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2.4. QUARTA IDA A CAMPO

2.4.5. APÊNDICE – CARNAVAL 2016

Já em 2016, pude mais uma vez acompanhar o carnaval soteropolitano através da cobertura televisiva realizada pela TVE Bahia, a começar pelos desfiles realizados na sexta- feira. O primeiro bloco dos aqui abordados a ganhar as avenidas de Salvador, no Circuito Osmar, seria o Olodum, com saída prevista para 23hs30min daquele dia.

OLODUM - Brasil, mostra tua cara! - Sou Olodum, quem tu és?

Para surpresa de muitos, o desfile foi antecipado, tendo o bloco iniciado seu trajeto pouco depois das 22hs00min. Sua estrutura não diferiu das apresentadas em anos anteriores, com o trio elétrico abrindo espaço para o restante do bloco. Do alto do grande carro de som, os cantores Lazinho, Narcisinho, Sátira e Matheus, vestidos de branco, entoavam canções clássicas de carnavais passadas, intercaladas pela canção tema de 2016. No chão, foliões carregavam como adereços grandes sombrinhas decoradas com as cores do pan-africanismo. No céu, balões com as logos da Caixa Econômica Federal, Bahiagás e Governo Federal reafirmavam o já tradicional apoio.

O tema escolhido apareceu representado nas fantasias e alegorias, cujas cores pareciam anarquicamente dispostas. Em profusão, davam o tom do desfile. Nas indumentárias dos percussionistas era possível ver em detalhes os rostos de crianças negras, sobre os quais foi pintado a logo do Olodum. Era o bloco do Pelourinho efetivamente mostrando sua cara.

Entre uma canção e outra, os cantores faziam agradecimentos, mencionavam um ou outro patrocinador e saudavam o público presente. Houve espaço, ainda para uma menção a campanha de combate ao zika vírus.

A transmissão contou com uma entrevista de João Jorge, diretamente do Campo Grande. João ressaltou o interessante dado de que a transmissão da TVE Bahia estava sendo acompanhada em vinte e um estados brasileiros e em outros sessenta e cinco países, sendo que quarenta e oito destes eram nações africanas. João Jorge aproveitou o mote e elogiou o horário escolhido para o desfile, ressaltando o ineditismo para a agremiação que se acostumou a ganhar as ruas durante a madrugada. Essa antecipação teria resultado na boa presença de público no Circuito Osmar e no próprio ganho do bloco em termos de visibilidades. O presidente parecia satisfeito com o que via.

Cerca de uma hora e dez minutos após o início da passagem do Olodum, a TVE Bahia passou a transmitir exclusivamente do palco montado no Largo do Pelourinho, em homenagem aos cem anos do samba. Naquele momento o músico Paulinho da Viola apresentava o clássico “Pelo Telefone”, de autoria de Donga e Mauro de Almeida.

SAÍDA DO ILÊ AIYÊ DO CURUZU

O sábado de carnaval começou com a cobertura televisiva da tradicional saída do Ilê Aiyê pela ladeira do Curuzu. A mesma aglomeração de pessoas em frente ao terreiro Ilê Axé Jitolu fazia parecer que assistia a uma repetição da saída do bloco, no ano anterior. A diferença ficava por conta da composição de personalidades na sacada da casa de Mãe Hilda. Desta vez era marcante a presença de políticos, candidatos e pré-candidatos a Prefeitura de Salvador, nas eleições que seriam realizadas em outubro. Marcava presença, também, o atual Prefeito, ACM Neto. Bastou o bloco iniciar sua saída pelas ruas da Liberdade para que a TVE Bahia voltasse suas atenções para o Circuito Osmar.

MALÊ DEBALÊ - Reino Negro dos Haussás: Malê Debalê canta a Nigéria

Diferentemente do que acontecera com o Olodum, ao Malê Debalê coube à madrugada de sábado para a realização de seu desfile. Já passava das 02hs00min quando o bloco de Itapuã iniciou sua passagem pelo Campo Grande. Enquanto o trio elétrico do Malê ganhava destaque na imagem, Vânia Dias, que apresentava a transmissão, declarava que o Circuito Osmar era o mais importante do carnaval “porque aqui pulsa o coração do baiano, aqui pulsa a diversidade”.

