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Minha carne não é só de carnaval : por outra abordagem teórica sobre a atuação dos blocos afro de Salvador (Ilê Aiyê, Malê Debalê e Olodum)

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Academic year: 2021

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

DANIEL GOUVEIA DE MELLO MARTINS

MINHA CARNE NÃO É SÓ DE CARNAVAL:

POR OUTRA ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE A

ATUAÇÃO DOS BLOCOS AFRO DE SALVADOR

(ILÊ AIYÊ, MALÊ DEBALÊ E OLODUM)

CAMPINAS

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MINHA CARNE NÃO É SÓ DE CARNAVAL:

POR OUTRA ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE A

ATUAÇÃO DOS BLOCOS AFRO DE SALVADOR

(ILÊ AIYÊ, MALÊ DEBALÊ E OLODUM)

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutor em Sociologia.

Orientador: PROF. DR. PEDRO PEIXOTO FERREIRA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE A VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO DANIEL GOUVEIA DE MELLO MARTINS E ORIENTADA PELO PROF. DR. PEDRO PEIXOTO FERREIRA.

____________________________________________

CAMPINAS

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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos professores doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 13 de novembro de 2017, considera o candidato Daniel Gouveia de Mello Martins aprovado.

Prof Dr. Pedro Peixoto Ferreira (orientador) Profa Dra.Goli Almerinda de Sales Guerreiro Profa Dra. Maria Suely Kofes

Prof Dr. Luiz Augusto de Souza Carneiro Campos Prof Dr.Mário Augusto Medeiros da Silva

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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As mulheres e homens negros que dedicaram suas vidas ao sonho de uma sociedade mais justa e igualitária.

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Pensando em como se deu minha caminhada ao longo dos últimos anos, não poderia agradecer outra pessoa em primeiro lugar senão Rayza, companheira de vida, fundamental na superação de obstáculos, mesmo quando esses pareciam intransponíveis, bem como grande responsável pelos momentos de poesia, plenitude, amor e paz. Sua força, dedicação e inquietação foram grandes exemplos que, apaixonado, segui com enorme admiração.

A Pedro Peixoto, meu orientador, por ter acreditado no projeto que agora se concretiza, quando esse ainda era apenas um apanhado de ideias sem muita organização. Mesmo não sendo sua área de atuação, tampouco sua literatura referencial, não lhe faltaram dedicação e entusiasmo, tão preciosos para que eu passasse a acreditar cada vez mais no que estávamos construindo.

A Sociedade Cultural Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê, em especial Eduardo, meu primeiro interlocutor, bem como a todos os seus componentes, representados pelas figuras de Miguel Arcanjo, Josélio, Jany, Claudio, Cesar, Antônio, Dermeval, Ygas e Givanildo, por me abrirem as portas de sua sede no Abaeté e folhearem comigo as páginas de sua história.

A Associação Carnavalesca Bloco Afro Olodum, em especial Eunice, meu porto seguro, bem como a todos os seus componentes, representados pelas figuras de Lazinho, Gilmário, Antônio, Mara, Ubiraci (in memoriam), Lázaro, Tita Lopes e João Jorge, que dedicaram parte de seu tempo a me apresentar um pouco do que é ser o Olodum.

A Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, em especial Edmilson, exemplo prático do que é ser um educador para a cidadania, bem como a todos os seus componentes, representados pelas figuras de Taiwo, Alana, Cida, Sandro, Hildelice, Jaci e Antônio Carlos Vovô, que me mostraram um pouco do que é esse mundo negro chamado Liberdade.

A Sérgio Pereira, voz isolada, mas suficientemente importante para a compreensão do que é conviver com um bloco afro em sua comunidade.

A Vanessa e Paula, pela amizade incondicional e por despertarem em mim a vontade de conhecer Salvador, sendo minhas primeiras guias por suas praias, praças, largos, ladeiras, cores, aromas e sabores. A Paula, ainda, pela ajuda na elaboração do corte esquemático.

A Seu Pepe (in memoriam) e Dona Leo, pela repetida e calorosa acolhida em seu lar, apresentando a mim um pouco do cotidiano soteropolitano, seja no amanhecer ao som do samba do recôncavo, seja no sabor do feijão, mas, principalmente, por me apresentarem ao carnaval da Bahia, naquela longínqua noite no Pelourinho.

A Aldenor, Carol, Dulce, Pedro, Conceição, Monique, Marcelo, Juliana, Bruno e Fernanda, pela receptividade e disposição em me mostrar um pouco de sua cidade, cada qual a seu modo.

A Goli Guerreiro, referência bibliográfica de primeira hora, pela generosidade de abrir as portas de sua casa a um desconhecido e oferecer-me toda uma tarde de discussão valiosa sobre o universo dos blocos afro em Salvador.

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp, pela oportunidade. Ao seu corpo técnico-administrativo, em especial Priscila, Daniel e Sônia, pela presteza, paciência e dedicação aos alunos.

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separou durante a maior parte desses anos.

Aos professores Mario Medeiros e Suely Kofes pela brilhante participação em meu exame de qualificação, sendo suas considerações fundamentais para o bom andamento desse trabalho.

Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de bolsa, sem a qual a realização desse trabalho não seria possível.

Aos amigos de todas as horas, Rodrigo, Mariana Porto, Mariana Villela, Bruno, Alisson, Carol, Tulio, Carlos, Alexandre, Miguel, Karina, Alvino, Evelin, Daniela, Alice, Lidiane, Tiago, Fabrício e Luciano, bem como aos mais recentes, Simon, Vinícius, Thiago, Dany, Lorena, Luciana, Isis e Alexandra, por terem feito parte desse caminho, cada qual a seu modo.

A Herkenhoff & Prates, por abrir-me suas portas quando todas pareciam se fechar, representada especialmente pelas figuras de Cristina e Guilherme. Aos amigos/colegas, Raíssa, Guilherme Silveira, Danielle, Júlia, Ana Luiza, Nathália, Claudio, Clarice, Bruno, Raynner, Amanda, Natan, Fernanda, Érica, Geraldo, Carol e Marina, com os quais aprendo todos os dias e que sempre estiveram generosamente dispostos a me ensinar.

A Ia, pelo querer bem na forma de carinhosa simplicidade.

A Helenice e Lucia, pela acolhida maternal de quem tudo lhe oferece sem pedir nada em troca. Obrigado pelo constante apoio durante toda a minha trajetória na pós-graduação.

A meu irmão, Mateus, sobretudo por dividir comigo o peso dos dias difíceis, que se fizeram tão constantes nos últimos tempos.

Agradeço a minha mãe, Heloiza (in memoriam), por ter feito da minha educação um dos princípios de sua vida. Foi em seu nome e por sua memória que me dediquei para chegar até aqui.

Agradeço a meu pai, Paulo, que transformou toda sua vida para tentar preencher a lacuna deixada pela prematura ausência de minha mãe e que, por força do destino, me fez compreender e valorizar o esforço que envolve ser responsável pela vida de alguém.

Agradeço à vida por permitir que meu pai, a despeito de todos os problemas, resistisse o suficiente para ver seu filho terminar essa caminhada.

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E tentada, motivada, a ser mutilada Pelos heróis anônimos da história Estamos aqui e eles sobreviveram E no bum bum bum bum do bum bum bum bum bum No seu tambor, o seu negão vai tocando assim Pega a Rua Chile, desce a ladeira Tá na Praça Castro Alves ou Praça da Sé Fazendo seu deboche, transando o corpo, fazendo o seu fricote E o negão assume o microfone E na beirada da multidão, em cima do caminhão, ele fala: - Alô rapaziada do bloco, esse é o nosso bloco afro Vamos curtir agora o nosso som, a nossa levada Que é a nossa cultura E segura comigo! Eu sou negão! Eu sou negão! Meu coração é a liberdade! É a liberdade! Sou do Curuzu, Ilê! Sou do Curuzu, Ilê! Igualdade na cor, essa é a minha verdade! Igualdade na cor, essa é a nossa verdade! E de repente aparece ao longe um carro todo iluminado É um trio elétrico! - Que é isso, meu irmão? Venha devagar! Calma! Que é isso, meu irmão? Peraê, peraê, peraê!

