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Apontamentos sobre o materialismo-histórico e os modos de vida

2. Terapia ocupacional: da epistemologia aos modos de vida juvenis

2.1. Apontamentos sobre o materialismo-histórico e os modos de vida

A dialética materialista histórica pode sinalizar diversos caminhos de compreensão e de debate de estudos específicos deste campo. O entendimento aqui proposto, sem a pretensão de aprofundamento na temática, é orientado pela concepção metodológica do materialismo histórico, conceituado por Marx e Engels na “Ideologia Alemã”, tal como trabalhada pelas terapeutas ocupacionais e apresentado por alguns comentadores de sua obra, entre eles Lowy (1991). Para o autor: os processos de produção ideológicos não se fazem no campo individual, mas sim a partir das classes sociais, configurando um conjunto orgânico, “uma maneira de pensar o mundo” (LOWY, 1991, p.95).

A dialética pode ser compreendida como o desenvolvimento e a transformação dos fatos dentro de uma trama de relações entre aquilo que é

histórico com aquilo que é a realidade. Logo, o materialismo se torna imperativo pela concepção da produção social da existência, ou seja, a partir de uma interpretação da realidade, do mundo e até da existência humana baseada na configuração histórica e social (FRIGOTTO, 2000). Nesse entendimento, as contribuições trazidas por Vazquéz (2011) podem ser de grande interesse para a terapia ocupacional, na medida em que evidencia, a partir do pensamento de Marx e Engels, a emergência do conceito de práxis.

Para Vazquéz, a práxis é entendida a partir da atividade, ou seja, um ato ou um conjunto de atos em que um agente (físico, biológico ou humano) modifica a matéria-prima dada (corpo físico, ser vivo, vivência psíquica, grupo, relação ou instituição social), resultando num processo de transformação da atividade em um produto que pode ser um conceito, um instrumento, uma obra artística ou um novo sistema social (VAZQUÉZ, 2011). O autor aponta que a distinção entre a atividade humana e a atividade em geral se dá pela ação dos sujeitos frente a realidade, transformando um objeto e o resultando em um produto efetivo e real (GALHEIGO, 2012). Com isso, a práxis se baseia na construção da realidade a partir do fazer humano, por meio de instrumentos e conhecimentos que resultam num produto final, na materialização de um projeto (GALHEIGO, 2012).

Desta forma, o materialismo histórico buscou construir a explicação acerca da vida social pelo plano de conhecimento da dialética do real, ou seja, na busca do entendimento dos diferentes agentes em execução na vida concreta material, buscando refletir e analisar criticamente a realidade (FRIGOTTO, 2000). Tal fundamento baseia-se no questionamento acerca das condições para a reprodução da vida material, na compreensão de que a estrutura social capitalista molda a sociedade e suas relações estratificadas em classes sociais, sendo que um pressuposto fundamental é a desigualdade entre as classes sociais (MARX, ENGELS, 2001). Assim, na coesão social de uma sociedade fundada no capitalismo, o trabalho atua com centralidade organizativa de mecanismos de exploração (CASTEL, 2002) e também da configuração das relações sociais estabelecidas (ALVES, 2010).

Nessa perspectiva, Gramsci (1966) integra a discussão materialista- histórica adicionando os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia. O autor

discorre que é de grande relevância social a presença de projetos em disputa na arena social que tensionem a hegemonia, pois, mesmo que “derrotados” nos debates democráticos, podem modificar o padrão hegemônico. Aponta que o pensamento hegemônico é minimizado ao pensarmos na indissociabilidade entre a relação público e indivíduo. A constituição da individualidade de cada sujeito na sociedade passa por sua relação orgânica com a dimensão macrossocial, caracterizando sujeitos que não são apenas individuais, mas também coletivos. Dessa forma, adquirir a consciência individual, que pode ser mediada por processos técnicos daqueles que têm a função social de “intelectual”, como definido por Gramsci (1991) como intelectuais orgânicos; é buscar modificar o conjunto hegemônico em que as relações sociais estão implicadas, contribuindo para novas disputas na sociedade (GRAMSCI, 1966).

Gramsci (1991) define a consciência política como um dos elementos imprescindíveis para a execução do papel técnico e científico, pois é a partir deste lugar que os interesses da sociedade são organizados. A ação técnica por si só não deixa de cumprir a função ideológica das camadas dominantes, a atitude política pode inverter essa lógica, dada pela consciência social (GRAMSCI, 1991).

Dentro da abordagem materialista-histórica, torna-se imperativo ultrapassar o limite do sujeito individual e qualificar o espaço social como indissociável à prática profissional, transpondo para a ação coletiva dos grupos populacionais com os quais a terapia ocupacional atua. As condições históricas e culturais dos sujeitos possibilitam a construção de suas atividades (NASCIMENTO, 1990), ocupações (MAGALHÃES, 2013), cotidianos (GALHEIGO, 2003) ou, em uma linguagem dialética, de seus modos de vida (RODRIGUES, 2010).