O bloco de Itapuã reafirmava sua já tradicional força no que diz respeito às alas de dança, variadas e numerosas. A primeira se destacava pela opção por cocares de penas multicoloridos e adornos corporais confeccionados com palha.

Os foliões trajavam batas e vestidos predominantemente em branco e preto, com seu usual padrão de estamparia. No alto do trio era possível ver a performance do Negro e Negra Malê. Presentes no carro estavam ainda dois cantores e uma cantora, trajados com fantasias com o predomínio dos tons de verde, cor presente na bandeira nigeriana.

A atenção da TVE Bahia ao desfile do Malê Debalê durou apenas vinte e um minutos. Após esse período a transmissão alternou entre o palco montado no Largo do Pelourinho, onde se apresentava uma banda de rock, e a passagem do trio elétrico de Carlinhos Brown

pelo Circuito Barra-Ondina. Quando retornou ao Campo Grande, não havia mais sinal do Malê. Quem desfilava era o bloco feminino Didá. A previsão era de que o Ilê Aiyê chegasse ao Circuito por volta das 04hs00min. Optei por acompanhar o bloco em seu desfile de segunda-feira.

ILÊ AIYÊ - O Recôncavo Baiano é Afrobrasileiro – Cara Preta

O Ilê Aiyê ganhou as ruas do centro de Salvador por volta de 21hs45min, trazendo uma abordagem semelhante a que fora exposta pelo Malê Debalê ao trabalhar o mesmo Recôncavo, sob o nome Kirimurê.

Embora a estrutura do desfile parecesse a mesma de outros carnavais, foi possível observar algumas diferenças, a começar por uma grande ala de baianas, posicionadas antes do trio elétrico, formando uma espécie de comissão de frente para a passagem do bloco. Outra curiosidade foi uma ala formada por crianças em pernas de pau, o que conferia um tom circense a apresentação.

Entre uma canção e outra foi possível ouvir o aviso: “Reginaldo coordenador, Edmilson te chama no fundo do carro.” Logo imaginei Edmilson, em sua usual correria de um lado para o outro, tentando resolver os mais variados problemas.

Após cerca de uma hora de transmissão, a emissora estatal baiana deixou de acompanhar o bloco da Liberdade. Dos três blocos analisados nessa tese, coube ao Malê o menor tempo de exibição na TVE.

OLODUM SEM CORDAS

Restou ao último dia de carnaval a grande novidade deste ano. Pela primeira vez o Olodum desfilaria sem as cordas que separam os foliões com fantasias do chamado “folião pipoca”. Neste modelo, seria impossível ao bloco do Pelourinho um desfile com alas de dança, alegorias e adereços, como era costume em suas passagens pelo Circuito Osmar. Talvez por isso, a opção por levar ao Campo Grande o mesmo modelo de desfile apresentado na Barra, com o trio elétrico podendo ser acompanhado de perto pelo público. Como forma de proteger os percussionistas, um grupo reduzido destes foi alocado em cima do trio.

O ineditismo da iniciativa fez com que a TVE Bahia dedicasse a parte inicial do desfile para conversar com João Jorge que, juntamente com outros membros da diretoria do

Olodum, estava na “varanda” da emissora, espécie de camarote montado próximo ao Teatro Castro Alves.

Ao falar da passagem do Olodum sem cordas, João Jorge disse que seria apresentado ao público um cortejo da paz, um cortejo da igualdade, no qual seriam bem vindos os jovens negros, indígenas, marginalizados e demais minorias. Não saberia dizer se aqueles que acompanhavam a passagem do bloco compunham os grupos citados pelo dirigente. Fato é que aqueles que por ali estavam, e que formavam uma verdadeira multidão, cantavam em uníssono todas as canções entoadas do alto do trio elétrico.

Com cerca de trinta minutos de desfile, a TVE Bahia cortou a transmissão para seus estúdios, onde seria entrevistado um músico de hip hop. Na televisão aberta, a Bandeirantes iniciava sua transmissão com o Psirico, artista que desfilaria imediatamente após o Olodum. Não pude ver como terminou a experiência do Olodum sem cordas, mas torcia pelo sucesso da iniciativa.

