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2.3. TERCEIRA IDA A CAMPO

2.3.7. CAMINHADA DA LIBERDADE 2014

Aproximava-se do fim minha terceira investida em terras soteropolitanas. Participar da 14ª Caminhada da Liberdade, realizada em 20 de novembro, Dia da Consciência

Negra, seria seu último ato. No dia seguinte embarcaria rumo as Minas Gerais64. A caminhada tradicionalmente tem como ponto de partida a Ladeira do Curuzu, em frente à Senzala do Barro Preto, e como ponto de chegada o Pelourinho.

Assim sendo, segui para a Liberdade no início da tarde. O evento, que neste ano de 2014 homenagearia Mário Gusmão, estava previsto para ser iniciado as 15h00min.

Chegando a sede do Ilê Aiyê, vi um pequeno carro de som, estacionado bem em frente ao edifício. Nele um faixa trazendo a inscrição “Caminhada da Liberdade”.

Portões abertos, subi os degraus que davam acesso à entrada principal da Senzala do Barro Preto. Fui informado pelo segurança que naquela data a entrada seria restrita. Impedido de entrar, posicionei-me no alto da escadaria, mesmo local de onde observei a chegada do público no ensaio do bloco no sábado anterior.

Pude ver alguns integrantes do Ilê Aiyê que, trajados com uma camiseta confeccionada especificamente para o evento, protagonizavam um verdadeiro entra e sai do prédio. Dentre estes vi Edmilson, que passou por mim como um vendaval. Parecia mais atarefado do que de costume.

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Aos poucos o Curuzu foi sendo tomado por pessoas que acompanhariam a caminhada, bem como por ambulantes que tentavam incrementar sua renda comercializando água, cerveja e refrigerante. O dia, embora nublado, trazia consigo um calor sufocante que parecia lhes ser favorável.

Eis que adentrou a sede uma equipe de reportagem da TV Bahia, maior emissora de televisão do estado que, assim como acontecera comigo, também teve a entrada impedida pelo porteiro.

Edmilson reapareceu e de longe me cumprimentou. Conversou com o porteiro e liberou a entrada da equipe de jornalismo, conduzindo-os para o andar superior da sede onde entrevistariam Antônio Carlos “Vovô”. Recordei-me das falas do próprio Edmilson e de Eduardo sobre o acréscimo momentâneo e pontual de visibilidade conferida aos blocos durante o mês de novembro. Recordei-me também que fora uma equipe da mesma rede de televisão que havia deixado Josélio aguardando em vão na sede do Malê Debalê, semanas antes.

Já passava das 16h00min quando a caminhada efetivamente foi iniciada. Último a deixar a sede, Edmilson perguntou se eu gostaria de ir a bordo do carro de som. Agradeci, mas preferi ir no chão, junto com a maioria dos manifestantes. Seguimos juntos atrás da multidão que já se distanciava.

Não demorou mais do que quinhentos metros até que Edmilson fosse parado por uma pessoa e tivesse que retornar a sede para buscar algum material esquecido. Segui sozinho em meio à multidão.

Mais alguns quarteirões e chegamos até a Estrada da Liberdade. Lá um trio elétrico esperava pelos manifestantes. Pequena pausa para a troca de veículos e logo o cortejo seguiu pela via interditada. A áspera e longa Estrada da Liberdade, tomada pelo povo negro de Salvador, mais do que nunca remetia a Jorge Amado, que a definiu como difícil caminho de sacrifícios.

Para minha surpresa encontrei Eduardo, que estava acompanhado de sua esposa. Pouco a sua frente estavam Claudio Araújo, Miguel Arcanjo, Josélio Araújo e outros integrantes do Malê Debalê. Percebendo que estava sozinho, logo me convidaram para juntar- me a eles. E assim seguimos por alguns quarteirões, conversando sobre a caminhada, sobre Salvador, sobre os comerciantes que baixavam suas portas enquanto aquele cortejo negro ganhava a avenida, sobre as pessoas que observavam por trás das grades de suas janelas, sem coragem de descer à calçada e ver de perto a movimentação.