Colé, meu irmão? Segura essa aí. E o cara do trio lá de cima olha: - Legal, massa! Pessoal do bloco afro, é uma beleza estar aqui com vocês, Vamos levar um som E o negão lá de baixo falando: - Qual é, meu irmão? É nenhuma, rapaz! Aqui é boca de zero nove! É o suingue da gente! Vá, pegue seu caminhão e siga seu caminho, Que a gente vai seguindo o nosso, meu irmão! E na levada! Eu sou negão! Eu sou negão! Meu coração é a liberdade! É a liberdade! Sou do Curuzu, Ilê! Sou do Curuzu, Ilê! Igualdade na cor, essa é a minha verdade! Igualdade na cor, essa é a nossa verdade!”

“Macuxi Muita Onda” Gerônimo Santana

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complexas organizações que conjugam ação política e cultural sem, no entanto, ignorar elementos que os tornam modelos ímpares de associativismo. Assim, o que se objetivou, por meio de uma pesquisa de campo realizada com os blocos Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê entre os anos de 2013 e 2016, foi a busca por um esquema interpretativo mais adequado ao estudo deste tipo de organização. Este esquema é amparado, principalmente, pela historiografia de João José Reis e Nelson Cadena, bem como pelas teorias de Márcio Goldman e Jocélio Teles dos Santos, a respeito da forma como o poder se insere na cultura, assim como a cultura se insere no poder, além de outros referenciais bibliográficos mobilizados. Chegou-se, assim, a uma abordagem processual da atividade dos blocos afro soteropolitanos, entendendo-os como uma etapa da trajetória da resistência negra na Bahia, mas também como a face mais atual de um longo processo de mobilização política negra por meio do carnaval de rua em Salvador. Defende-se, ainda, a tese de que suas possíveis contradições internas são fruto de necessários rearranjos, através dos quais articulam suas diferentes dimensões, bem como determinam seus modelos estratégicos de ação. Trata-se de contradições ligadas à viabilidade, manutenção e mobilização de recursos necessários para que sejam levados a cabo os projetos primeiros de tais agremiações, a saber a emancipação política, econômica e cultural da população negra de Salvador.

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Salvador, understanding them as complex organizations that conjugate political and cultural action without, however, ignoring elements that make them odd models of associativism. Thus, the objective of this study was looking for an interpretative scheme more appropriate to the analyze of this type of organization, through a field research with the Ilê Aiyê, Olodum and Malê Debalê groups, between the years of 2013 and 2016. This scheme is supported, mainly, by the historiography of João José Reis and Nelson Cadena, as well as by the theories of Márcio Goldman and Jocélio Teles dos Santos, regarding how the power inserts itself in the culture, as well as the culture inserts itself in the power, besides other bibliographical references. This led to a procedural approach to the activity of the blocos afro of Salvador, understanding them as a stage in the trajectory of black resistance in Bahia, but also as the most current face of a long process of black political mobilization through the street carnaval in Salvador. It is also defended the thesis that its possible internal contradictions are the result of necessary rearrangements, through which they articulate their different dimensions, as well as determine their strategic models of action. These are contradictions related to the viability, maintenance and mobilization of resources necessary to carry out the first projects of such associations, namely the political, economic and cultural emancipation of Salvador's black population.

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Tabela 2 – Salvador - Cor ou Raça x Ano ... 184

Tabela 3 – Cor ou Raça x Ano x Brasil/Salvador ... 184

Tabela 4 – Cor ou Raça x Bairros/Salvador ... 185

Tabela 5. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2014... 298

Tabela 6. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015... 299

Tabela 7. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015 – Blocos afro... 299

Tabela 8. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2016... 301

Tabela 9. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017... 302

Tabela 10. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015... 303

Tabela 11. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015... 304

Tabela 12. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2015... 305

Tabela 13. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017... 306

Tabela 14. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017... 307

Tabela 15. Ranking de visibilidade – Carnaval Salvador 2017... 307

Tabela 16. Ranking de visibilidade x Música do Carnaval... 310

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Figura 2. Circuito Barra/Ondina - "Dodô"... 55

Figura 3. Circuitos Campo Grande e Barra/Ondina ... 58

Figura 4. Distribuição geográfica dos blocos pesquisados ... 66

Figura 5. Corte Esquemático – Senzala do Barro Preto (vista lateral) ... 92

Figura 6. Distribuição Espacial dos Terreiros em Salvador – 2006 ... 193

Figura 7. Localização do Blocos Afro ... 201

Figura 8. População Cor ou Raça X Mapeamento De Terreiros ... 203

Figura 9. Mapeamento de Terreiros X Localização dos Blocos ... 204

Figura 10. População Cor ou Raça X Blocos Afro X Terreiros ... 205

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IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais

TSE Tribunal Superior Eleitoral TVE TV Educativa

IRDEB Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia UFBA Universidade Federal da Bahia

DEM Democratas

BAHIATURSA Empresa de Turismo da Bahia

LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros FEMADUM Festival De Musica e Artes do Olodum

ACM Antônio Carlos Magalhães PT Partido dos Trabalhadores

MDB Movimento Democrático Brasileiro PC do B Partido Comunista do Brasil PSB Partido Socialista Brasileiro

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

IPAC Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia CCPI Centro de Culturas Populares e Identitárias

UNEB Universidade do Estado da Bahia SMEC Secretaria Municipal de Educação FAMEC Faculdade Metropolitana de Camaçari MNU Movimento Negro Unificado

ONU Organização das Nações Unidas USIBA Usina Siderúrgica da Bahia CUT Central Única dos Trabalhadores

CONEN Coordenação Nacional de Entidades Negras FEN Fórum de Entidades Negras

UNEGRO União de Negras e Negros Pela Igualdade FNB Frente Negra Brasileira

UHC União dos Homens de Cor TEN Teatro Experimental do Negro

MNUCDR Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial MH2O Movimento Hip Hop Organizado

ONG Organização Não Governamental SBT Sistema Brasileiro de Televisão BAND Bandeirantes

PFL Partido da Frente Liberal PL Partido Liberal

PV Partido Verde

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AGRADECIMENTOS ... 6

RESUMO ... 9

ABSTRACT ...10

SUMÁRIO ...14

INTRODUÇÃO ...17

1.DEFININDO CAMPO E OBJETO ...20

1.1.QUE BLOCO É ESSE? ...27

1.2.OBJETIVO ...30

1.3.METODOLOGIA ...42

2.NARRATIVAS DE CAMPO ...47

2.1.PRIMEIRA IDA A CAMPO ...47

2.1.1.CARNAVAL 2013 ...49

2.1.2. VISITA AO OLODUM ...66

2.1.3.VISITA AO ILÊ AIYÊ ...71

2.1.4.VISITA AO MALÊ DEBALÊ...73

2.1.5. APÊNDICE – CARNAVAL 2014 ...74

2.2. SEGUNDA IDA A CAMPO ...81

2.3.TERCEIRA IDA A CAMPO ...96

2.3.1.VISITA AO ILÊ AIYÊ ...98

2.3.2.VISITA AO OLODUM...113

2.3.3.VISITA AO MALÊ DEBALÊ...118

2.3.4.ENSAIO DO OLODUM...123

2.3.5.ENSAIO DO MALÊ DEBALÊ...126

2.3.6.ENSAIO DO ILÊ AIYÊ ...133

2.3.7.CAMINHADA DA LIBERDADE 2014 ...137

2.2.1.APÊNDICE – CARNAVAL 2015 ...141

2.4.QUARTA IDA A CAMPO... 143

2.4.1.VISITA AO OLODUM...144

2.4.2.VISITA AO ILÊ AIYÊ ...146

2.4.3.CAMINHADA DA LIBERDADE 2015 ...152

2.4.4.ÚLTIMAS ENTREVISTAS ...159

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3.2.COMPOSIÇÃO DEMOGRÁFICA SOTEROPOLITANA ...180 3.3.CENTRO E PERIFERIA ...187 3.3.1.OS CANDOMBLÉS ...189 3.3.2.OS QUILOMBOS ...194 3.3.3.TERRITÓRIOS NEGROS ...200 3.4.MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA ...206

3.4.1.O BANZO E O SUICÍDIO ...206

3.4.2.REVOLTAS ...210

4.O CARNAVAL DE SALVADOR ...223

4.1.OS AFOXÉS ... 227

4.2.OS BLOCOS DE ÍNDIO ... 234

4.3.OS BLOCOS AFRO ... 238

5.DIMENSÕES INTERNAS DOS BLOCOS AFRO E SUAS RELAÇÕES ...254

5.1.BLOCOS AFRO E MOVIMENTO SOCIAL...258

5.2.BLOCOS AFRO E MERCADO ...286

5.3.BLOCOS AFRO E POLÌTICA INSTITUCIONAL ...326

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...345

BIBLIOGRAFIA ...352

ANEXOS...370

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INTRODUÇÃO

A FESTA VAI COMEÇAR

Em seu guia de ruas e mistérios da Bahia de Todos os Santos, publicado originalmente no distante ano de 1944, Jorge Amado, baiano de Itabuna, faz um passeio pelas ladeiras de Salvador, a qual chamava Cidade da Bahia, apresentando aos leitores suas paisagens, histórias, costumes, festas, miséria, alegria, santos, orixás e personagens dos mais variados.

