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Retomando a concepção materialista-histórica na terapia ocupacional

2. Terapia ocupacional: da epistemologia aos modos de vida juvenis

2.3. Retomando a concepção materialista-histórica na terapia ocupacional

(KRONENBERG; POLLARD, 2007) são abordagens que reconhecem as atividades humanas constituídas pela dinâmica das estruturas sociais e políticas (POLLARD, SAKELLARIOU, 2014).

Portanto, a defesa assinalada é de uma postura técnica, na compreensão da contribuição do terapeuta ocupacional na mediação de processos para ampliação da autonomia e participação social dos sujeitos; ética, pelo compromisso social frente às demandas da sociedade que vivemos, no tempo histórico em que estamos; e política, na assunção que a responsabilidade é a expressão do compromisso político no próprio conteúdo da ação técnica (NOSELLA, 2005).

O debate sobre a formação para um profissional capaz de articular técnica, ética e política é importante nas reflexões acerca da manutenção da profissão nos seus diferentes campos de atuação, cabendo o questionamento sobre a dimensão da atuação do terapeuta ocupacional na proposição de sua intervenção.

Trata-se da defesa que a atuação profissional deve partir da compreensão que a demanda deve ser abordada dialeticamente, entre a necessidade singular e plural que representa. Dessa forma, a ação técnica engloba necessariamente o diálogo com as esferas políticas, na busca pelo acesso daquela população aos direitos sociais estabelecidos. Tal trabalho não deve ser reduzido a uma explicação acerca da militância política (o que em partes não deixa de ser), mas à discussão colocada aqui que compreende tal aspecto como parte da ação técnica profissional do terapeuta ocupacional.

2.3. Retomando a concepção materialista-histórica na terapia ocupacional

Através deste resgate dos percursos iniciais da profissão no Brasil, pontuam-se as críticas produzidas pelas terapeutas ocupacionais aos referenciais, modelos e atuações adotados até então na profissão e que, em

suas opiniões, necessitavam ser revistos, pontuando a elaboração de um novo paradigma para a terapia ocupacional, no caso a orientação materialista histórica.

Esta orientação contribuiu para responder e enfrentar questões acerca da identidade profissional (GALHEIGO, 1988). Tal situação, fortaleceu o debate sobre quais rumos e modelos que a profissão deveria tomar, requalificando o aporte teórico humanístico até então predominante (PINTO, 1990).

Pelo contexto histórico brasileiro da década de 1970, marcado pela repressão de trabalhadores e estudantes no cerceamento de suas ações políticas, corporativas e em algumas situações sociais, em função da ditadura militar vivida no país, surgiram movimentos sociais reivindicatórios pela relação da classe popular com militantes políticos e profissionais de nível universitário, criando um ambiente propício para a elaboração de propostas de resolução de problemáticas com modelos alternativos (PINTO, 1990). Naquele período, alguns terapeutas ocupacionais engajaram-se em movimentos populares e na luta dos trabalhadores que reivindicavam melhores condições de trabalho e salários, achatados pela política econômica do governo. Assim como debatiam mudanças no modelo de assistência, como as proposições das Reformas Sanitárias e Psiquiátrica, que culminaram no Sistema Único de Saúde, em 1990, e em uma nova configuração diretiva da política de saúde mental, com base na desinstitucionalização (LOPES, 2001).

Francisco (1988) apontava que o terapeuta ocupacional sempre teve como finalidade formal de seu trabalho desenvolver a autonomia do ser humano, porém a ação terapêutica se limitava à manutenção da estrutura social, da preservação da alienação e do conformismo, por meio das ações institucionais realizadas. A autonomia buscada, para além da relevante questão físico-mecânica, deveria, segundo Guihard (2001), ser caracterizada pelo ato de se fazer política, pois, quando projetada sob um sujeito singular, expõe contextos históricos e sociais, explicitando as ordens formalmente estabelecidas no espaço social e público.

Tais indagações inspiraram toda discussão ocorrida nos anos de 1980 sobre o contexto social e a insuficiência do setor saúde para atenção às demandas dos sujeitos com quem trabalhamos (BARROS, GHIRARDI, LOPES,

2002). Assim, o terapeuta ocupacional foi indagado a refletir não somente sobre a reabilitação física do sujeito, o que em si é um tema de grande relevância e magnitude, mas também na busca de mediar ações junto às problemáticas que tangenciam ou se centralizam no aspecto social (BARROS, 1990). A negação da realidade onde o sujeito está inserido deixa o terapeuta ocupacional fechado e aprisionado sob uma suposta vocação terapêutica que, por vezes, se caracteriza como uma tradução abstrata e distante do real (BARROS, 1990).

Este bojo de discussão trouxe à tona as proposições da terapia ocupacional social e a organização de uma subárea específica de atuação na profissão. Lidar especificamente com a questão social dentro da terapia ocupacional adveio, entre outros fatores, do questionamento de alguns profissionais frente às bases da ação profissional e de suas atuações nas instituições totais (BARROS, GHIRARDI, LOPES, 2002), propondo ações que priorizassem as potencialidades dos sujeitos, individuais e coletivos, frente à diferenciação das condições de vida entre as classes sociais. Para tanto, o entendimento das situações de desfiliação e vulnerabilidade social, na perspectiva de compreensão das rupturas das redes pessoais e sociais de suporte (CASTEL, 2002), associando às políticas públicas locais que incidem sobre eles, foi um fundamento teórico marcante e consonante a uma leitura sócio-histórica da realidade.

