trio elétrico, já era possível observar um bom número de foliões. A roupa deste ano era basicamente branca e amarela, sendo este rajado por preto, o que fazia, por vezes, lembrar uma alcateia de tigres.

Abro espaço para um breve comentário que se faz necessário. A transmissão da TVE contava com a participação de duas mulheres, sendo uma responsável pela apresentação e a outra pelos comentários a respeito do desfile. Ambas utilizavam em suas vestimentas tecidos com a mesma padronagem exibida pelo Ilê Aiyê, provavelmente oriundos do próprio bloco. Entretanto, mais interessante do que observar o compartilhamento de signos entre bloco e imprensa, foi ouvir a fala de Juliana Ribeiro, cantora e responsável pelos comentários, ainda nos primeiros momentos da passagem do Ilê Aiyê:

É bacana a gente se sentir identificado, refletido, porque a beleza desse povo é também a nossa beleza. Abre caminhos para que hoje, por exemplo, a gente esteja transmitindo ao vivo, com a nossa cara, com nosso jeito, com a nossa estética, que é tão identificada com eles. Somos nós. (Juliana Ribeiro. Transmissão do Carnaval. Salvador: TVE Bahia, 3 de março de 2014. Programa de TV)

Mais do que simplesmente ostentar signos do bloco, a comentarista apresentou-se como parte daquele universo. Demonstrou um sentimento de pertencimento a um coletivo maior do que a própria agremiação, coletivo do qual ela e os foliões eram partícipes. Juliana fala em um “nós” que pode ser entendido como “negros”, e não só de Salvador. Considerei tal passagem digna de nota, uma vez que uma das propostas centrais dos blocos afro é atuar positivamente sobre a autoestima da população negra, conclamando-a a superação de problemas comuns.

Retomando o desfile propriamente dito, surgiu o primeiro trio, trazendo em destaque um letreiro no qual era possível ler: “Ilê Aiyê 40 Anos”. Ainda na parte frontal do carro, sobre os dizeres mencionados, destacava-se a figura da “Deusa do Ébano” do ano de 2014, em longas vestes amarelas, com detalhes rajados, seguindo o padrão assumido para todo o bloco, bem como detalhes em palha nos braços e cabelos. No mesmo trio, em sua porção mais central, outras quatro mulheres também dançavam, cada qual utilizando trajes individualizados, mas que não destoavam de todo o conjunto.

Entre o primeiro e o segundo trio elétrico, apareceu o conjunto de percussionistas, predominantemente trajados de amarelo, trazendo a roupa uma amarração no ombro direito, o que lhe conferia ares de túnica.

Já no segundo trio foi possível observar, sem muito esforço, um enorme telão que alternava imagens alusivas aos patrocinadores e a história do próprio bloco, trazendo para a avenida a memória de carnavais passados. Deste segundo trio, em determinado momento do desfile, surgiu uma surpresa. Instrumentos de sopro pontuaram a marcação dos tambores, o que não era usual.

Os demais integrantes do bloco trajavam primordialmente branco, associado com a estamparia proposta para aquele ano. Entre as mulheres, gargantilhas, colares de contas, pulseiras e brincos chamavam a atenção, assim como os belos cabelos trançados, lenços, turbantes que desafiam nossa compreensão e surpreendentes leques, em variadas cores e modelos, que, tal qual um sorvete da Ribeira, ajudavam a aplacar o calor tão típico do verão soteropolitano. Entre os homens era possível ver o uso de chapéus e também de turbantes, bem como variados colares de contas.

Com um percurso de aproximadamente quatro quilômetros, percorrido em cerca de cinco horas, ficava impossível para a televisão acompanhar toda a passagem de um bloco, uma vez que bastava este dobrar a primeira esquina para que o segundo já iniciasse seus preparativos. E assim foi feito. Depois de cerca de uma hora de transmissão, a TVE passou a se dedicar a transmissão do desfile do bloco Muzenza.