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2.4. QUARTA IDA A CAMPO

2.4.3. CAMINHADA DA LIBERDADE 2015

Já era véspera da Caminhada da Liberdade quando resolvi tentar falar diretamente com Claudio Araújo, presidente do Malê Debalê. Após encontrar seu perfil em uma rede social, enviei mensagem tentando alguma possibilidade de agendamento.

A resposta de Claudio veio ao final do dia, pedindo para que entrasse em contato na manhã seguinte, através do telefone. Número devidamente anotado, foi questão de tempo até a realização de uma nova tentativa.

Naquele exato momento, Claudio estava de saída, com outros integrantes do Malê Debalê, para a gravação de um programa para a TV Baiana. Seria impossível agendar qualquer coisa para aquela data, mas eis que Claudio sugeriu que nos encontrássemos na própria sede da televisão. Sem outras opções no horizonte, aceitei a ideia e corri para o endereço na Federação, não muito distante de onde estava hospedado.

O programa, que seria exibido ao vivo, começaria as 12h00min. Cheguei ao local pouco antes do horário marcado e acabei encontrando Claudio, Miguel Arcanjo, Mestre César e outros quatro músicos do Malê, ainda no estacionamento.

Todos devidamente cumprimentados, seguimos juntos para a área onde ficava o estúdio. Lá encontramos Almir Santana, apresentador do programa “De Olho na Cidade”, além de Lazinho, cantor do Olodum que já havia entrevistado.

Enquanto aguardavam o início da atração, os integrantes dos dois blocos conversavam animadamente sobre futebol. Não demorou para que o apresentador convidasse Mestre Cesar e demais músicos para entrar. Do lado de fora era possível acompanhar o programa através de um monitor. Lazinho, Claudio e Miguel seguiam conversando sobre futebol. Eram dias decisivos para as equipes baianas na segunda divisão do campeonato nacional.

Depois de 10 minutos, foi efetuada uma substituição. Retornaram os músicos do Malê e Lazinho entrou no estúdio, não sem antes entregar um cd com playback da música que iria apresentar. Lembrando que Lazinho não contava com músicos do Olodum para lhe acompanhar.

Do lado de fora, integrantes do Malê observavam a apresentação de Lazinho, enquanto discutiam a programação para o restante do dia. Como em outros anos, o Malê estaria presente na Caminhada da Liberdade, marcada para ter início dali duas horas.

Para encerrar o programa, que tinha como pauta o Dia da Consciência Negra, retornaram ao estúdio os músicos do Malê Debalê, para tocarem uma canção com Lazinho. Miguel Arcanjo e Claudio também adentraram o estúdio. Todos trajados com camisetas alusivas a Caminhada da Liberdade. Em um dado momento em que lhe foi dada a palavra, Miguel ressaltou o evento. Quando a vez foi de Lazinho, este ressaltou a 36ª Marcha Zumbi dos Palmares, caminhada que seria realizada na região central da cidade e da qual o Olodum faria parte.

Finalizada a atração, muitas fotos e abraços entre músicos, dirigentes e equipe técnica da televisão. Lazinho se despediu e rapidamente deixou o espaço. Procurei Claudio para tentar o agendamento de nossa entrevista. Foi quando o presidente do Malê sugeriu que a realizássemos ali mesmo, naquele momento. Ideia aceita e levada a cabo.

Claudio Araujo é filho de Josélio Araujo, um dos fundadores do Malê Debalê. Dirigente que representa uma nova geração, Claudio procura modernizar o bloco, abrindo a instituição para novas possibilidades sem deixar de lado suas tradições. Em uma conversa não muito longa, falou sobre o bloco em si, sobre a relação entre os blocos de Salvador, bem como a respeito da atuação política do mesmo. Entrevista finalizada, recebi das mãos de Claudio uma camiseta alusiva a Caminhada da Liberdade, idêntica a que os integrantes do Malê vestiam. Despedimos-nos com a promessa de novo encontro durante a caminhada.

O tempo urgia e em desabalada carreira segui para a Liberdade, a fim de acompanhar o evento realizado pelo Fórum de Entidades Negras. Já na Ladeira do Curuzu, encontrei cenário semelhante ao do ano anterior. Uma grande quantidade de pessoas na rua, ambulantes, faixas alusivas ao evento dispostas entre postes e muita música. Alguns postes traziam ainda um pequeno cartaz, informando da presença do Ex-Presidente Lula na caminhada.