Ah! moça, esta Cidade da Bahia é múltipla e desigual. Sua beleza eterna, sólida, como a de nenhuma outra cidade brasileira, nascendo do passado, rebentando em pitoresco no cais, nas macumbas, nas feiras, nos becos e nas ladeiras, sua beleza tão poderosa que se vê, apalpa e cheira, beleza de mulher sensual, esconde um mundo de miséria e dor. Moça, eu te mostrarei o pitoresco, mas também te mostrarei a dor. (AMADO, 2012, p. 16)

É por este cenário que convido o leitor a caminhar em minha companhia, acrescentando ao enredo do célebre escritor novos personagens. Mulheres e homens nascidos nas periferias da cidade, que apostaram na mobilização dos seus como forma de contestar a ordem estabelecida. Mulheres e homens que apresentaram aos próprios soteropolitanos outra Salvador possível. Para tanto, ao longo deste texto, nos aproximaremos dos chamados blocos afro, coletivos negros surgidos de um carnaval de máscaras desveladas.

Um primeiro olhar é capaz de reconhecer as cores de tais agremiações, mas é preciso que se detenha o olhar para perceber que tais cores são resultado da mistura de muitas outras. Compreender que um bloco afro é formado por camadas que se confundem, que podem ser reorganizadas a todo o momento. Ao contrário de uma simples união de matizes, é justamente da relação entre essas cores, gravadas no corpo e na alma de nossos personagens, que nasce nosso sujeito de pesquisa, sintetizado nos blocos Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê.

Não vamos nos deter no nascimento de cada uma das agremiações que ao longo do texto serão apresentadas. A existência de consistentes trabalhos acadêmicos que versam sobre tais momentos, bem como o próprio material produzido pelas instituições, nos deixam mais a vontade para embarcarmos nessa história que se encontra em movimento, por vezes visitando o passado para melhor compreender o presente.

O texto apresentado está dividido em uma introdução, cinco capítulos e conclusão. O primeiro deles, intitulado “Definindo campo e objeto”, traz consigo os primeiros contatos entre o investigador e aquele que emergiria como seu sujeito de pesquisa, aproximando o leitor das inquietações iniciais que viriam a se transformar no problema de pesquisa aqui

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abordado. Segue-se com a delimitação teórico-metodológica, demarcando os objetivos e os meios e métodos utilizados para atingi-los.

O segundo capítulo, o mais extenso desse trabalho, intitulado “Narrativas de Campo”, apresenta as quatro incursões realizadas a campo, versando sobre o acompanhamento dos festejos carnavalescos de 2013, visitas às sedes dos blocos pesquisados, realização de entrevistas, acompanhamento de ensaios e da Caminhada da Liberdade.

O terceiro capítulo, “Contextualização histórico-demográfica”, traz ao leitor alguns elementos relativos à formação da população de Salvador bem como da constituição da cidade em si, tomados como importantes em decorrência do que fora visto e vivido nos diferentes contatos com o campo. Foram revisitadas, ainda, páginas da história negra em Salvador em que diferentes estratégias de resistência foram levadas a cabo por homens e mulheres que pretendiam modificar a realidade em que viviam.

O quarto capítulo, “O carnaval de Salvador”, traz um retrospecto da folia momesca na capital baiana, desde os primeiros préstitos, afoxés e clubes, passando pelos carnavais de trio, blocos de índio até desembocar nos blocos afro.

“Dimensões internas dos blocos e suas relações”, quinto capítulo deste trabalho, analisa o papel dos blocos afro como herdeiros e partícipes do movimento negro brasileiro, erigido ao longo do século XX. Passa ainda pelas estratégias das agremiações afrocarnavalescas para mobilização popular e em busca de uma autossuficiência que lhes garanta autonomia de ação, dentre os quais surge a necessidade de se ocupar os espaços existentes no universo político institucional.

O capítulo “Considerações finais”, dedica-se a conclusão do trabalho, repassando os principais pontos trabalhados ao longo do texto e apontando para outras possibilidades de abordagens acadêmicas.

Como estratégia discursiva, foi inserida no corpo do texto uma série de caixas com informações complementares aquilo que vinha sendo discutido. Uma forma de dar maior ressonância a elementos que antes ficariam restritos a notas de rodapé ou relegados a um segundo plano na análise.

Optou-se, ainda, pela inserção de endereços eletrônicos que, quando acessados, permitirão a audição de algumas das canções mencionadas durante o texto, dando ao leitor a possibilidade de acionar novos sentidos, recuperando um pouco da experiência do bloco em um de seus pontos mais importantes, que é a musicalidade. Canções outras, que não de autoria dos blocos, mas que também se mostram interessantes para a compreensão da atmosfera soteropolitana, receberam o mesmo cuidado.

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Sabedor de que nem sempre o leitor contará com um computador para acessar os endereços eletrônicos no momento da leitura, realizar-se-á uma tentativa de amparo nas novas tecnologias. Os endereços eletrônicos referentes às canções estarão sempre

acompanhados de um código QR (quick response), como o colocado ao lado1, que poderá ser lido por qualquer celular com câmera, desde que tenha instalado um aplicativo de leitura QR Code2 e tenha acesso à internet, direcionando de imediato o leitor para a audição das mesmas.

Por não ser o detentor das páginas acessadas pelos códigos, não há como garantir sua manutenção. Entretanto, no momento em que esse texto foi concluído, todos os códigos foram testados e seu funcionamento certificado.

Vale ressaltar que a impossibilidade de audição das canções que possuirão tal recurso, não acarretará prejuízos para leitura e entendimento do texto, sendo essa uma forma de ampliar as fronteiras do que se expressou pela palavra escrita, ilustrando o universo musical soteropolitano com o qual os blocos se relacionam.

1

QR Code: “Macuxi Muita Onda” – Gerônimo. Disponível em www.youtube.com/watch?v=hJS6vFIZugA

2

Existem inúmeros aplicativos de leitura de códigos QR disponíveis para os sistemas Android, iOS e Windows. Para realizar o download de um destes aplicativos basta visitar a loja online referente ao seu aparelho (Google Play, iTunes ou Microsoft) e instalá-lo. Tais aplicativos são, em sua maioria, gratuitos.

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1.DEFININDO CAMPO E OBJETO

NESSA CIDADE TODO MUNDO É D’OXUM

Tão logo o avião tocou o solo do aeroporto internacional de Salvador, minha trajetória acadêmica começou a mudar. Naquele agosto de 2006, a única mudança que conseguia compreender era a de ares. Uma viagem turística que me deslocava das montanhas de Minas para as praias da Bahia3.

Atravessando a sala de embarque, observei as propagandas turísticas.

Destaques para a figura de uma baiana, em suas vestes tradicionais. Destaque também para uma igreja, que deduzi ser a do Bonfim. E, finalmente, surgiu uma imagem do carnaval. Trio elétrico à frente, multidão ao fundo.

A primeira sensação que realmente me fez entender que pisava em solo soteropolitano foi promovida pelo meu olfato. Assim que as portas automáticas do aeroporto se abriram, fui tomado por um cheiro que me era totalmente desconhecido. Um odor inebriante. Com certeza, pertencia a alguma fritura. Não tardou para que o mistério fosse desfeito. Era o dendê, no qual a baiana fritava bolinhos de feijão para compor o acarajé. Este aroma do dendê ficaria marcado em minha memória.

