• Nenhum resultado encontrado

A terapia ocupacional na contemporaneidade: reflexões sobre o agente técnico, ético e político

2. Terapia ocupacional: da epistemologia aos modos de vida juvenis

2.4. A terapia ocupacional na contemporaneidade: reflexões sobre o agente técnico, ético e político

Com o breve panorama histórico apresentado, percebemos que a condução da profissão no Brasil possui um forte alinhamento com as instituições públicas estatais, como frente de espaço e atuação. Pelo Estado capitalista, as políticas sociais, ainda que haja um domínio da burguesia sobre elas, são a forma que grupos populacionais desfavorecidos acessam aos bens sociais (HOFLING, 2001), sendo nesta execução que o terapeuta ocupacional está inserido.

Cabe ao terapeuta ocupacional atuar na busca de mediar processos que favoreçam a inserção/reinserção social dos sujeitos e grupos com quem atua, tendo como meio de trabalho as políticas públicas, consideradas como lócus de execução do trabalho técnico (MALFITANO, 2016). A inserção social, portanto, é compreendida como o objetivo do trabalho profissional, em uma perspectiva que avança à concepção de “adaptação ao social”, na medida em que vislumbra a inserção para participação na vida social, respeitando as escolhas individuais, em contraposição a ações que busquem a modelagem de sujeitos adaptáveis (GALHEIGO, 1997).

No âmbito internacional, outras perspectivas também têm se desenvolvido, buscando promover a retomada do fator predominantemente político do terapeuta ocupacional, com a denominação de uma perspectiva

crítica na terapia ocupacional. Trata-se de recolocar o contexto social como

espaço relevante de atuação, rompendo com metodologias que ainda abarcam concepções fragmentadas em que o contexto social se torna tangenciável para as investigações e intervenções (CÓRDOVA, 2012; GALHEIGO, 2012; ALGADO, 2015; MORÁN; ULLOA, 2016; JARA; GUAJARDO; SCHLIEBENER, 2016).

Consideramos a presença de uma interconexão entre os conceitos trazidos pela vertente “crítica” e o debate colocado acerca da corrente materialista histórica, desenvolvida por autoras brasileiras nos anos 1980 e 1990, pelos pressupostos que trazem acerca da leitura do trabalho do terapeuta ocupacional. O que a perspectiva crítica atualiza neste campo de

reflexões são os questionamentos frente à busca por uma terminologia unificada do trabalho do terapeuta ocupacional, sobre a “ocupação”; o debate recente acerca dos direitos humanos e suas relações implícitas com a terapia ocupacional, mas, acima disso, a possibilidade de projetar estratégias através das conceituações originárias do desenvolvimento da profissão no contexto social latino-americano.

Essas discussões levam a alguns questionamentos como: quanto a perspectiva crítica propõe uma atualização das correntes metodológicas? Essa perspectiva é uma tentativa de possuir um aporte teórico-metodológico que consiga abranger a diversidade de ações técnico-profissionais que a terapia ocupacional possui na contemporaneidade? Como projetar uma proposição crítica para áreas com abordagens teórico-práticas altamente tecnificadas e especializadas? São questionamentos que não buscam respostas diretivas, mas sim reflexões que possam auxiliar à produção de conhecimento, no momento em que são contextualizadas por meio de um histórico que se aporta em proposições teóricas já discutidas pela terapia ocupacional.

Situando-nos em uma vertente de consonância com os debates atuais acerca da demarcada necessidade de avanço dos questionamentos e desenvolvimento de conhecimento e metodologias de atuação em terapia ocupacional, considera-se fundamental alcançar o contexto das relações sociais amplas onde é configurada a sociedade capitalista, mais especificamente no contexto em que o Estado conduz a questão social, no alvo de sua intervenção política (BEZZERA; TRINDADE, 2013). Dessa forma, a terapia ocupacional necessita romper e superar o estereótipo da profissão como de baixo status profissional, aumentando a representatividade nos diferentes campos de atuação, garantindo um maior engajamento político, ofertando condições materiais para que a prática profissional desenvolva o papel político pela ação profissional, “capazes de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano” (CAVALCANTE; TAVARES; BEZERRA, 2008, p.32).