Cheguei a Senzala do Barro Preto, que parecia mais agitada do que em 2014. Talvez a presença de Lula fosse a responsável por todo aquele movimento. Sem conseguir adentrar o espaço, posicionei-me junto ao portão para tentar encontrar algum rosto conhecido, ao mesmo tempo em que observava a circulação de pessoas.

O carro de som que subiria o Curuzu havia acabado de se posicionar em frente à sede quando os primeiros tambores do Ilê Aiyê puderam ser ouvidos. Não demorou até que aquele enorme contingente de músicos deixasse a quadra, descesse a escadaria e ganhasse a ladeira.

As pessoas que estavam dispersas ao longo de todo o Curuzu pareciam ter atendido ao chamado dos tambores e logo se converteram em uma multidão que abraçava o bloco, no meio da qual pude perceber as presenças de Claudio e Miguel Arcanjo. Carro de som em movimento, músicos em marcha, teve início a Caminhada da Liberdade.

Edmilson surgiu como um raio, tentando resolver algum problema de última hora. Após dar algumas instruções ao pessoal do carro de som, voltou para a sede, não sem antes me cumprimentar com um sorriso.

Com a caminhada já em curso, deixaram a sede as equipes das redes de televisão e dirigentes do Ilê Aiyê, como Vovô, que passou bem a minha frente sem notar minha presença. Pensando em nossa entrevista agendada para o dia seguinte, resolvi não incomodá-lo naquela oportunidade.

Com a frente da sede já esvaziada, ressurgiu Edmilson, com um grande pacote plástico, repleto de camisetas idênticas as que usávamos. Logo entendi que o intuito era distribuí-las as pessoas pelo caminho.

Uma, duas, três, dez camisetas entregues. Uma caminhonete funcionava como um carro de apoio. Em sua caçamba estavam caixas térmicas que guardavam copos d’água a serem distribuídas para os músicos do bloco. Na cabine, mais pacotes plásticos repletos de camisetas.

Acompanhando Edmilson durante a distribuição, vi uma senhora com dificuldades de locomoção esforçar-se para nos alcançar e conseguir sua camiseta. Pedi uma para Edmilson e entreguei-a para a senhora. Aquele gesto, que deveria ser singular, representou minha entrada efetiva em toda esta dinâmica. Quando dei por mim estava distribuindo camisetas na Ladeira do Curuzu.

À medida que a caminhonete avançava ladeira acima, mais pessoas nos cercavam, tentando receber uma das camisetas. E a situação foi ganhando contornos por mim inesperados. Como uma mistura de desespero, violência e agressividade, o público passou a avançar sobre o pequeno caminhão, sobretudo sobre figura de Edmilson.

Algumas pessoas chamando-o pelo nome, procuravam em um certo quê de intimidade, levar vantagem naquela disputa. Outras, chamando-o simplesmente de “moço”, tentavam a mesma sorte.

Percebi que Edmilson, embora figura central na organização do Ilê Aiyê, era um sujeito desconhecido de muitos daqueles moradores vizinhos ao bloco. Metros separavam seus cotidianos e, no entanto, pareciam estar se vendo pela primeira vez.

Por vezes vi Edmilson se exaltar, sobretudo contra aqueles que mostravam uma agressividade sem sentido ou abordavam diretamente a cabine da caminhonete. Essa movimentação frenética seguiu durante toda a subida do Curuzu.

A tranquilidade só reapareceu quando não restava mais uma camiseta sequer a ser distribuída, já na Estrada da Liberdade. A essa altura a caminhada já havia mudado de feitio. O pequeno carro de som fora substituído por um de maiores dimensões, que faria o trajeto até a Igreja da Lapinha. Ao grupo de músicos do Ilê Aiyê haviam se juntado outros, oriundos de blocos afro como Os Negões, Muzenza, Cortejo Afro, Malê Debalê e Okambi.

Após a entrega das camisetas, a prioridade passou a ser a distribuição de água aos músicos, para tentar aplacar um pouco do calor que fazia na Cidade da Bahia. Alguns copos d’água foram também oferecidos a policiais e agentes de trânsito que trabalhavam no evento.