3.CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-

DEMOGRÁFICA

NO CORREDOR DA HISTÓRIA

Apesar de versar sobre os blocos em sua forma atual, considerei necessária uma volta ao passado da Cidade da Bahia, buscando elementos que me auxiliassem na compreensão das estruturas sociais soteropolitanas historicamente situadas no presente e, sobretudo, me fornecessem subsídios para melhor compreender as entidades as quais me dedico. A atenção ao relato histórico, presente nos materiais recolhidos junto aos blocos, em suas opções temáticas e nas falas colhidas em várias das entrevistas realizadas, mostravam que este era um caminho importante a ser trilhado.

Para além disso, mostravam que ali se travava uma fundamental disputa pela memória. Quando recontam a história a partir de sua perspectiva, elencando seus vultos, jogando luz sobre episódios ou mesmo desafiando o discurso histórico consagrado, o que os blocos fazem é justamente apresentar outras narrativas possíveis, capazes de reposicionar o elemento negro em todo esse cenário. É esse, e não outro, o principal propósito da escolha de um tema que verse sobre os heróis da Revolta dos Búzios, sobre a diáspora africana ou mesmo sobre a possibilidade de uma negra civilização egípcia. Exercício semelhante será feito ao longo desse capítulo.

Sabe-se que a História do Brasil é multifacetada, dotada de uma narrativa oficial, mas também de inúmeras outras que a complementam, seja reafirmando-a, seja contradizendo-a. Heróis e vilões mudam de lado num piscar de olhos, dependendo do ângulo escolhido para se observar determinados acontecimentos. Assim como é a História do Brasil é a História da Bahia.

Ciente da inexistência de um consenso, mas embasado bibliograficamente e seguindo uma lógica condizente com o objetivo proposto neste trabalho, investiguei passagens da História de Salvador que, de maneira direta ou indireta, acabaram por resultar, séculos mais tarde, no que se convencionou chamar de bloco afro. Para tanto, ao regressar no tempo, foi necessário priorizar alguns pontos em detrimentos de outros, fazendo assim o costumeiro jogo da escolha e da renúncia.

Informo ainda que não se pretende realizar aqui uma descrição histórica densa, uma vez que não é este o caráter do estudo proposto. Objetiva-se, antes, pontuar episódios que

farão sentido a análise aqui empreendida, deixando lacunas propositais na narrativa, sobretudo a oficial, da História de Salvador e da Bahia.

3.1.SALVADOR E OS CICLOS DO TRÁFICO NEGREIRO

EU VIM DE LÁ, AQUI CHEGUEI

A história da presença africana em Salvador remonta ao período do ciclo do açúcar, quando os engenhos dominaram a vida econômica e social da Cidade da Bahia, bem como da região da Baía de Todos os Santos e seu Recôncavo.

Registros indicam que a expedição de Martim Afonso de Sousa, em 1531, teria sido a responsável por trazer as primeiras mudas de cana-de-açúcar para o Brasil. Dois anos depois o próprio Martim Afonso de Sousa foi o responsável pela instalação do Engenho dos Erasmos, primeiro engenho da colônia, na futura capitania de São Vicente, da qual se tornaria o primeiro donatário.

Em solo nordestino, a instalação dos primeiros engenhos data de 1535, com o estabelecimento do Engenho Velho, próximo à vila de Olinda, pela ação de Duarte Coelho Pereira, donatário da Capitania de Pernambuco. Segundo Gilberto Freyre:

A lavoura de cana no Nordeste - pode-se acrescentar, no Brasil - parece ter começado nas terras de Itamaracá, a beira da água doce, como também da salgada; das duas águas ao mesmo tempo. E quando depois se regularizou, com Duarte Coelho, foi para acompanhar as 'terras vizinhas das ribeiras' (FREYRE, 1967, p. 20).

