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2.3. TERCEIRA IDA A CAMPO

2.3.6. ENSAIO DO ILÊ AIYÊ

Após vivenciar um ensaio do Olodum, no Pelourinho, e um do Malê Debalê, em Itapuã, era chegada a hora de conferir o ensaio do Ilê Aiyê, na Liberdade.

O evento seria realizado em uma noite de sábado a partir das 22h00min, na Senzala do Barro Preto. Assim como aconteceu no ensaio do Malê Debalê, o ensaio do Ilê Aiyê também contaria com a participação de convidados. “Viola de Doze” e “Filosofia de Quintal” foram as atrações escolhidas.

Para garantir minha presença no evento, adquiri meu ingresso com antecedência na Boutique do Ilê Aiyê, no Pelourinho. Estavam disponíveis entradas para dois setores distintos: pista e camarote. Optei pela pista, cujo ingresso custou trinta reais, mesmo valor cobrado pelo Olodum. Por sua vez, o ingresso que dava acesso ao camarote custava sessenta reais.

Já na data do ensaio, a opção foi por sair mais cedo de casa e seguir para o Curuzu com o dia ainda claro. O indescritível tom alaranjado do céu, refletido no espelho da Bahia de Todos os Santos, logo daria lugar à escuridão em que a Lua de São Jorge reinaria absoluta.

Com intensa movimentação de veículos e pessoas, a Liberdade mostrava-se pulsante naquela noite de verão. Cheguei à sede por volta das 20h00min. Como os portões estavam abertos, resolvi entrar e ficar no alto da escadaria principal, posição na qual seria possível observar a chegada do público.

Observei um cartaz, fixado próximo à entrada do prédio, que anunciava a apresentação da Band’Aiyê na “Festa da Cultura Negra para eleição da Rainha do Òrúnmila”. O detalhe que me chamou a atenção foi que o citado evento aconteceria naquele mesmo dia, na quadra

do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estácio de Sá, na cidade do Rio de Janeiro. Interessante perceber como o bloco conseguia desdobrar sua banda show permitindo apresentações simultâneas em diferentes estados do país.

A Ladeira do Curuzu começou a ser tomada pelo público que chegava em quantidade cada vez maior. Apesar de portões abertos, a maior parte das pessoas optava por permanecer na rua. Não consegui reconhecer nenhum rosto em meio aquela aglomeração.

Faltando pouco mais de meia hora para o início da apresentação, a situação se inverteu. Rua esvaziada e quadra repleta. Era possível observar também um grande número de pessoas dispostas nos camarotes no andar superior. A faixa etária era variada, com predominância de jovens. Entre os homens o figurino variava enormemente. Camisetas e túnicas em estamparia do Ilê Aiyê dividiam espaço com camisas em modelo polo, camisetas regatas e até uniformes de clubes de futebol. Entre as mulheres o predomínio era dos vestidos, que variavam em relação ao comprimento e estampa. Longos colares, pulseiras e enormes brincos compunham o visual. Algumas optavam pelo uso de lenços prendendo os cabelos, enquanto outras apostavam nos turbantes. Uma parte deixava os cabelos soltos, predominando aí as tranças e o chamado penteado “Black Power”. Entre os homens as tranças dividiam espaço com cabeças raspadas ou longos “dreadlocks”. Um público que estava ali para ver e ser visto. Que não adquirira um ingresso para ser mero espectador, mas antes, para ser coprotagonista do espetáculo.

O ensaio teve início com a apresentação do grupo “Viola de Doze”, que não conseguiu despertar grande atenção em boa parte do público. As conversas, em grandes grupos ou na intimidade dos casais recém-formados, pareciam ser mais atraentes.

Observando o comportamento dos presentes, pude notar que a maior parte destes pareceu ter ido ao evento como parte de um grupo, seja de amigos, seja de familiares. Pessoas que se encontravam entre os seus, perfeitamente alocadas naquele ambiente. Uma interação natural com tudo o que ali acontecia.

Comparando o que ali observava com o que havia presenciado nos ensaios do Olodum e do Malê Debalê, entendia que dinâmicas diferentes pautavam aquelas experiências. Enquanto no ensaio do Olodum era notável a presença de um público que mesclava fãs do bloco com um grande número de turistas, no ensaio do Malê Debalê o público caracterizava- se por uma aura comunitária representada pela relação daqueles que ali celebravam. Por sua vez, o ensaio do Ilê Aiyê trazia um público que guardava certa semelhança com parcela do público do Olodum, sobretudo a parcela que acompanha o trabalho do bloco e deste é fã, mas trazendo consigo um elemento de familiaridade que o ensaio do bloco do Pelourinho não

apresentou, aproximando-se assim da atmosfera criada no ensaio do Malê Debalê sem, no entanto, o mesmo quê de informalidade.

Restava cada vez mais forte a certeza de que, embora pertencentes a um conjunto de instituições, cada um dos blocos possuía características de organização, efetivação e vivência que os tornava totalmente singulares, dotando-os de uma individualidade que não se percebe quando observados a distância.

A distinta experiência dos blocos afro do Pelourinho, da Liberdade e de Itapuã tornava nítido o quão caleidoscópicas são estas instituições. Apesar de projetarem uma mesma relação imbricada entre movimentos reivindicatórios, espaços de lazer e cultura e atuação mercantil, cada uma das agremiações faz desta relação uma construção peculiar, com detalhes particulares que, tais quais pequenos fragmentos vítreos de um caleidoscópio, modificam o todo a cada novo e delicado movimento, elegendo práticas e estratégias que rearranjam constantemente tais elementos, de acordo com a percepção que se tenha das situações postas e de sua possível eficácia, sem que sejam, com isso, incoerentes.