Nesta direção, considera-se que a compreensão das contribuições da corrente materialista histórica sobre a ação técnica fornece horizontes para

uma concreta ação que abarque a condição social dos sujeitos, individuais e coletivos, visando sua inserção social e participação nesta injusta sociedade, considerando as problemáticas de um contexto globalizado e não reducionista.

Sob o ponto de vista contemporâneo, a discussão proposta pela corrente materialista-histórica, correlaciona-se com os marcadores sociais que determinam, por exemplo, a relevância de uma sociedade de classes, que impõem padrões políticos e culturais à vida de todos. Ou seja, a compreensão sócio-histórica (GRAMSCI, 1966) dimensiona os fenômenos sociais dentro dos aspectos da historicidade e da sociedade em geral, o que inclui fatores culturais e políticos. Com isso, fica exposta a necessidade de agregar como componentes para este debate os estudos culturais (HALL, 2014) e os marcadores sociais da diferença (ZAMBONI, 2014), os quais alargam o debate sobre etnia, gênero, manifestações culturais, por exemplo, e tantos outros aspectos que auxiliam na reflexão da ação terapêutico-ocupacional.

Fuchs (2008) contribui com essa perspectiva ao apontar que a lógica de acumulação do capital, originária da economia capitalista, colonizou o sistema político e cultural, demonstrando que o conceito de classe não pode somente ser compreendido por um fenômeno econômico, pois isso pode levar a uma interpretação reducionista dos fenômenos políticos e culturais em relação à economia.

A discussão realizada por terapeutas ocupacionais nos anos 1980 e 1990 acerca de um embasamento teórico e metodológico para as ações práticas da profissão foi fundamental para abrir novos campos de trabalho e questionar o papel técnico do terapeuta ocupacional frente aos contextos institucionais que se encontravam inseridos. Esse panorama apresenta que a discussão sobre os modos de vida na terapia ocupacional não é atual e possui um percurso dentro das correntes teórico-metodológicas debatidas por terapeutas ocupacionais brasileiras.

Outras reflexões sobre o papel social da profissão podem ser dimensionadas pelo debate contemporâneo acerca dos marcadores sociais da diferença, que podem complementar o viés do materialismo-histórico, que tem sua ênfase na sociedade de classes. Também como questionamentos, sem um aprofundamento em suas questões teóricas, mas o debate acerca dos

marcadores sociais da diferença, considera a classe social como um marcador relevante, porém identifica outras categorias sociais, tais como gênero, sexualidade, etnia, geração, entre outros marcadores (ZAMBONI, 2014). Os marcadores sociais da diferença, como explicita Silva (2014), são resultados da produção simbólica de identidades culturalmente construídas e suas relações de poder implicadas, estruturando a sociedade de classes pela exclusão ou não da diferença.

Dessa forma, é possível que práticas contemporâneas da terapia ocupacional que abordam outras categorias sociais, tenham como fundamentação perspectivas que se alinhem ao materialismo-histórico? Se utilizam desse aporte teórico como se realizam esse debate com teorias que tratam especificamente de categorias sociais? Essas questões podem apontar caminhos para futuras reflexões e pesquisas acerca da relação da prática contemporânea da terapia ocupacional com as correntes metodológicas propostas no contexto profissional.

Entre os diálogos com diferentes perspectivas teóricas, considera-se que a compreensão das contribuições da corrente materialista histórica sobre a ação técnica fornece horizontes para uma concreta ação técnica que abarque a condição social dos sujeitos, individuais e coletivos. Por esta perspectiva é possível questionar o quanto da ação da terapia ocupacional na atualidade assinala o objetivo de busca pela inserção social, participação dos sujeitos frente às injustiças e desigualdades sociais estruturais, considerando as problemáticas sob uma perspectiva de contexto globalizado e não reducionista.

