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3 Enxadas às costas

4.7 Aparelhando-se nas intensidades do tempo

Porque o tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte.

Manoel de Barros

Aparelharmo-nos dos conceitos que deveriam estar presentes numa escola de tempo integral. Afinal, é uma escola de turno integral ou de tempo integral? Nunca havia me questionado sobre isso, me deparei com esta inquietação, então é importante demarcar alguns caminhos conceituais que ao longo da pesquisa foram sendo ressignificados. O conceito de turno integral, por exemplo, de início utilizava-o como sinônimo de tempo integral, aos poucos o cotidiano, as leituras, as imagens, as falas e palavras, me provocaram a pensar que não são sinônimos, estabelecendo, portanto o que diferencia para mim um conceito do outro.

Hoje, compreendo que o conceito “turno integral” está atrelado em coisas que não se ligam, como por exemplo, turno da manhã e turno da tarde. Parece que ele só acontece na presença desses dois tempos, nos faz lembrar um cronograma, rotina prescritiva, ou quem sabe preencher o tempo. No turno da manhã, as crianças vivem a proposta X e no turno da tarde elas vivem a proposta Y. Nessa concepção, a organização parte do tempo do relógio e tem ao mesmo tempo um “tempo do relógio negado, invisível”.

Para mim, esse tempo negado e invisível acontece entre as 12:00 às 13:30, se vivemos nessa lógica, pensamos somente os turnos manhã e tarde em momentos distintos. Ao contrário dessa perspectiva, o tempo integral contempla todos os tempos vividos pelas crianças na escola, contempla a intensidade e não roteiros pré-definidos, fragmentados e sem vida. Aqui a lógica é viver, e não o fazer, o que é o mais difícil de acontecer, pois somos “condicionados” a pensar a escola a partir do que as crianças fazem quando chegam, até o final do turno. Acredito ser esse o maior desafio de uma escola de tempo integral, ter tempo para viver. Parece estranho construir esta afirmação, pois se as crianças vivem na escola cerca de dez horas, como dizer que não têm esse tempo para viver durante estas horas diárias?

Um tempo intenso, para curtir, que eu me sinta bem, que eu seja respeitado, para dialogar com a vida. E por que a vida não entra na escola? Por que a separamos? Por que somos consumidos? Enfim, essa concepção parte da compreensão de um tempo conforme nos coloca Souza (2011, p. 18) “não o de sucessão, mas o de intensidade”. Além de pensarmos no tempo humano, que segundo Barbosa (2009, p. 141) é o tempo interior, biológico, do desejo, do sonho, da emoção. Assim, o tempo do processo cotidiano exige uma nova perspectiva, que segundo Bondioli (2004, p. 22) descreve como “centrada mais no “ser” do que no “ter de ser”.

No entanto, busca-se construir uma escola em que o tempo seja vivido de uma maneira em que haja tempo para falar, para ouvir, para sentir, para cantar, para respirar, uma roda de pipoca com chimarrão, com direito a risadas e boca lambuzadas de infância, que me marca, me transforma, me humaniza. Um tempo diferente, urgente e que as crianças saibam bem como é vivê-lo. Nós adultos que não as permitirmos viver, ensinamos a elas outros tempos, negamos a elas a viver o “tempo-infância”, pois nele cabe tudo.

Na tentativa de compreender esse tempo-infância, “com olhos de criança”, encontro em três charges de Tonucci “Os perigos do turno integral na escola” (1974), “Os perigos de um turno integral pleno na escola” (1974) e por fim “Doze horas na creche” (1984), a elucidação do que acredito não ser o tempo integral, uma certeza, que me leva a outra incerteza. Então como seria? Inevitavelmente, ao vê-las com mais vagar, me pergunto: Como estamos

vivendo o tempo e as propostas na escola? Que práticas buscamos construir? Como estamos desenhando as nossas charges?

Figura 20 – Os perigos do turno integral na escola

Figura 22 – Doze horas na creche

Tonucci tecendo suas críticas “apimentadas”, através das linhas do lápis, nos convoca a visualizarmos os extremos das concepções vividas por tantas crianças da Educação Infantil ao longo dos anos, desde práticas centradas no “ouvir” e nada melhor que a metáfora da raiz, a, prática que “senão é para ser assim...” logo vamos pensar em dinâmica, em muitas propostas, sustentada aqui nas “mãos” e por último na crise de não saber para onde ir, nem ficar sentado e nem muitas propostas, logo o entendimento de que é para ser “livre”. É nesses equívocos, nesses achismos que as histórias são contadas, ano após ano, entre as paredes da escola. Precisamos desvelar as “práticas” que ainda são vividas pelas crianças nas escolas de Educação Infantil de tempo integral, não podemos negar as questões que emergem desse contexto, não podemos continuar a fazer sem refletir, ou refletir com referenciais simplificados, ou mesmo com referenciais legitimados como deuses nos bastidores da educação.