O ensaio prosseguiu e ganhou em animação com a subida do “Filosofia de Quintal” ao palco, mas o ponto alto da noite foi, sem dúvida, a apresentação da Band’Aiyê. O toque do primeiro tambor saudando Mãe Hilda foi ouvido por volta de 01h30min de domingo. Dali em diante, atenções finalmente capturadas. Olhos voltados para o palco, onde dez percussionistas se posicionaram. Quatro cantores se juntaram ao grupo. Logo teve início o desfile de canções clássicas, acompanhadas em coro durante toda a noite pela quase totalidade dos presentes, o que de imediato me remeteu aos ensaios do Olodum e do Malê Debalê.

Na pista as pessoas começaram a dançar, com movimentos que lembravam os realizados pelo público no ensaio do Olodum. Um leve jogar de ombros para frente e para trás, ao mesmo tempo em que deslizavam lateralmente. Os pés acompanhavam a marcação do surdo, também em movimento lateral. Algumas pessoas arriscavam movimentos mais intensos, com giros e arquear de tronco. Nos camarotes, algumas mãos marcavam com palmas o ritmo das canções. Pude perceber a presença de Antônio Carlos “Vovô”, presidente do Ilê Aiyê, dentre os que se posicionavam no andar superior da quadra. Não encontrei Edmilson, Jaci, Cida ou outras pessoas com as quais tive contato durante os dias em que frequentei a sede do bloco.

Em alguns momentos as canções eram entremeadas por discursos breves, versando sobre a luta contra o preconceito e a discriminação racial, intolerância religiosa e segregação socioeconômica. Uma breve fala relembrou o absurdo acúmulo de lixo que presenciei por tantas vezes nas ruas da Liberdade, como comprovação do desleixo do poder público com as

áreas periféricas da cidade. Um grande aplauso deixou em mim a impressão de que não se tratava meramente da aprovação do que havia sido dito, mas do compartilhamento de sensações e demandas. Lembrei-me da ideia de verossimilhança enunciada por Julia Kristeva (1972) cuja proposta afirma que seria verossímil todo discurso que está em relação de semelhança com outro. A união de dois discursos distintos, um dos quais se projeta sobre o outro que lhe serve de espelho e se identifica com ele por cima da diferença. Os que aplaudiam pareceram sentir-se representados pelas palavras proferidas do palco, encontrando nelas a citada verossimilhança.

Passava das 03h00min quando o ensaio caminhou para o final, com um dos cantores anunciando que apresentariam apenas mais duas canções, informe imediatamente respondido com um murmúrio generalizado. O adiantar das horas fez com que eu pensasse em como voltar para casa. Pegar um ônibus parecia ser um delírio.

Findada a observação dos três ensaios, notei que aquela série de eventos revelava um momento de comunhão entre artista e público, bloco e comunidade, e mais, entre pessoas integradas em uma sociedade complexa atravessada por relações de poder, ocupantes de semelhantes camadas da estratificação social, intermitentemente sujeitas a conflitos e que, naquele momento de celebração, conseguiam uma breve trégua na dureza do cotidiano.

Apresentações artísticas que aos olhos distraídos poderiam parecer voltadas unicamente para o entretenimento, mas que através das cores e sons da ludicidade revestiam- se de caráter político, permitindo que pudesse observar e compartilhar um pouco da visão de mundo daqueles indivíduos através da reveladora lente constituída pelos momentos de lazer.

Todo este espetáculo de cores, sons, corpos e movimentos pode ser encarado como um simples momento de comunhão e celebração do estar vivo. E certamente muitos dos que frequentaram os três eventos buscavam apenas a satisfação de tal potência. Mas o mesmo espetáculo pode ser encarado, também, como uma grande oportunidade para manifestação de pertencimento, de orgulho, de afirmação da negritude. E, com a mesma certeza, muitos dos que por aquelas quadras passaram tinham em mente tal propósito. Entretanto, o que é preciso ficar claro é que alienação e consciência não dependem de marcadores externos.

Os frequentadores dos ensaios sejam eles artistas, organizadores ou público, vão estabelecer suas próprias regras, dotando as mesmas ações, que posso considerar interessadas ou não, de outros significados, pertinentes a eles, capazes de delimitar espaços e determinar pertencimentos. A dificuldade em decodificar os sinais elaborados e exibidos por aquelas pessoas deixou claro que, por mais que me fizesse presente, não compartilhava daquele espaço, não pertencia aquele grupo. Como certa vez escreveu Cecília Meireles, no comovente

“O estudante empírico”, tudo não é somente léxico e sintaxe, sendo os atos capazes de modificar os nomes e os verbos. Concordava com a poetisa e também com Magnani:

As pessoas falam com o corpo, com a roupa, com as regras e formas de organização; e também com a palavra. Na verdade, essas são as falas que realmente interessam a pesquisa, e interessam porque são significativas para os que produzem e desfrutam tais modalidades de lazer. (MAGNANI, 1998, p. 166)

Entender a complexidade que um simples arquear de tronco ou pender de braços pode revelar, ou ainda, buscar sentido em gestos gratuitos, mostrou-se tarefa das mais árduas.

Já era dia na Cidade da Bahia quando o primeiro ônibus, que me levaria de volta para casa, surgiu na distante curva da Estrada da Liberdade.

2.3.7.CAMINHADA DA LIBERDADE 2014