Reafirmamos, portanto, que a contextualização do materialismo histórico demonstra que não existe um ineditismo nesta concepção, mas sim um arcabouço teórico consolidado, apresentado como percurso da profissão perante essa corrente metodológica, que culmina no funcionamento da terapia ocupacional frente à contemporaneidade.

Fica evidenciado que essa vertente continua atual e pertinente para a projeção social da profissão, pois, quando abordamos o indivíduo em seu contexto social, podemos intervir efetivamente sobre os modos de vida dos sujeitos e grupos assistidos pela terapia ocupacional. Logo, o materialismo histórico pode ser utilizado como referencial base para analisarmos os modos

de vida e as ações em terapia ocupacional, em um contexto mais geral, e na terapia ocupacional social, mais especificamente.

Ao enfocar num grupo populacional específico, como as juventudes, a projeção da intervenção na terapia ocupacional social deve compreender os modos de vida na contemporaneidade, permitindo a análise dos recursos tecnológicos sob o cotidiano de seus indivíduos. Fuchs (2008) afirma, pelo referencial materialista-histórico, que as tecnologias digitais devem ser compreendidas dentro da perspectiva humana e social, identificando os hábitos e os modos de vida da sociedade como fatores determinantes para o seu entendimento usual.

Sob este aporte teórico, a terapia ocupacional social traz uma gama de experiências já discutidas em pesquisas, e em ações de intervenção, focadas na juventude urbana, em especial para a juventude pobre, através de trabalhos realizados no âmbito das trajetórias escolares (SILVA, 2011; LOPES et al., 2011; BORBA, 2012; PEREIRA; LOPES, 2016), das políticas públicas (SILVA; LOPES, 2009; BARREIRO; MALFITANO, 2017), das medidas socioeducativas (MORAIS; MALFITANO, 2016; BORBA; LOPES; MALFITANO, 2015, TAKEITI, 2014), das questões de gênero (CAPPELLARO, 2013; MONZELI; FERREIRA; LOPES, 2015), das drogas (PEREIRA, 2012; BARDI, 2013), das comunidades tradicionais (MACEDO, 2010), entre outras temáticas que compõem um cenário capaz de projetar novas perspectivas com relação à juventude contemporânea, a qual tem se relacionado com o uso das mídias digitais.

A terapia ocupacional social traz um olhar específico para a juventude, pois propicia visualizar as potencialidades do sujeito através de suas atividades cotidianas, propondo recursos e estratégicas dentro das políticas públicas, dos espaços comunitários, das situações de desfiliação e vulnerabilidade social, na compreensão das rupturas pessoais e sociais no cotidiano (LOPES et al., 2014).

A ênfase deste trabalho junto ao debate já estabelecido sobre juventude pela terapia ocupacional social, pretende por luz a um aspecto ainda pouco discutido dentro do referencial teórico, que é a sociabilidade frente às tecnologias digitais, cada vez mais presentes no contexto da juventude urbana. Para isso, os conceitos trazidos sobre os modos de vida são um caminho para

a análise, pois respaldam o debate na terapia ocupacional social e sua trajetória de construção na corrente materialista histórica.

Portanto, pela trajetória estabelecida dentro da terapia ocupacional sob uma a perspectiva teórica do materialismo-histórico, e sua projeção para o campo de conhecimento da terapia ocupacional social, torna-se imperativo para o terapeuta ocupacional atuar nos princípios de um intelectual orgânico, conforme definido por Gramsci, utilizando seu saber técnico-político para uma leitura da situação da sociedade, atuando como agente de transformação sobre o pensamento hegemônico. Especificamente para a temática que concerne esta pesquisa, trata-se do questionamento sobre a postura técnico- profissional frente às juventudes, às tecnologias digitais e seus modos de vida envolvidos.