Os primeiros empreendedores do açúcar chegaram ao solo baiano trazidos pela armada de Martim Afonso de Souza. Colonos de variadas origens, notadamente portugueses, italianos e flamengos76, se estabeleceram e deram início a produção açucareira. De problemas de adaptação a confrontos com tupinambás, a empresa açucareira teve de enfrentar inúmeros obstáculos e só conseguiu se estabelecer de fato com a implantação do Engenho Real, obra do então Governador Geral, Thomé de Sousa. Atrelada à efetiva iniciativa produtiva estatal, a concessão de sesmarias e de benefícios fiscais serviu de estímulo para que outros engenhos fossem erguidos, chegando a cerca de 40 no final do século XVI. Sobre a doação de sesmarias pelos donatários, escreveu Caio Prado Jr.:

As doações foram em regra muito grandes, medindo-se os lotes por muitas léguas. O que é compreensível: sobravam as terras, e as ambições daqueles pioneiros

76

Flamengo é a denominação dada aos habitantes da região de Flandres, hoje território belga, mas que no século XVI fazia parte das chamadas Dezessete Províncias dos Países Baixos.

recrutados a tanto custo, não se contentariam evidentemente com propriedades pequenas; não era a posição de modestos camponeses que aspiravam no novo mundo, mas de grandes senhores e latifundiários. Além disso, e sobretudo por isso, há um fator material que determina este tipo de propriedade fundiária. A cultura da cana somente se prestava, economicamente, a grandes plantações. Já para desbravar convenientemente o terreno (tarefa custosa neste meio tropical e virgem tão hostil ao homem) tornava-se necessário o esforço reunido de muitos trabalhadores; não era empresa para pequenos proprietários isolados. Isto feito, a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos onde se preparava o açúcar, só se tomava rentável quando realizado em grandes volumes. Nestas condições, o pequeno produtor não podia subsistir (PRADO JR, 1981, p. 19).

Passada a governança de Duarte da Costa, é com o terceiro Governador Geral do Brasil, Mem de Sá, que o açúcar de fato ganhou espaço e começou a prosperar em terras baianas, com as forças oficiais avançando sobre as terras férteis do Recôncavo, expulsando tupinambás e ampliando as zonas de cultivo da cana-de-açúcar. O próprio Mem de Sá se dedicou a implantação de um engenho na região, conhecido como Sergipe.

Para além do apoio estatal, fundamentais para o sucesso da empresa açucareira em terras baianas foram também as condições de clima e solo, totalmente favoráveis ao cultivo da cana, como explica Freyre:

A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo Nordeste e no Recôncavo se explica por condições particularmente favoráveis de solo, de atmosfera, de situação geográfica (FREYRE, 1967, p. 8).

Consolidada, a empresa açucareira começou a reconfigurar a vida social na região de Salvador e do Recôncavo, uma vez que os engenhos, para além de uma unidade produtiva, eram também uma ferramenta colonizadora, responsáveis pela fixação de colonos e instalação de benfeitorias que caracterizavam culturalmente a localidade onde se instalavam.

Em geral os engenhos se organizavam em torno da casa-grande, residência do senhor de engenho, centro da vida social e econômica da propriedade, símbolo edificado da autoridade do senhor. A senzala tinha como propósito ser um alojamento para os escravos envolvidos tanto na produção do açúcar quanto nos afazeres domésticos. Havia ainda espaço para moradias de trabalhadores livres, como barqueiros, calafates, carreiros, feitores, carpinteiros e pedreiros, instalações como a casa da moenda, fornalhas, galpões de estocagem, feitorias, dentre outras construções voltadas diretamente para a atividade produtiva.77

77

Para mais informações sobre a organização interna dos engenhos, ver Amaral (1958), Brandão (1956), Dussen (1947), Freyre (1967), (2004), (2007), Mello (2012) e Prado Jr. (1981).

Sua atividade fim era a produção açucareira, mas inúmeras outras ocupações surgiam no interior dos engenhos, com o objetivo de dotá-los da maior autonomia possível. Antônio Fernando Brandão nos informa sobre o grau de autossuficiência dos engenhos.

O engenho representa uma economia autônoma; para os escravos tecia-se o pano ali mesmo; a roupa da família era feita no meio dela; a alimentação constava de peixe pescado em jangadas ou, por outro modo, de ostras e mariscos apanhados nas praias e nos mangais, de caça pegada no mato, de aves, cabras, porcos para as bandas do Sul, para as do Norte ovelhas principalmente, criadas em casa — daí a facilidade de agasalhar convivas inesperados, e daí a hospitalidade colonial, tão característica ainda hoje de lugares pouco frequentados. De vacas leiteiras havia currais, poucos, porque não fabricavam queijos nem manteiga; pouco se consumia carne de vaca, pela dificuldade de criar rezes em lugares impróprios a sua propagação, pelos inconvenientes para a lavoura resultantes de sua propagação, que reduziu este gado ao estritamente necessário ao serviço agrícola. (BRANDÃO, 1956, p. 6).