Eduardo me ofereceu uma cerveja, bebida que estava sendo consumida por todos. Agradeci, mas recusei. Para minha surpresa, ouvi deste o seguinte conselho: “Você tem que beber com a gente. Fazer observação participante!”. Aceitei a bebida. E foi justamente este um importante demarcador em nossa relação. A partir daquele momento eu deixei de ser o pesquisador que estava acompanhando a manifestação e passei a ser aquele com quem eles estavam compartilhando a bebida, como compartilhavam também a manifestação em si, impressões sobre o evento, sobre as pessoas e sobre suas vidas.

Enquanto caminhava, conversando com Eduardo, observei Josélio, que parecia ser uma celebridade. A cada cem metros alguém o parava para cumprimentos geralmente carinhosos.

E assim passamos pelo Plano Inclinado da Liberdade. Um trajeto que poderia ser feito em meia hora, havia levado cerca de uma hora e meia. Ainda faltava muito até chegarmos ao Pelourinho. O trio elétrico foi executando canções dos blocos afro, alternando-as com pronunciamentos alusivos a data celebrada, bem como comentários sobre o cenários político e partidário locais.

Para surpresa de todos, o céu resolveu desabar sobre nossas cabeças. A chuva, que começou fina e bem-vinda, logo se tornou um temporal, forçando uma correria quase generalizada em busca de um abrigo. Poucos foram os que seguiram atrás do trio elétrico, que não interrompeu sua marcha.

Enquanto procurava abrigo, perdi contato com os integrantes do Malê Debalê. Já imaginava prosseguir sozinho durante a caminhada quando fui pego pelo braço. Assustado, olhei e me deparei com Edmilson, que finalmente havia conseguido alcançar a multidão.

Tão inesperada quanto veio, foi-se embora a tempestade. Ruas e almas lavadas, hora de seguir atrás do caminhão. Foi a vez de Edmilson me oferecer uma cerveja, devidamente aceita. Brindamos à Mário Gusmão.

Já era início da noite quando finalmente reencontramos o grupo de Itapuã. Para minha surpresa, não houve muita interlocução entre Edmilson e estes. Distraído em uma nova conversa com Claudio, não percebi quando Edmilson desapareceu na multidão.

Já em Santo Antônio Além do Carmo, prosseguimos sem o trio elétrico. Foi a vez do pequeno carro de som voltar a ser o protagonista. As diminutas ladeiras do histórico bairro não comportavam o grande caminhão. Ali os integrantes do Malê Debalê se despediram de mim e deixaram a caminhada, que já durava cerca de cinco horas.

Novamente sozinho, segui até a Baixa do Sapateiro. Lá reencontrei, mais uma vez, Edmilson. Pela sua alegria, imaginei que tivesse feito novos brindes ao longo do trajeto.

Alcançamos o Pelourinho, onde o Olodum, que não havia tomado parte na Caminhada, realizava evento próprio em alusão à data. Lembrei-me de trecho da entrevista de Eduardo:

O Olodum não faz parte do Fórum de Entidades Negras, não participa da Marcha de Zumbi dos Palmares a muito tempo. Não participa do programa da rádio. Eu fiz parte, enquanto Malê, quando a rádio era aqui na Metrópole. Era Ilê, Malê, Olodum e Muzenza. Ai o Muzenza saiu. O Olodum saiu logo. E ficou só Malê e Ilê fazendo o programa. Ia todo sábado e levava uma música pro programa. Depois eu me afastei. Não tava dando pra ir todo sábado e ai ficou só o Ilê. Mas toca música do Olodum e tal. Então é um primo assim meio que distante dos blocos. Nessas caminhadas o Olodum não tá. Na Liga não tá. No Fórum não tá. (Eduardo Santana, entrevista realizada em abril de 2014)

Entretanto, quando cheguei ao palco montado no Largo do Pelourinho, pouco tempo restava para que findasse a apresentação da última atração da noite, uma banda de reggae. Pelas ladeiras centenárias poucos eram os que por ali ainda perambulavam. Pensei no afastamento existente entre o Olodum, “primo distante”, como dito por Eduardo, e os demais blocos afro, bem como na frase gravada na Senzala do Barro Preto: “sem dividir seremos sempre mais”.