Mas era pouco para as expectativas criadas desde o momento em que a viagem fora confirmada. Outros sentidos deveriam ser estimulados. Salvador deveria se mostrar inteira.

Os dias que se seguiram foram de um turismo totalmente convencional. Degustação de comidas típicas, compra de artesanato, visita as praias e pontos de referência. Tudo aquilo que só conhecia de programas televisivos, filmes e livros, sobretudo os de Jorge Amado, ia me sendo apresentado por meus anfitriões. Aos poucos Salvador ia se revelando.

Enfim era chegado o dia de visitar o famoso Mercado Modelo e conhecer de perto a miscelânea de produtos voltados, principalmente, ao turista que gosta de colecionar quinquilharias por onde passa. Sem me fazer de rogado, também adquiri meus suvenires. Mas o que queria mesmo era vencer logo as fileiras de pequenas lojas, todas muito semelhantes, atravessar o largo que se segue ao Mercado e tomar lugar no curioso Elevador Lacerda. Uma cidade que se divide em duas. Duas cidades ligadas por um elevador. Coisa que não se vê todos os dias.

3

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Do elevador aportei no centro histórico. Palácio Rio Branco à esquerda, Prefeitura à direita. Ao centro, pessoas distribuindo fitas coloridas de Nosso Senhor do Bonfim. “Uma cortesia”, dizia um deles. Uma estátua de Tomé de Souza completava a paisagem.

Se a obra de Jorge Amado serviu de estímulo para conhecer a Cidade da Bahia, nada mais natural do que um passeio pelo Pelourinho em busca de seus devaneios. Talvez flagrar Dona Flor em encontro com Vadinho, Quincas Berro D’água cambaleando ladeira acima, Pedro Archanjo e Nilo Argolo em uma discussão acalorada. Quem sabe ser tomado de assalto pelos capitães da areia. Rumei para a Praça da Sé.

A noite já havia caído e o cenário de penumbra tornava mais intrigante aquele casario colorido, que despencava ladeiras abaixo. Do lado oposto, aos pés do Monumento da Cruz Caída, a visão da Baía de Todos os Santos, imponente, com Itaparica lhe fazendo moldura ao fundo. Era, sem dúvida, uma visão hipnotizante. Em meio a este cenário comecei a ouvir um som que vinha de longe. Soava quase como um convite a lhe procurar Pelourinho adentro.

Na Praça da Sé, turistas estrangeiros acotovelavam-se em busca de melhores ângulos para fotografar uma roda de capoeira. Em outra calçada, pedintes tentavam, sem muito sucesso, alguns trocados para matar a fome, a sede ou a saudade. Baianas de acarajé disputando uma mesma esquina, confundindo o passante distraído que não saberia dizer de qual delas vinha o mais saboroso cheiro do dendê. Novamente o dendê. Mais adiante o prédio da antiga Santa Casa de Misericórdia, convertido em museu, defronte a galeria da Fundação Pierre Verger4. História por todos os lados.

O caminho seguia com uma rua de calçamento antigo, ladeada por pequenas lojas, onde cafés, lan house, restaurantes, lojas de música e instrumentos musicais marcavam presença. Aportei em um largo de grandes proporções. Era o Terreiro de Jesus, rodeado por prédios imponentes e importantes. Ali se encontram a Catedral Basílica, igrejas para São Pedro dos Clérigos e São Domingos Gusmão e, finalmente, a célebre Faculdade de Medicina da Bahia, ocupante do prédio que outrora fora o Colégio dos Jesuítas. Faculdade por onde figuras como Nina Rodrigues5 desfilaram suas teorias.

4

Pierre Verger foi um fotógrafo e etnólogo francês que dedicou parte de sua vida ao estudo da diáspora africana, das religiões de matriz africana e aos fluxos culturais e econômicos realizados entre a África e o restante do mundo, privilegiando em algumas de suas obras a análise destas questões no Brasil.

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Raimundo Nina Rodrigues foi um médico legista que elaborou teses a respeito da composição étnico-racial do Brasil. Herdeiro das concepções defendidas por Cesare Lombroso e sua antropologia criminal, Nina Rodrigues atribuía características negativas naturalizadas a negros e mestiços, considerando-lhes como indivíduos degenerados física e mentalmente em função de seu desenvolvimento filogenético. Assim sendo, para o autor, a mestiçagem entre brancos e não-brancos seria o principal fator que levaria a civilização brasileira ao fracasso. Se hoje suas ideias são contestadas, a época de sua publicação causaram impacto, ecoando durante muito tempo mesmo dentro da academia.

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Do outro lado do Terreiro, exatamente oposto de onde me encontrava, uma roda de pessoas cercava um grupo. Era de lá que vinha o som que havia me seduzido ainda no hall do Elevador Lacerda. Já era possível identificar bem o que ouvia. Eram tambores.

Atravessei todo o largo com passos decididos. Haveria tempo depois para me deter nos bucólicos prédios centenários que ali se avizinhavam, bem como no imponente chafariz. Mas o som, este não havia como saber quando cessaria. O som era urgente. E com essa urgência, finalmente alcancei o grupo.

Passei a observar aqueles cerca de vinte, trinta músicos. Duas mulheres marcando presença em meio ao predomínio masculino. Cada qual vestido a sua maneira, os personagens diferenciavam-se, também, pelas cabeças. Algumas com cabelos trançados, outras com boné. Era possível ver também um cabelo no estilo Black Power. A frente destes, um homem fazia movimentos.

Cada um dos tambores era colorido com uma mesma sequencia de cores muito específica. Verde, vermelho, amarelo e preto. Nesta ordem, se olharmos de cima para baixo6. No couro dos instrumentos, um símbolo, que lembrava aquele ostentado pelos hippies nos longínquos anos setenta, e um nome: Olodum.

Estava diante de um inesperado ensaio do grupo Olodum, que conhecia, sobretudo, de programas televisivos. Lembrava-me também de algumas de suas canções que alcançaram as rádios do Sudeste do país, assim como da participação de seus instrumentistas em um videoclipe de Michael Jackson, gravado em terras brasileiras. Para além destas poucas informações, nada mais sabia sobre aquele grupo de pessoas. Foi quando percebi que a maior informação que eles poderiam me oferecer estava sendo dada naquele momento através de sua música.

Eram canções totalmente instrumentais. Não havia qualquer tipo de letra ou canto envolvido. Apenas o som dos tambores. Entretanto, este foi o suficiente para me atrair ao interior do Pelourinho e me deter ali, por alguns minutos, apenas contemplando a sonoridade. Sentia no corpo a força da batida. Acompanhava com os olhos os rápidos e repetidos movimentos, sem perceber que meu corpo, involuntariamente, fazia o mesmo. A seriedade dos instrumentistas vez por outra era quebrada por um sorriso. Predominava a atenção total aos comandos do regente.

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De acordo com o informe “O que é o Olodum 2012”, obtido junto ao bloco, suas cores possuem significados específicos. O verde simboliza as florestas equatoriais da África; o vermelho simboliza o sangue da raça negra; o amarelo simboliza o ouro da África; o preto simboliza o orgulho da raça negra. Haveria ainda o branco, símbolo máximo da paz mundial. Ainda de acordo com o informe: “Estas são as cores do Rastafarianismo e do Movimento Reggae. São as cores internacionais da diáspora africana e constituem uma identidade internacional contra o racismo e a favor dos povos descendentes de África.” (OLODUM, 2012, p. 6)

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Foi quando, por alguns segundos, desviei o olhar sem, no entanto, desviar os ouvidos. Contemplava o casario que havia deixado para trás. Ele me parecia, então, mais vivo do que quando o encontrara. Era a música quem enchia de vida aqueles becos, ladeiras, largos e vielas. Que me fazia sentir certa angústia por saber que aquele mesmo casario, que agora contemplava calado tal espetáculo dos negros músicos, assistira, também impassível, o sofrimento de outros tantos negros. Naquele chão de pedras onde agora se derramava o suor do artista, também fora derramada a lágrima clara sobre a pele escura. Foi a primeira vez em que a música do bloco Olodum me colocou a pensar.