Nas três charges estão implícitas as concepções de infância, de espaço e tempo vivido, de escola, de aprendizagem e de professor. Como esses conceitos se explicitam nas nossas escolas?

Pensar nessa escola é ter em mente as crianças reais, as quais têm seus direitos a viver experiências ricas, que ampliem seus conhecimentos. Escutá-las, e isso contempla também os seus silêncios, os seus choros, as suas negações, os seus diferentes jeitos de nos dizer que estamos no caminho equivocado.

É indispensável refletir nas marcas que esse “confinamento19”, visibilizado através das charges, está imprimindo nas nossas crianças, o que representa para elas estarem na escola 10 horas do seu dia, longe da sua família, das suas coisas. Isso precisa ser uma questão quando pensamos essa escola.

Pensando nos conceitos que se explicitam na escola e por se tratar de uma pesquisa colaborativa, desafiei o grupo a trazer para nossa formação uma fotografia da escola, que retratasse a sua concepção de escola integral. Nesse período inicial da investigação (2011) participaram uma professora e sete estagiárias20.

Diante das fotografias trazidas pela professora e estagiárias, categorizei em dois grupos. O primeiro apresenta a concepção de práticas que parece constituírem-se em momentos que diferenciam uma escola de tempo integral e parcial, sendo esses: o sono, a alimentação e a escovação.

Figura 23 - Momento do sono Figura 24 - Crianças lanchando Foto: Aline Dezengrini de Souza Foto: Juliana Rodrigues

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Confinamento da infância aqui entendido a partir da perspectiva de Barreto(s.a.) “no sentido do seu encurtamento; privação, limite, enclausuramento e encerramento”.

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As estagiárias são estudantes de Pedagogia e tem vínculo de emprego com uma empresa terceirizada contratada pelo SESC, recebendo mensalmente uma bolsa auxílio e vale transporte. Existem duas modalidades de estágio, um subsidiado pelo Departamento Nacional do SESC em que a estagiária tem uma carga horária de 4 horas diárias e outro subsidiado pelo Departamento Regional do SESC, tendo uma carga horária de 6 horas diárias.

Figura 25- Crianças escovando os dentes Foto: Aline Dezengrini de Souza

Outro grupo de fotografias retrata as práticas que estamos construindo e vivendo na escola: a meleca com farinha, o barulhar e a oficina de culinária. Esta última fotografada por três participantes, como as fotografias se assemelhavam escolhi uma para representar.

Figura 26 – Crianças melecando Figura 27 – Crianças barulhando em frente ao espelho Foto: Juliana Rodrigues Foto: Daiane dos Santos

Figura 28 – Oficina de culinária Foto: Aline Dezengrini de Souza

A partir dessas fotografias, fui investigar então, como essas práticas estão sendo construídas e vividas na escola pesquisa, para e/ou com as crianças. Escrever sobre nossas experiências é um momento muito especial, de autoria, de nos conhecermos, de partilharmos nossa caminhada, nossas dificuldades, nossas escolhas, nossos crescimentos, nossas teorias construídas na relação com os adultos, com as crianças e com as famílias. Enfim, há muita diferença de escrever sobre outra realidade, depois da coleta de dados, voltamos nela com o compromisso que assumimos da socialização da dissertação propriamente dita. O que fica depois? Como os envolvidos serão tocados? Como os escritos modificarão os contextos, as fotografias? Ao escrever sobre nós mesmos, nossas práticas, reafirmamos nosso compromisso com a Educação Infantil e as infâncias que ali habitam, nos tornamos autores da nossa história,

Seja no percurso da prática pedagógica, lançando mão de anotações rápidas ou mais elaboradas, seja ao final do processo, na sistematização de ideias, escrever é ato de totalidade. Ao registrar, o educador afirma-se autor. Marca o vivido e sonha o viver. Recupera a sua palavra. Tome posse efetiva do seu fazer. Ao escrever o vivido, ele nomeia a experiência e, ao nomeá-la, inscreve no circuito da história (OSTETTO, 2008, p. 32).

Nesse momento, julgo ser importante contar um pouco da história da implementação do tempo integral na instituição pesquisada para entender o motivo que me levou a pesquisar sobre essa temática.