A terapia ocupacional social projeta um campo teórico e prático de produção de conhecimento, formação de profissionais e ações direcionado a diversos grupos populacionais, voltando seu trabalho para a criação de metodologias, tecnologias, dispositivos e recursos a serem utilizados no trabalho terapêutico-ocupacional, com o objetivo de compreender os diferentes modos de vida e contribuir com os processos de emancipação e autonomia daquela população (BARROS, LOPES, GALHEIGO, 2007). Portanto, a terapia ocupacional social tem como uma matriz a perspectiva materialista-histórica, pois considera como centralidade da sua ação o contexto social, cultural e político do indivíduo ou dos seus grupos de atuação.

O materialismo histórico, proposto por Marx, considera o ser humano como construído socialmente, frente a sua necessidade de produzir

materialmente a vida, condição essencialmente realizada pelo trabalho (MARX, 2011). Nessa conceituação, a terapia ocupacional é definida, sob esta vertente, como prática que:

se utiliza prioritariamente do trabalho socialmente contratado para possibilitar as pessoas se transformarem em cidadãos. E através da pesquisa, engajamento e crítica dos trabalhos concretos da sociedade que as pessoas podem desvendar as determinações sociais existentes. Com isso, os indivíduos conscientizam-se da opressão a que estão submetidos enquanto classe social e testam meios de resistência e transformação da situação (PINTO, 1990, p.75).

Dessa forma Pinto (1990) elabora, sob a perspectiva conceitual, uma reflexão acerca da função técnica e política no processo terapêutico- ocupacional, que, nas atribuições da corrente materialista-histórica, rompe com outras orientações no que diz respeito à individualidade da ação técnica. Esse apontamento, portanto, questiona a atuação com os sujeitos como se fosse descontextualizado da sociedade, sendo necessária uma postura crítica da organização social vigente que “provoca, agudiza e cronifica o problema como individual” (p.77).

A prática então é conceituada como parte da organização social, “Ao trabalhar materialista-historicamente o profissional opta pelo papel transformador, o que significa atuar em diferentes frentes, além do seu campo específico de atuação e local de trabalho, junto com outras forças da comunidade” (PINTO, 1990, p.77). O caráter transformador e criativo supera o caráter abstrato e alienante da ação terapêutica-ocupacional, que promulga os modelos reducionistas (SOARES, 1991). O ser humano é visto por sua capacidade de poder inventar os seus modos de vida, embora sempre influenciado pelos fatores macrossociais, pois tem em sua base um campo político, que respalda sua capacidade de criar, mudar e agir (GUIHARD, 2001). Francisco (1988), ao refletir sobre as práticas em terapia ocupacional, aborda a perspectiva materialista histórica como contributiva para o terapeuta ocupacional atuar como agente de transformação social por meio do “fazer”, que busca conscientizar sobre a opressão de uma sociedade de classes e que deve buscar “formas revolucionárias” (p.66) para a solução das problemáticas existentes. Ao romper com a postura neutra frente ao sujeito e sua

problemática, a linha materialista-histórica discute a produção de conhecimento e de ação com a busca de mediações para melhores condições para o desenvolvimento dos modos de vida de todas as pessoas na sociedade (MEDEIROS, 1989; PINTO, 1990). Para a terapia ocupacional, mais que a aplicação de recursos terapêuticos significa a atuação pela apreensão consciente sobre a sociedade de classe e suas desigualdades inerentes (PINTO, 1990).

Desde da década de 1980 até a atualidade, essa corrente passou a fundamentar práticas em diferentes campos, políticas e populações assistidas pela terapia ocupacional, sobretudo naqueles em que a atuação do terapeuta ocupacional estava para além da aplicabilidade técnica, mas também na sua articulação junto aos movimentos sociais (OLIVER et al., 2003; RIBEIRO, 2001; RIBEIRO; MACHADO, 2008; LOPES et al., 2014). Dentre estes, torna-se relevante citar a reforma psiquiátrica, o movimento de defesa por direitos para as pessoas com deficiência, direitos específicos para as crianças e adolescentes e a luta e defesa por moradia (LOPES, 2004).

As ações propostas por meio desta vertente também consolidaram áreas importantes da prática do terapeuta ocupacional, como a saúde mental, a terapia ocupacional social e a saúde pública via Sistema Único de Saúde (SUS) (SANTOS, 2016). Porém a expansão da profissão para diferentes campos e contextos, somado ao desenvolvimento e às especificidades de cada campo, fizeram com que a articulação entre técnica e política não respaldasse elementos norteadores para a efetivação da prática profissional nos diferentes espaços. Um fator que pode explicar essa barreira ideológica, como afirma Guihard (2001), está ligado às organizações institucionais que, com ressalvas, muitas atuam por valores normativos, concretos e objetivos, impostos pela economia financeira que rege tais instituições.

Resgatar a discussão acerca da corrente materialista histórica da profissão, com o risco de ser classificada como “antiga” ou “utópica”, visa, contudo, promover a reflexão do terapeuta ocupacional em seu papel de articulador técnico-político e ético realizado por meio de sua ação profissional.

2.4. A terapia ocupacional na contemporaneidade: reflexões sobre o