Dias se seguiram e, tal qual uma criança que completa seu álbum de figurinhas, fui completando meu álbum de lugares indispensáveis. Visita a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, tempo para degustar um sorvete na Ribeira, visitar o Farol da Barra e seu interessante forte/museu e para uma rápida passagem pelo Dique do Tororó, com seus majestosos orixás que parecem flutuar sobre o espelho d’água. Em meio a tudo isto, paradas estratégicas em vários tabuleiros de baianas, em diversos pontos da cidade. Os anfitriões de minha estadia faziam questão de que provasse o acarajé de suas baianas prediletas. Era imperioso que conhecesse “o melhor acarajé de Salvador”. Tal qual clube de futebol, o soteropolitano parecia defender sua baiana preferida com bastante vigor.

Prestes a terminar minha viagem, fui perguntado se havia algum lugar que gostaria de conhecer. Respondi sem pestanejar: Itapuã7. Ao que se seguiram olhares atravessados e questionamentos. “O que você quer ver em Itapuã?” Confiava em Vinícius, Toquinho e Caymmi o suficiente para bancar minha ida até lá. Não precisaria passar toda uma tarde sentindo na pele seu Sol que arde, mas era preciso ir. Respirar o lindo ar de Itapuã.

Chegando lá, deparei-me com um bairro que em nada se parecia com as alegorias bucólicas que criei ao ouvir a canção imortalizada por Toquinho. Carros e motos disputavam espaço com pedestres e ambulantes que, sem calçada apropriada, avançavam pela via de asfalto. Uma profusão de lojas e camelôs dificultava a visão das construções mais antigas. No ar, nada além da música de algum grupo de pagode que seria sucesso apenas naquele ano. Com certo quê de decepção, degustei mais um “melhor acarajé de Salvador” e me convenci de que nada havia demais naquele lugar. Quando num último lampejo, meu cicerone recomendou uma rápida passagem pelo Abaeté.

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Em textos, canções e mesmo em dados oficiais, a palavra Itapuã aparece grafada de diferentes maneiras, variando da citada Itapuã a Itapoã, Itapuan e Itapoan. Convencionou-se para este trabalho o uso da grafia Itapuã, forma adotada na logomarca do bloco afro Malê Debalê.

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Se me lembrava bem, no Abaeté haveria uma lagoa escura, “arrodeada” de areia branca. Era o que dizia Caymmi, em uma de suas imortais canções. Resolvi dar um último crédito ao “Buda Nagô” e conhecer o lugar, o que se mostrou uma sábia decisão.

Em meio a uma vizinhança empobrecida, no ventre de Itapuã, encontrei-me com o Parque Metropolitano do Abaeté, onde dunas de areia branquíssima erguem-se no entorno de uma lagoa de águas verdadeiramente escuras, revelando uma visão de rara beleza.

A viagem terminava assim com uma vontade de breve retorno. Tal qual o Abaeté se esconde no meio de Itapuã, apresentando a poucos todo seu encanto, Salvador deveria ter muito mais a me mostrar, para além de seus pontos turísticos nacionalmente conhecidos.

Pouco tempo depois, já no ano de 2007, pelos meandros do rio da vida minha trajetória acadêmica foi modificada, a partir do ingresso no mestrado com um projeto a ser desenvolvido nesta nova etapa e que acabaria me reaproximando de Salvador.

A dissertação, apresentada em sua versão final no ano de 2009 para a obtenção do título de mestre em Sociologia, intitulada “Das coisas que aprendi nos discos”, objetivou decifrar representações da identificação nacional brasileira em seu cancioneiro popular, através da análise de canções que tiveram considerável exibição em rádios de todo o País, elencadas entre as cem melhores colocadas em paradas de sucesso entre os anos de 1956 a 2005.

Em meio à análise das mais de três centenas de canções, realizada durante a redação da dissertação, entre os anos de 2007 e 2008, chegaram as minhas mãos, e aos meus

ouvidos, duas canções do Olodum: “Faraó” e “Madagascar Olodum”8

.

Era a primeira vez que ouvia com mais atenção o que era dito naquelas canções, por aquelas pessoas. Aquele Olodum do Pelourinho, que me afetara com a

potência de seu som, agora me intrigava com suas letras. Ranavalona? Tutankamon? Seth? Cultura malgaxe? Do que exatamente eles estavam falando?

A análise mais minuciosa das composições me apresentou todo um universo musical que ignorava. Naqueles idos do final da década de 1980, por meio de narrativas quase enciclopédicas, tal coletivo buscava na ancestralidade a valorização do negro no presente.

Nenhuma das demais composições analisadas ao longo de toda a dissertação foi capaz de despertar em mim tamanha curiosidade. Apesar de reconhecer a sonoridade dos tempos de infância e da audição costumeira de rádio em minha família, as letras me eram completamente desconhecidas. Não era o que recordava ser o Olodum. Este, em minha memória, era o

8

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Olodum pós-Daniela Mercury e explosão da chamada Axé Music, no início da década de 1990. Era o Olodum que falava em “requebrar”9

. Pela segunda vez, em pouco tempo, o grupo do Pelourinho me colocava a pensar.

Foi ainda durante o curso de mestrado que realizei minha segunda ida a Salvador, já em 2008. Nesta nova incursão, acabei por mergulhar um pouco mais no

interior da cidade. Era ainda um mergulho em águas rasas, mas que me permitiu desconstruir algumas certezas.

Por estar em uma cidade predominantemente negra, ingenuamente esperei encontrar, finalmente, traços de uma organização social mais próxima de uma democracia racial preconizada por Gilberto Freyre. Um lugar onde as diferenças raciais/étnicas seriam anuladas por uma convivência fraternal e equalizadora. Entretanto, o que encontrei foi um local onde o preconceito racial se mostrou muito mais visível, rotineiro e agressivo. Especulei que a grande presença negra fazia aflorar o preconceito guardado em muitos de nós, pois é quando o diferente se faz presente que o sentimento de desconforto aparece. Foi o que presenciei nas ruas, em cenas de flagrante preconceito, em xingamentos no trânsito, em comentários em restaurantes. Os eventos se multiplicavam de uma maneira que me impressionou.

Ao andar por áreas menos turísticas de Salvador, fiquei cara a cara com o cotidiano do cidadão soteropolitano que faz uso do péssimo transporte coletivo, que frequenta o primeiro andar do shopping Iguatemi ou faz compras na Avenida Sete. Aquele que usa o terminal Pirajá, que gasta uma hora em um ônibus para conseguir se banhar no mar, que sabe que Brasil Gás não é necessariamente um local em que se comercializa gás de cozinha, que utiliza o Pelourinho apenas como uma passagem entre a Baixa do Sapateiro e a Rua Chile. Que frequenta a feira de São Joaquim, ainda a chamando de Água de Meninos. Aquele que vive a Salvador do dia-a-dia e que consegue compreender todas estas referências sem maiores dificuldades.

Pois foi ao me deparar com este universo que me deparei também com minha face mais preconceituosa. Um misto de vergonha, desilusão e angústia tomou conta de mim quando percebi que me senti ameaçado por um jovem negro, que vinha sozinho pela calçada, em direção contrária a minha, com caminhar desenvolto e olhar desinteressado, mas que para mim transparecia ares de quem estava à espreita, no aguardo por uma oportunidade de tornar real meu prenúncio da iminente ameaça.

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Percebi também que, ao olhar para a outra calçada, havia outro jovem, igualmente negro, igualmente ameaçador. Assim como o jovem negro que estava pilotando uma motocicleta. Como o jovem negro que vendia água aos carros parados no semáforo.

Só então me dei conta de que não havia nada de errado com aquelas pessoas. Quem estabeleceu um padrão de suspeito, de sujeito ameaçador, no qual elencava entre suas características ser negro, jovem, usar roupas mais simples, calçar chinelos, fui eu. Acontece que estávamos em Salvador, uma cidade predominantemente negra, onde o Sol parece multiplicar-se e o calor, em alguns momentos, chega às raias do insuportável. Onde eu mesmo optava por roupas simples e chinelos, semelhantes aos dos meus prováveis algozes.