De frente a Igreja da Lapinha, na Praça Nelson Mandela, separei-me de Edmilson e procurei um lugar em que pudesse ouvir com maior atenção alguns dos discursos que estavam sendo proferidos do alto do carro de som, no qual já estavam presentes o Ex-Presidente Lula, o Governador da Bahia, Rui Costa, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, a ministra de Política para Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes, a secretária estadual de Promoção da Igualdade Racial, Vera Lúcia Barbosa, o secretário estadual de Turismo, Nelson Pelegrino, o secretário estadual de Cultura, Jorge Portugal, o secretário estadual de Justiça, Geraldo Reis, e a secretária estadual de Política para Mulheres, Olívia Santana. Além destes, dirigentes de alguns blocos afro, como Vovô, e o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, completavam o cenário. Turismo, cultura, igualdade racial, justiça, direitos humanos e direitos das mulheres. Interessante observar quais pastas se alinharam a Caminhada.

Trajando uma camiseta semelhante as que eu e Edmilson distribuímos Curuzu afora, de microfone em mão Lula discursou para uma plateia pouco entusiasmada, cujas vaias puderam ser ouvidas tão logo sua fala começou. Nas palavras do Ex-Presidente70:

A história do povo negro nesse país não é conhecida porque as escolas não ensinam corretamente o que viveu o povo negro. O povo negro deste país já fez muito mais do que os livros contam. Eles não falam da história da Zeferina, que queria libertar o nosso povo. Eles não falam da influência dos Malês que queria colocar Salvador de perna para o ar para que o negro e a negra fossem respeitados nesse país. (Luís Inácio Lula da Silva, discurso realizado em 20 de novembro de 2015)

Após um começo recebido com certa animosidade, aos poucos as palavras de Lula foram vencendo a resistência. As vaias já haviam cessado por completo. Caminhando para o final de sua fala, o Ex-Presidente afirmou:

Eu sei que ainda falta muita coisa a ser feita, mas nunca na história desse país a gente teve tantos meninos e meninas negras na universidade. Nunca teve um conselho capaz de aprovar as cotas para que os negros tivessem a oportunidade de ser doutores, engenheiros, médicos, físicos, e não apenas ajudantes de pedreiro nas grandes capitais desse país. Nunca nesse país foi dada a oportunidade para que meninas negras pudessem ser médicas, dentistas, ser sociólogas e não apenas empregadas domésticas, como eram. (Luís Inácio Lula da Silva, discurso realizado em 20 de novembro de 2015).

Foi o suficiente para que o público presente o saudasse com calorosas palmas e que os músicos fizessem soar seus tambores. Um senhor que estava ao meu lado, enquanto batia palmas, repetia com certa euforia: “É verdade! É verdade!”

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Youtube. Discurso do ex-presidente Lula durante 15ª Caminhada da Liberdade (4min04s). Disponível em: www.youtube.com/watch?v=jCZCVnTLEXk. Acesso em 13 de fevereiro de 2016.

Discurso finalizado, Lula recebeu um troféu que representava a imagem de um guerreiro africano. Na sequência a palavra foi passada para outros presentes no alto do carro, sempre ressaltando a importância da celebração da data, da conscientização da situação do negro em nosso país e os feitos do Ex-Presidente no tocante a luta contra a desigualdade racial.

Arany Santana, diretora do Ilê Aiyê e também do Centro de Culturas Populares e Identitárias da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, chamou a atenção para a relevância de eventos como a Caminhada da Liberdade:

O toque dos tambores tem uma importância: chamar a atenção para algo que a gente vem lutando há 320 anos, os ideais defendidos por Zumbi dos Palmares e pelos heróis da Revolta dos Búzios, que continuam latentes e contemporâneos e são a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Hoje, na Bahia, não é feriado, mas milhares de pessoas estão mobilizadas desde cedo porque, apesar de ser um momento muito difícil, a luta de Zumbi continua nos inspirando e ele continua vivo dentro de todos nós, homens, mulheres, cidadãos. (Arany Santana, entrevista concedida em 20 de novembro de 201571)

A caminhada teve prosseguimento com nova troca de carro de som, retornando ao de menores dimensões, capaz de transitar pelas estreitas ruas de Santo Antônio. As autoridades, depois de discursarem, deixaram o evento em comitiva.

Aproveitei o ensejo e rumei para a área central da cidade, com o intuito de acompanhar um trecho da 36ª Marcha Zumbi dos Palmares. Consegui encontrar os carros de som já próximos a Praça Castro Alves, aquela que é do povo como o céu é do avião, como disse o compositor. O ponto final da manifestação seria o Pelourinho, assim como também o era para a Caminhada da Liberdade.