O termo “modos de vida” possui sua conceituação na sociologia urbana do início do século XX, frente aos estudos de Wirth (1979), que delimitavam um modo de vida urbano na diferenciação ao modo de vida rural. A compreensão sobre a vida social urbana é para além do local de moradia e trabalho do ser humano moderno, compreendendo os meios controladores da vida econômica, política e cultural, capaz de interligar diversas áreas, povos e atividades na urbanidade. Como afirma Rodrigues (2010), os modos de vida resultaram, em

primeiro plano, na posição ocupada pelos indivíduos dentro do sistema produtivo e, em segundo plano, em um conjunto de variáveis onde se inscreviam as filiações identitárias, tais como classe social, identidade regional, grupo etário, entre outras.

Nessa vertente, é importante destacar a contribuição de Pierre Bourdieu no que denomina de “estilos de vida” (BOURDIEU, 2006), sistematizando em capitais econômicos, culturais, sociais e simbólicos a “estilização da vida, particularmente, por parte de algumas classes e frações de classes” (RODRIGUES, 2010, p.250). Bourdieu (2006) elabora sua conceituação a partir da definição de habitus, como o “princípio de práticas objetivamente classificáveis” (p.162), sendo a capacidade de elencar ações ou práticas através daquilo que se aprecia e que compõe o “mundo social representado, ou seja, espaço dos estilos de vida” (p.162).

A proposição do autor parte da concepção do que denomina de “capital cultural” (BOURDIEU, 2006), propondo uma hierarquia dos códigos culturais, ou seja, a alta cultura, a cultura de massas e as culturas populares, arbitradas dentro de um processo de legitimação de acordo com as regras e códigos das classes intelectualizadas ou dominantes, mas que cria, para o capital cultural, variáveis fundamentais para definir os estilos de vida das classes sociais (RODRIGUES, 2010). A construção dos estilos de vida se dá pelos espaços de preferências relativos à estrutura social, definindo seus consumos culturais, tais como alimentação, vestuário, cosmética, esporte, música, política, linguagem, entre outros, que, a depender das configurações do capital, retraduzem as necessidades e as facilidades características de determinada classe social e condições de existência relativamente homogêneas (BOURDIEU, 2006).

É importante apontar nessa discussão que o conceito de classe não se restringe ao fenômeno econômico, pois a sociedade contemporânea também é uma sociedade de classes e, como Bourdieu (2006) aponta, a posição social depende do volume, distribuição e composição do capital, seja econômico, politico e/ou cultural (FUCHS, 2008).

A partir da discussão proposta por Wirth e Bourdieu, autores buscaram destrinchar a conceituação de estilos de vida frente à cultura contemporânea, como uma cultura de consumo (LOBO, 1992; FEATHERSTONE, 1995;

BAUMAN, 2008; DE MASI, 2014). Por meio da discussão da concepção dos estilos de vida sob a perspectiva da globalização, ou seja, não mais como estruturas, mas sim como processos, foi conferida uma pluralização dos estilos de vida, não caracterizados como uma associação automática a uma determinada classe ou estrato social, ganhando assim um aspecto individualizante sobre a proposição (RODRIGUES, 2010). Porém os autores destacam que há sempre uma relação intrínseca ao lugar social ocupado na sociedade, pois, por mais que a globalização pluralize os estilos de vida, a relação que se tem com o capital está baseada numa sociedade de classes e, dessa forma, os componentes culturais ainda podem ser, em sua maioria, hegemônicos e pautados pelo lugar social de classe ocupado.

Tomo como exemplo a cultura hip-hop, surgida na década de 1960 na periferia de Nova York, onde latino-americanos e negros constituíram um movimento artístico com música (RAP), artes visuais (graffiti) e dança (break-

dance), difundido no mundo inteiro (MAGRO, 2002), e que de fato foi

incorporado por alguns membros das classes dominantes, produzindo uma cultura hegemônica que conflui em diversos estilos de vida. Esse exemplo retrata as práticas de produção de consumo e suas modalidades de resistência perante aos interesses de classe, demonstrando as condutas, ou os modos de vida, como explicadores da estrutura social da sociedade de classes (LOBO, 1992).

Conceitua-se assim “modos de vida”, como a ordem simbólica formada pelo conjunto de atividades cotidianas, ocupações, nas quais os sujeitos estão inseridos dentro de seu contexto social e cultural (BARROS, 2004). Trata-se da articulação entre condições de vida, relações e práticas sociais exercidas (LOBO, 1992). Dessa forma, a dimensão da atuação do terapeuta ocupacional na proposição de sua intervenção deveria considerar a determinação histórica e cultural das possibilidades que os sujeitos possuem, perante à sua condição social, dentro de uma sociedade de classes. Através destes conceitos, conseguimos projetar uma ação terapêutica-ocupacional que ultrapasse o limite do sujeito e qualifique o espaço social como lócus inerente à prática, em uma perspectiva de sujeitos coletivos e não, “apenas”, individuais.

2.2. O terapeuta ocupacional: de funcionário do consenso para