Ao entender aqueles jovens negros como possíveis ameaças, reproduzia um comportamento que caracteriza o indivíduo negro, sobretudo se homem, jovem e de baixa renda, como potencialmente perigoso. Comportamento que se reflete, por exemplo, na construção do perfil de suspeito pelos agentes das forças policiais10. Luiz Eduardo Soares (2005) afirma que a suspeita está para a polícia como o medo está para a população, considerando que nos dois casos, a direção do foco está longe de ser aleatória. Ainda em suas palavras:

Os objetos do medo e da suspeita tendem a se sobrepor, porque os critérios empregados para identificá-los são os mesmos. Encobertos pela máscara das justificativas técnicas ou das alegações digressivas estão os mesmo valores, atavicamente agarrados ao inconsciente coletivo, fundamentalmente enraizados na cultura brasileira. (SOARES, 2005, p. 11)

A partir daquele episódio, entendi que fazia parte daqueles cuja conduta negativa tanto me impressionou. Compreendia, enfim, a persistência do passado11 da qual falava Florestan

10

Vários são os trabalhos que se debruçaram sobre a construção da figura do suspeito por agentes policiais, sobretudo na forma como a questão racial influencia em tal processo. Silva (2009), ao estudar a abordagem da polícia do Distrito Federal, delineou o tipo ideal que levanta suspeição: “O tipo ideal do indivíduo suspeito, o peba, é a figura de um homem, pobre, jovem com tatuagem/brinco e negro que traja roupas folgadas com boné. (...) Quanto mais o indivíduo se aproxima de tal classificação mais ele se torna suspeito, quanto mais ele se distancia desta tipificação mais se torna não suspeito ou até mesmo uma possível vítima” (SILVA, 2009, p. 98). Reis (2002) já havia feito trabalho semelhante ao analisar o comportamento de policiais de duas Companhias da Polícia Militar de Salvador, na caracterização de suspeitos, chegando a resultados também semelhantes: “Entre os soldados e oficiais entrevistados nas duas Companhias da Polícia Militar em estudo, muitos não tinham o menor pudor em caracterizar os negros como suspeitos em potencial. O que mais se destacava nos relatos era o cabelo rastafari como um estigma de marginalidade, um jeito de andar meio gingado, tatuagens no corpo e, ainda, um tipo físico denominado como malhado, com correntes de ouro e/ou brinco na orelha” (REIS, 2002, p. 190). Para mais informações a respeito da construção de suspeitos por forças policiais, ver Sansone (2002), Amar (2005), Ramos e Musumeci (2005), Flauzina (2008) e Barros (2008).

11“A discriminação existente é um produto do que chamei ‘persistência do passado, em todas as esferas das

relações humanas – na mentalidade do ‘branco’ e do ‘negro’, nos seus ajustamentos a vida prática e na organização das instituições e dos grupos sociais. (...) A discriminação do ‘negro’ é sutil e dissimulada, pois ele é confinado ao que os antigos líderes dos movimentos negros de São Paulo chamavam de ‘porão da sociedade’.” (FERNANDES, 2007, p. 62-63).

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Fernandes. Passado que se fazia presente em mim e nos demais, atualizado em nosso preconceito escancaradamente dissimulado.

Mais do que qualquer novo lugar que tenha visitado nesta segunda passagem, ou de qualquer nova experiência que tenha tido, foi justamente esta tomada de consciência do meu próprio preconceito o momento mais marcante. Descoberta daquelas de deixar um incômodo amargor na boca e mais pesada a alma. Sensação que encontra respaldo nas palavras de Fernandes: “O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros diante do ‘preconceito de cor’ é a tendência a considerá-lo algo ultrajante (para quem sofre) e degradante (para quem o pratique).” (FERNANDES, 2007, p. 41).

Descoberta também das posições de privilégio que ocupo por ser um homem branco. De como observava o mundo através de uma concepção em que o branco é o padrão normativo. Naquele instante passou a fazer sentido para mim a afirmação de Guerreiro Ramos (1995) de que a partir do momento em que deixamos de lado o opressor para focar apenas o oprimido, não estamos tratando de relações raciais, mas sim considerando a opressão como referente exclusivamente ao oprimido, desconsiderando seu opressor. Também passaram a fazer maior sentido as palavras de Ruth Frankenberg (1993) a respeito do que viria a ser a chamada branquitude, caracterizada como sendo o lugar de uma vantagem estrutural e de um privilégio de raça, um ponto de vista a partir do qual o sujeito branco olha para si mesmo, para os outros e para a sociedade e um conjunto de práticas estruturais que são usualmente inominadas e não destacadas12. Era o choque contra a porta de vidro, metaforizado por Edith Piza (2000)13. Um episódio fundamental para que, anos depois, pudesse redigir este texto, entendendo que não é possível afastar tal posição privilegiada que ocupo na sociedade, a despeito de minha intenção de ocupá-la ou não. Caberia a mim, como autor dedicado ao estudo de entidades partícipes do movimento negro, assumir tal condição e saber de qual lugar redijo estas palavras.

1.1.QUE BLOCO É ESSE?

1212

“First, whiteness is a location of structural advantage, of race privilege. Second, it is a ‘standpoint,’ a place from which white people look at ourselves, at others, and at society. Third, ‘whiteness’ refers to a set of cultural practices that are usually unmarked and unnamed”. (FRANKENBERG, 1993, p. 1)

13

“Talvez uma metáfora possa resumir o que comecei a perceber: bater contra uma porta de vidro aparentemente inexistente é um impacto fortíssimo e, depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o contorno do vidro, a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta de vidro. Isto resume, em parte, descobrir-se racializado”. (PIZA, 2000, p. 61)

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Com o mestrado prestes a ser concluído, veio minha terceira visita a Cidade da Bahia, em 2009. Desta vez com um objetivo muito claro: brincar o carnaval. Porém, nesta mesma viagem, ainda antes da folia momesca ter início, pude participar do Festival de Verão de Salvador, um evento que mistura diferentes estilos musicais e ocorre sempre entre os meses de janeiro e fevereiro.

Organizado em cinco noites, o festival apresentou atrações para todos os gostos. Escolhi uma noite que estariam reunidos artistas cujo trabalho aprecio e fiquei especialmente satisfeito ao saber que também se apresentaria naquela data o Olodum. Depois de ouvi-los ensaiar no Pelourinho, e ouvir suas canções durante minha pesquisa de mestrado, era real a possibilidade de ver sua performance completa ao vivo.

Faltando poucos minutos para o início da apresentação, o espaço onde se realizaria o show (Parque de Exposições) ainda encontrava-se consideravelmente vazio, o que me causou surpresa, pois esperava um grande público a prestigiar o Olodum.

Fato é que o show transcorreu por completo com um público pouco numeroso. Dentre este público reduzido, me chamou a atenção o fato de que todas as letras eram cantadas quase que em uníssono. Músicas que nunca havia ouvido eram entoadas a plenos pulmões. Canção após canção, umas que reconheci, várias que não, o Olodum ia desfilando seu repertório, quando como em um comando o vocalista bradou: “Eu falei faraó!”

Neste instante, não só os que se concentravam em frente ao palco, como praticamente todo o público que se encontrava ao redor do espaço, e que até então pouco parecia se importar com a apresentação do grupo do Pelourinho, respondeu a aquele chamado: “Ê faraó!”

Bastou ao vocalista proferir a sentença para que o público de imediato lhe respondesse. Uma música com mais de trinta anos, ainda se fazendo potente na voz de uma multidão que se mostrava desinteressada e alheia ao que acontecia no palco. O que teria naquele chamado para ser capaz de produzir tal efeito? Percebia ali que ainda não conhecia nada do Olodum, tampouco do poder de sua obra.

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“Faraó (Divindade do Egito)”14

(Composição de Luciano Gomes) Deuses, divindade infinita do universo Predominante esquema mitológico A ênfase do espírito original chu Formará no Éden o ovo cósmico A emersão nem Osíris sabe como aconteceu A ordem ou submissão do olho seu Transformou-se na verdadeira humanidade Epopeia do Código de Geb e Nut gerou as estrelas Osíris proclamou matrimônio com Ísis E o mau Seth, irado, o assassinou e per-aá Horus, levando avante a vingança do pai Derrotando o império do mau Seth É o grito da vitória que nos satisfaz Tutankamon, iê iê, Gizé! Akhaenaton, iê iê, Gizé Eu falei faraó! Ê, faraó! Clama o Olodum-Pelourinho Ê faraó! Pirâmide, a base do Egito Ê faraó! Eu clamo Olodum, Pelourinho Ê faraó! Que mara, mara, mara, maravilha ê! Egito, Egito ê! Faraó, ó ó ó! Faraó. ó ó ó! Pelourinho, uma pequena comunidade Que, porém, o Olodum unirá Em laço de confraternidade Despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil Em vez de cabelos trançados Veremos turbantes de Tutankamon E nas cabeças que enchem-se de liberdade O povo negro pede igualdade Deixando de lado as separações

Tive então a certeza de que no carnaval que se avizinhava, a presença do Olodum na avenida seria um ponto alto para todos. Entretanto, a realidade desafiou minhas convicções e sequer tive notícia da presença da banda durante todo o período de festa. Não vi seu trio

14

QR Code: “Faraó (Divindade do Egito)” – Olodum. Disponível em www.youtube.com/watch?v=5cSpCMwlNhk

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elétrico, tampouco reportagens com seus integrantes na mídia local. Não ouvi músicas do seu repertório nas rádios, mesmo que, vez por outra, um artista qualquer interpretasse uma de suas canções do alto de algum trio.