Pensei, também, na afirmação de Michel Agier (1992), complementada por Márcio Goldman (2001), de que para além de uma segmentação característica, causada por fissões sucessivas ou simultâneas, os blocos, bem como outros grupos e movimentos negros, tenderiam a um ajuntamento ou “federalização”, organizando-se em associações, conselhos e federações. Antes de ser uma contradição ao que fora dito por Agier e Goldman, o fato do Olodum manter-se desvinculado de algumas das mais importantes congregações que reúnem os demais blocos afro, confirmava o enunciado, uma vez que o Olodum não renunciou a mencionada tendência federalizante, apenas filiou-se a uma entidade diferente. O bloco do Pelourinho tinha ciência de que precisaria unir esforços na busca de seus objetivos. Lazinho afirmou:

A política ta mudando. Nós temos que mudar também. As entidades que não se alinharem politicamente, estão fraquejando. Agora existe uma ideia que foi criado o Fórum de Entidades Negras, o Conselho de Entidades Negras. Agora tá querendo criar uma Central. Deus ajude que quando a gente sentar na mesa, a maioria sente pra gente poder conseguir algo. A gente não quer se tornar o único. A gente quer que venham vários. É muito melhor para a luta você lutar com vários. Porque um dia o Olodum foi um. Hoje somos vários. Tem o carnaval hoje, o Ouro Negro. O Ouro Negro vem a partir do Conselho de Entidades Negras, quando não dava mais pra arrumar dinheiro só pra um. Hoje pode entrar Governador, sair Governador, existe uma verba lá pra Ouro Negro. Não é o ideal, mas pra quem não tinha nada, já é alguma coisa. Como é que você consegue isso? Unidos. Porque sozinho... Os invisíveis unidos conseguem fazer muita coisa. Basta se estruturar politicamente. É você saber de onde veio e pra onde vai e o que você quer. Você não pode sentar numa mesa sem saber o que você quer, porque o cara que tá do lado de lá, ele tem os assessores. Se você chega sozinho e encontra um cara numa mesa só, ele lhe bota do

seu lado e o resto é só assessores, secretários, aquela estrutura toda. Você chega só. Você vai perder. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

Entendia cada vez mais as alianças feitas com partidos, políticos, sindicatos e outras entidades. Fortalecimento institucional e fortalecimento enquanto movimento. Semelhante ao que fora feitos pelas tradicionais casas de Candomblé da Bahia, ao colocar em seu seio figuras de atestada importância política e social. Serviram-lhes como uma espécie de escudo, sobretudo nos momentos vários de perseguição ao longo de nossa história. Em nada diferiria o comportamento dos blocos afro que agora elegem uma ex-prefeita para ser sua conselheira, ou que recebem candidatos a Presidência da República em suas sedes. Estratégias de uma disputa eminentemente política, que parece longe de acabar. Nas palavras de Lazinho:

O tambor sempre será um anunciador de paz ou de guerra. Nós usamos pra paz. Você vê que na guerra o tambor sempre serviu pra isso. Pra anunciar ou a guerra ou a paz. Nós vamos continuar mandando tocar os tambores em busca da paz. A paz é boa pra todos nós. Agora, politicamente, nós vamos continuar na guerra. (Lazinho, entrevista realizada em abril de 2014)

O retorno da chuva precipitou minha volta para casa. No dia seguinte embarquei rumo as Minas Gerais, com a bagagem e a cabeça igualmente cheias.