Boa parte dos manifestantes trajava uma camiseta amarela com os dizeres “Década Internacional Afrodescendente 2015-2024”, alusiva à proclamação da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas72 e tomada como tema para a marcha daquele ano. Vários destes carregavam bandeiras vermelhas. Uma parte do grupo trajava camisetas brancas onde era possível identificar um mapa do continente africano, preenchido pelas cores da bandeira da África do Sul e a expressão “afrodescendentes”.

A frente do coletivo, algumas faixas abriam caminho para a passagem da marcha. A primeira apresentava o nome da caminhada. A segunda trazia os dizeres “reconhecimento,

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Disponível em hwww.cultura.ba.gov.br/2015/11/436/Caminhada-da-Liberdade-celebra-a-Consciencia- Negra.html. Acesso em 13 de fevereiro de 2016.

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Para mais informações, ver a ata da 68ª sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, proclamando a Década Internacional de Povos Afrodescendentes, disponível em nacoesunidas.org/img/2014/10/N1362881_pt-br.pdf

justiça e desenvolvimento”. Era possível ver em ambas as faixas as logos da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN) e da CUT, cujo presidente, curiosamente, estava no evento realizado nas ruas da Liberdade.

Segui o cortejo até o Pelourinho, onde aos poucos o público foi se dispersando. Não tardou para que o grupo proveniente da Liberdade também chegasse ao Centro Histórico, fazendo misturarem-se camisetas brancas e amarelas, representativas de cada uma das manifestações.

Fazendo uma breve reflexão sobre o que havia observado naquela tarde/noite, me veio à cabeça a frase escrita na Senzala do Barro Preto: “sem dividir seremos sempre mais.” Aquela divisão entre Caminhada da Liberdade e Marcha Zumbi dos Palmares era representativa de algumas das várias cisões que acometem o movimento negro brasileiro ao longo de sua história73, e que tiveram como mote, basicamente, diferenças quanto a opções estratégicas, táticas e concepções ideológicas a respeito da própria percepção do movimento e de seus campos de atuação.

Considero que, por tratar-se de um movimento plural, onde distintos sujeitos se movem de acordo com interesses particulares, embora sendo guiados por um mesmo fio condutor, é esperado que tais desentendimentos ocorram. Antônio Risério (2012) chega a falar em movimentos negros, tamanha sua pluralidade.

Se por um lado a dificuldade em estabelecer uma unidade pode vir a enfraquecer o movimento enquanto espectro maior da luta negra, ao mesmo tempo essa diversidade proporciona uma maior capilaridade ao mesmo, ao permitir que diferentes entidades atuem em distintas frentes. Ao percebermos o alinhamento dos blocos nos eventos realizados no dia 20 de novembro pelo Fórum de Entidades Negras (FEN) e pela CONEN, compreende-se de maneira prática tal potencialidade. Como pontuou Eduardo, em sua entrevista:

O Malê tem muitos problemas, vários problemas, mas me parece que se entendermos essa luta da africanização, da reafricanização como várias frentes, talvez eu entenda o Olodum numa outra frente, uma outra forma de fazer música, de falar da negritude, em outro espaço. (...) Não que o Ilê também não tenha seus problemas, mas vamos entender que são frentes. São estratégias. Araketu foi pro um lado, Malê foi pro outro, Olodum foi pro outro. E no final todo mundo vai se encontrar lá na frente. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Cada bloco trilhará seu próprio caminho, atentando para as demandas de suas respectivas comunidades, bem como traçando estratégias que consideram as mais acertadas para enfrentar o tema da desigualdade racial em nosso país. São antes entidades

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complementares do que opostas. Tomando como exemplo os dois maiores expoentes dentre os blocos afro, Olodum e Ilê Aiyê, embora divirjam frontalmente quanto a algumas posições, cada vez mais realizam ações conjuntas sendo, inclusive, o Olodum elencado como um dos parceiros do Ilê Aiyê em seu site oficial74. Até o momento, nada que ultrapasse eventos esporádicos e apresentações conjuntas, mas que aponta para uma possibilidade de maior cooperação, extremamente necessária para a luta compartilhada e sobrevivência das agremiações.

2.4.4.ÚLTIMAS ENTREVISTAS