Após brincar o carnaval, voltei a Minas, onde segui esperando pelo surgimento de uma ideia que se mostrasse promissora e suficientemente pertinente para que desta resultasse um projeto de doutorado. Foi durante essa época que me veio a seguinte questão: seria esse Olodum, que tanto me inquietou, bom para pensar? Seria o momento de deixar de falar das coisas que aprendi nos discos e ver a vida acontecendo lá fora? Afinal, como diz o saudoso compositor cearense, qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.

1.2.OBJETIVO

Em um esforço preliminar de busca por informações, passei a entender que o Olodum era um bloco de carnaval categorizado como afro, fundado no ano de 1979. Que tinha como objetivos a valorização do negro e de sua cultura, um resgate das tradições africanas e a conscientização e combate dos problemas enfrentados por nossa população negra. Começava a ficar mais interessante. Aqueles ritmistas que encontrei no Pelourinho, anos antes, ganhavam em complexidade.

Ao entendê-lo como bloco afro, comecei a tomar conhecimento deste coletivo no qual o Olodum se insere. Que para além deste, existem outras mais de sessenta agremiações apenas em Salvador, enquadradas na mesma categoria. E que tudo começara com um bloco chamado Ilê Aiyê, no distante ano de 1974.

Trabalhos de maior vulto sobre os blocos começaram a surgir nesta revisão bibliográfica, embora ainda embrionária. Livros, teses e dissertações. Variadas eram as formas como a academia havia se detido sobre o assunto. A começar pelo trabalho de Antônio Risério (1981), produzido na alvorada dos blocos afro, acompanhando de perto os primeiros passos de algumas das instituições que agora já contam com mais de três décadas de história. Para o autor, o surgimento dos blocos e a reafricanização do carnaval de Salvador deixavam claro que a festa seguia sendo um espaço privilegiado para a manifestação e afirmação cultural negra, com as repercussões políticas e sociais implicadas. Para além do carnaval, Risério via a reafricanização como um processo mais amplo, capaz de atingir todas as esferas da vida, sendo o carnaval dos afoxés e blocos afro apenas “sua expressão mais densa e colorida”, mas de maneira alguma restrita à folia momesca.

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Na esteira do trabalho de Risério, outros foram sendo produzidos ao longo das décadas seguintes, encontrando os blocos em diferentes momentos de sua trajetória, ajudando a compor assim um interessante quadro de todo o processo.

Tosta (2010) e Dunn (1992) tratam da dimensão festiva dos blocos como uma forma de resistência. Para Luciano Tosta (2010), os blocos afro têm usado sua música como uma forma de resistência contra uma ideologia elitista dominante, que permearia não só a sociedade baiana como a brasileira. Tais agremiações estariam lutando por seu devido espaço na sociedade, fazendo o possível para que não apenas suas comunidades de origem, como a população afro-brasileira em geral, encontrasse o caminho da cidadania. Para tanto, os blocos afro mover-se-iam para o futuro sem jamais se esquecer de suas origens, utilizando suas músicas para educar as pessoas e chamar a atenção para as questões colocadas para a sociedade no que tange ao racismo e preconceito contra a população negra.

Christopher Dunn (1992) apresenta os blocos afro de Salvador, centrando-se no Olodum e Ilê Aiyê. Em constante diálogo com Roberto Da Matta e seu célebre “Carnavais, Malandros e Heróis”, o autor aponta as diferenças existentes entre as manifestações carnavalescas carioca e soteropolitana, ressaltando como em Salvador a folia momesca serviria como palco para uma manifestação de resistência que ganhava corpo no cotidiano da população negra. Nesse contexto, ressalta o alinhamento panafricanista de tais agremiações e de que maneira tal posicionamento se refletiria no crescente ganho de consciência da juventude negra a respeito de sua negritude.

Da Silva (2008), Perrone (1992), Cunha (2000) e Henry (2008) trabalham a temática sob uma ótica mais ampla da construção de uma identidade afrobaiana.

Francisco Carlos Cardoso Da Silva (2008) elabora uma análise sobre como práticas e discursos contribuem para a desconstrução construção de identidades étnico-raciais dos negros em Salvador. Para tanto, elege como objetos de sua análise o Ilê Aiyê e o Movimento Negro Unificado (MNU), tecendo as tramas existentes na relação estabelecida por tais entidades entre cultura e política.

Para Charles Perrone (1992), o desenvolvimento musical em Salvador tem envolvido conceitualizações étnicas e geográficas a respeito da prática musical e da participação em eventos da cultural popular. Segundo o autor, a atestável consolidação de uma nova estética, nascida a partir da reafricanização do carnaval da cidade, processou uma identificação social vital para a parcela negra de sua população, historicamente alijada do centro do poder. Essa inovação estética passaria pelo desenvolvimento de padrões de bateria idiossincráticos, distintos daqueles exibidos por afoxés e presentes no samba, sendo este sua fonte fundamental

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de derivação, mas influenciado por estilos outros, principalmente o reggae. Suas canções exaltavam a negritude, contavam a história da opressão, revelavam injustiças sociais ou denunciavam o preconceito. Nesse contexto, constantes eram as ligações estabelecidas com elementos internacionais relacionados à diáspora, podendo ser desde o músico jamaicano Bob Marley até o apartheid sul-africano e a figura de Nelson Mandela, passando pela Etiópia e o rastafarianismo. Havia ainda espaço para a apresentação de novas ideias, ou difusão de outras, consideradas contra-narrativas, como no caso do carnaval em que o Olodum apresentou as teses do historiador senegalês Cheikh Anta Diop, cujo argumento central era o de que os negros haviam desempenhado um papel dominante na história egípcia antiga.

Olívia Maria Gomes da Cunha (2000) apresenta uma abordagem segundo a qual a busca pela formulação de modelos de mobilização baseados em práticas político-culturais teria permitido movimentos capazes de viabilizar projetos políticos e de construção de identidade extremamente significativos, bem como a organização política de diferentes grupos. Para além dessas possibilidades, teria consistido em um momento inicial de elaboração de um discurso de identidade entre os movimentos negros brasileiros. Como sujeitos de sua análise, Cunha se debruça sobre os blocos afro de Salvdor (notadamente Ilê Aiyê e Olodum) e o Grupo Cultural Afro Reggae, do Rio de Janeiro.

Por sua vez, Clarence Bernard Henry (2008) vai examinar como os conceitos relacionados ao Candomblé foram apropriados e reinventados na música popular brasileira. Em determinada parte de seu texto, o autor se dedica a análise do samba-reggae, apontando os elementos musicais e estilísticos que seriam decorrentes da religião afro-brasileira, argumentando que o chamado “axé” seria a força unificadora, capaz de unificar as diferentes paisagens musicais, secular e sagrada, na música afro-brasileira.

Tais trabalhos se aproximam do realizado por Morales (1991), já se centrando na questão dos blocos, e de Sansone (2000), que insere na discussão a temática do consumo, mercantilização e globalização, caminho semelhante ao escolhido por Pinho (1997).