Nos primeiros engenhos em terras baianas, ainda no século XVI, a mão de obra era formada basicamente por índios que trabalhavam, inicialmente, em troca de objetos, mas que acabaram submetidos ao trabalho forçado. Como informa Prado Jr.:

Em primeiro lugar, à medida que afluíam mais colonos, e portanto as solicitações de trabalho, ia decrescendo o interesse dos índios pelos insignificantes objetos com que eram dantes pagos pelo serviço. Tornam-se aos poucos mais exigentes, e a margem de lucro do negócio ia diminuindo em proporção. Chegou-se a entregar-lhes armas, inclusive de fogo, o que foi rigorosamente proibido, por motivos que se compreendem. Além disto, se o índio, por natureza nômade, se dera mais ou menos bem com o trabalho esporádico e livre da extração do pau-brasil, já não acontecia o mesmo com a disciplina, o método e os rigores de uma atividade organizada e sedentária como a agricultura. Aos poucos foi-se tornando necessário forçá-lo ao trabalho, manter vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa em que estava ocupado. Daí para a escravidão pura e simples foi apenas um passo. Não eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva do Brasil e do estabelecimento da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e instituíra firmemente em toda parte. (PRADO JR, 1981, p. 21).

Como resultado e resposta ao processo de escravização indígena, a cidade de Salvador e o Recôncavo assistiram a inúmeros episódios de fuga bem como confrontos abertos entre indígenas e europeus. Soma-se a este caldo já movimentado a interferência de ordens religiosas, como a Companhia de Jesus, que preconizava a catequização dos nativos e sua utilização em afazeres outros que não a cultura da cana78.

O trabalho no engenho era intenso e praticamente ininterrupto. Como bem descreveu Roberto Schwartz:

O trabalho em um engenho brasileiro era ininterrupto, sendo as tarefas pertinentes aos canaviais realizadas durante o dia e as atividades da moenda feitas à noite. A

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Para mais informações sobre a atuação indígena no empreendimento colonial português, ver Almeida (1997), Cunha (1992), Monteiro (1994), Oliveira (1978)Ribeiro (1977), Silva (1995) e Todorov (1999).

moenda ficava em funcionamento normalmente por dezoito a vinte horas, parando por apenas algumas horas para a limpeza do mecanismo. No século XVII, os engenhos baianos, iniciavam a moagem às quatro horas da tarde, prosseguindo durante a noite até às dez horas da manhã seguinte. Durante as poucas horas de folga os escravos tentavam dormir, mas às vezes passavam esses momentos procurando mariscos [...] os cativos faziam turnos dobrados. Seu trabalho era ‘incrível’, e tão intenso que "um desses engenhos poderia ser chamado de inferno. (SCHWARTZ, 1988, p. 97).

Tal esquema produtivo demandava uma considerável quantidade de mão de obra para que a produção fosse mantida. Os constantes problemas com os indígenas fizeram com que uma alternativa fosse buscada, e esta veio do outro lado do Atlântico. Era o início do primeiro ciclo do tráfico de africanos escravizados dirigidos a Bahia, que tanto Pierre Verger (2002) quanto Luiz Vianna Filho (2008) chamaram de “Ciclo da Guiné”79. Verdadeiras legiões de homens, mulheres e crianças, negras como a noite, como enunciado por Castro Alves no célebre “Navio Negreiro”, começaram a ser desembarcadas no litoral baiano.

A época do início da colonização do Brasil, Portugal já fazia uso de africanos escravizados em seus canaviais de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, bem como na

Ilha da Madeira e nos Açores, com considerável sucesso80. Mais acostumados com a criação de animais e com o manejo de plantações, pesava ainda na escolha dos africanos a sua convivência pregressa com o sistema de escravidão. De fato, Portugal já negociava escravos com nações como o Congo há tempos, o que facilitava as tratativas81.

Teve início então o processo de substituição da mão de obra escrava do indígena pela