Partindo de uma análise que contrapõe o Ilê Aiyê e o afoxé Filhos de Gandhi, Anamaria Morales (1991) afirma que as agremiações negras originadas no Carnaval soteropolitano, desempenham importante papel no quadro das relações raciais e étnicas de Salvador. Tais relações seriam, segundo a autora, essencialmente políticas e econômicas, uma vez que definiriam não apenas a apropriação dos recursos, mas também de espaços sociais entre os diferentes grupos étnicos em confronto. Ao mesmo tempo, tais apropriações seriam simbólicas pois envolveriam as representações que os indivíduos elaboram sobre si próprios e dos demais grupos sociais. Assim sendo, valendo-se do pretenso caráter democrático do qual

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se revestiria o carnaval, setores populares negros de Salvador delimitaram no seu interior um espaço próprio, onde suas representações, enquanto setor dominado, se fariam presentes, através dos dados culturais e étnicos de que dispunham. Voltados para o lazer e movidos pela sociabilidade, tais grupos se tornariam progressivamente entidades capazes de promover uma identificação coletiva com um território e símbolos de etnicidade.

Segundo Lívio Sansone (2000), as culturas negras sempre foram o resultado da manipulação cultural e da mercantilização, não sendo a cultura negra moderna a expressão contemporânea de uma tradição antiga. Ao contrário, existindo uma tradição, ela demonstraria que as culturas negras estão sempre em mutação por meio de um processo que exigiria a mercantilização de artefatos negros. A partir dessa premissa, o autor afirma que a centralidade crescente do consumo na cultura negra baiana moderna cria uma série de novas questões, sendo a principal delas o fato de que sempre que a negritude moderna é associada ao consumo de um conjunto de mercadorias, a incapacidade de consumir poderia gerar um sentimento de exclusão racial. Outra questão seria a incapacidade que tal mercantilização tem de abranger toda a variedade das culturas negras.

Em seu trabalho, Osmundo Pinho (2007) posiciona o foco de sua análise sobre o chamado Bar do Reggae, localizado no Pelourinho, considerado o introdutor da cultura do

reggae na capital baiana. Seu objetivo é compreender se um gênero musical de apelo global

(reggae) é capaz de funcionar como um decodificador da experiência da identidade de jovens negros, alinhando-os a um pretenso fluxo global de uma contracultura da diáspora. Segundo o autor, processo de produção contradiscursiva são capazes de realizar discursos estruturados de elaboração da experiência da alteridade, através da resignificação de elementos de uma cultura popular de caráter transnacional.

Guerreiro (1997), (1999) e (2010), busca traçar um panorama do carnaval de Salvador, sempre em paralelo a discussões que envolvem territorialização, questões raciais e a temática da diáspora africana, perspectiva compartilhada por Oliveira (2002).

Goli Guerreiro (1997) faz um breve panorama a respeito do surgimento dos blocos afro em Salvador, abordando o Ilê Aiyê, Olodum, Araketu, Malê Debalê e Muzenza para, a partir disso, discutir a criação e recriação de territórios brancos e negros na cidade, com o (na época) recente trânsito dos blocos por diferentes territórios (geográficos e simbólicos) da capital baiana. O segundo trabalho aqui referenciado (1999), aborda o processo de invenção do samba-reggae, demonstrando como sua estética conecta elementos culturais elaborados ao longo de uma rede atlântica originada da diáspora negra. Sendo assim, teriam contribuído para esse caldo de cultura do qual emergiria o samba reggae a história musical baiana, a África e o

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Caribe. Haveria ainda espaço para a soul music dos Estados Unidos e o movimento Black Power, sendo o gênero soteropolitano exemplar das formas estético-comportamentais híbridas/sincréticas que se modelam e circulam no chamado “Atlântico Negro”, como nomeado por Paul Gilroy. Por fim, a autora faz uma análise da chamada musicalidade afro-baiana (2010), voltando aos primórdios da história musical afro-baiana, passando pelo surgimento dos blocos afro com suas invenções rítmicas e inovações estéticas, elaboradas em constante diálogo com elementos que circulam por entre o mundo da diáspora negra, em um constante trânsito de sonoridades e ideias.

Nadir Nóbrega Oliveira (2002), por sua vez, se concentra no que chama de desempenhos espetaculares dos blocos afro do carnaval baiano, notadamente Ilê Aiyê, Olodum, Malê Debalê e Bankoma. Seu foco é sobre a dança, música e fantasias apresentadas por tais agremiações, analisando de que forma essas “criações espetaculares negras” reconfiguram e elaboram os ideais de negritude, ao mesmo tempo em que ensejam a fundação das artes negras baianas.

Goldman (2000) e (2001) leva a discussão dos blocos para outro lado, tanto teórico quanto geográfico, quando opta por discutir política, segmentaridades e o movimento negro na cidade de Ilhéus, a partir dos blocos, mesmo campo e escopo explorado nos trabalhos de Silva (1998) e (2004) e Cambria (2002) e (2006).

Marcio Goldman (2000) apresenta uma análise etnográfica da participação de um segmento do movimento negro da cidade de Ilhéus, situada no sul do estado da Bahia, Brasil, nas eleições municipais de 1992 e 1996. Para tanto, apresenta um cenário em que o movimento negro pode ser encarado por duas vertentes: a primeira, de caráter nacional, é representada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), enquanto a segunda é formada por um conjunto de grupos autodenominados “movimento afro-cultural”, críticos a atuação “excessivamente política” do MNU. Vemos a clara oposição entre cultura e política que pautou disputas internas no movimento negro, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. Tomando como sujeito de análise o Grupo Cultural Dilazenze, Goldman elabora uma análise a respeito da participação no processo democrático eleitoral, explorando conceitos como reciprocidade e subjetividade. Já em seu trabalho seguinte, Goldman (2001) se debruça sobre a atuação dos blocos afro e torno da política institucional de Ilhéus, delineando movimentos de segmentação e de alianças. Para tanto, descreve como as rupturas que dão origem aos blocos estão, via de regra, relacionadas a desentendimentos entre componentes, com motivações ligadas a problemas financeiros ou desentendimentos sobre a organização do blocos, mas também tem raízes no fato de que cada agremiação esteve, está — e

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provavelmente estará de alguma forma ligado a políticos profissionais que participaram de sua fundação, ou se aproximaram em razão das eleições. O autor ressalta ainda que, apesar das constantes tentativas de união em torno de candidatos comuns e de uma “tendência federalizante” (em citação a Agier), alianças laterais com diferentes políticos provocam a divisão dos blocos no período eleitoral.

Seguindo a trilha desbravada por Goldman, Ana Claudia Cruz da Silva (1998) e (2004) descreve o que chama de “encontros” responsável pela constituição dos blocos afro da cidade de Ilhéus. A autora chama a atenção para o fato de que, desde o surgimento do Ilê Aiyê, em Salvador, na década de 1970, a academia tem privilegiado uma análise centrada no que se convencionou ser o caráter étnico desses grupos. Entretanto, seu trabalho afirma que, para além dos desejos de afirmação e diferenciação, relacionados a investimentos na dimensão étnica da vida social, os mais diferentes encontros estariam articulados a desejos conectados a outras concepções de vida e do que se entende por blocos afro, sendo esses desejos igualmente constitutivos das experiências de seus partícipes.

Ainda centrado em Ilhéus, Vincenzo Cambria (2002) e (2006) se dedicou a analisar as práticas musicais do Grupo Cultural Dilazenze, defendendo que as mesmas devem ser entendidas como um ‘contexto’ específico onde são construídos e negociados tanto os grupos quanto suas próprias identidades. Assim sendo, o autor discute características do que chama de “contexto música”, na forma como é concebido pelos integrantes do Dilazenze bem como por membros de outros grupos que partícipes da cena afro da cidade, buscando ressaltar sua importância, seja na elaboração de uma identidade étnica, seja como espaço de negociação das diferenças, ou ainda, como importante instrumento de ação.

A relação entre os blocos, construções identitárias e a negritude é explorada nos trabalhos de Béhague (2000), Crook (1993) e Ribard (1999).

Gerard Béhague (2000) parte de um questionamento a respeito da lógica por trás da invenção do samba-reggae, discutindo se esse seria o resultado musical de um verdadeiro processo de hibridização cultural, nascido da reafricanização do carnaval e da música da Bahia. Ao longo do texto o autor passa a defender a tese de que a invenção do samba-reggae foi o resultado de uma atitude de reivindicação social, econômica e política por parte da população negra de Salvador, que objetivou criar uma forma de socialização através da pratica musical, concebendo assim um movimento de afirmação por meio do que chamou de “estilização da negritude”.

Larry Crook (1993) concebe os blocos afro como sendo organizações que compreendem o racismo como uma questão cultural a ser resolvida por meio de um ganho de

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