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Capítulo 3: Considerações acerca da origem e da natureza dos primeiros

3.5. A natureza do dever como problema central

3.5.5. Apreensão intelectual e reconhecimento razoável: uma distinção

A análise da apreensão dos princípios básicos da lei natural pode levantar a seguinte questão: a pessoa precisa ser razoável (virtuosa) para apreender um

primeiro princípio da lei natural? Parece que não; afinal, “até o homem perverso se vale dos princípios da lei natural em seus raciocínios práticos” (FINNIS, 1998, p. 86). O que ocorre, na verdade, é que não são necessárias pré-condições (dados) apenas para a apreensão dos princípios da lei natural; também o reconhecimento dos mesmos depende de certas experiências “relevantes” com relação ao bem que o princípio em questão dirige. A compreensão estável dessas experiências diz respeito à “maturidade prática”. Finnis usa a expressão aristotélica “idade da razão” para

significar esse quadro de experiências (FINNIS, 2007, p. 41)171.

Assim, para compreender a necessidade de ser coerente com os princípios da lei natural, a pessoa precisa estar na “idade da razão”. Por exemplo: para compreender a necessidade de ter hábitos saudáveis, a pessoa precisa ter um rol de experiências sobre a fragilidade da vida humana e sobre o benefício da vitalidade e da saúde. Agora, aqui a linha entre apreensão intelectual e reconhecimento razoável torna a ficar tênue: pois o insight sobre o princípio da lei natural que diz que a vida humana é um bem a ser buscado e seu oposto evitado, é um insight que necessita dos mesmos dados sobre a doença, a saúde e os ricos de vida (conhecimentos de causa e efeito necessários) que o reconhecimento da razoabilidade das ações que preservam a vida demanda.

Entrementes, o referido problema precisa também ser compreendido à luz da natureza “incipientemente” moral dos primeiros princípios da lei natural. Pois, o “deve” apreendido, por exemplo, no princípio “a vida humana deve ser realizada e buscada, e seu oposto deve ser evitado”, é um “deve” cujo sentido moral não é

pleno ainda – trata-se apenas da diretividade ao bem que foi descoberto pela

inteligência e que agora se mostra atraente a ela. Como diz Finnis:

Este deve é inteligível em um sentido que não é moral. Mesmo as pessoas indiferentes ou hostis a todas as alegações morais podem usar e, se inteligentes, reconhecem e usam (ainda que defeituosamente) pelo menos alguns dos primeiros princípios da razão prática. O sentido moral do "deve", entendido de forma crítica, e não apenas convencionalmente, é alcançado quando o primeiro princípio prático absoluto, em sua relação com todos os outros princípios primeiros, é seguido com uma razoabilidade que não é restrita e nem ultrajada por nenhum fator sub-racional – como uma distração emocional. Nesse sentido, o "deve" dos primeiros princípios é incipiente ou "virtualmente", mas ainda não realmente moral em sua diretividade ou normatividade. Apenas na medida em que cada um deles é um primeiro

171

No entanto, tal uso parece ser relativizado, não focando necessariamente em uma idade determinada, mas na necessidade de haver um conjunto de conhecimentos prévios para compreender os termos das proposições da lei natural.

princípio, o "deve" que cada um afirma – mesmo o deve em 'é-para-ser evitado" – é nada mais nada menos do que o conteúdo inteligível, proposicional da atratividade àquele bem humano básico ao qual o princípio em questão dirige. (FINNIS, 1998, p. 86-7)172

Portanto, o sentido moral “incipiente” da busca pelos bens ocorre quando a

pessoa simplesmente os busca sem nenhuma outra motivação sub-racional, isto é, apenas seguindo a desejabilidade intelectual que é intrínseca a cada bem. Nesse sentido, parece que poderíamos dizer que a pessoa que reconhece, por exemplo, o bem “vida humana”, possui uma razoabilidade incipiente no exato momento em que o apreende intelectualmente por meio de um ato de insight. Essa razoabilidade incipiente só se tornará uma razoabilidade plena na medida em que a pessoa instanciar essa busca em compromissos e propósitos concretos e razoáveis. Se for assim, parece possível que ela reconheça de forma incipientemente razoável o bem “vida humana” no exato momento em que o apreendeu intelectualmente, mas que sucumba às tentações irrazoáveis de seus desejos sub-racionais ao longo do tempo (por exemplo, tomando Coca-Cola todos os dias).

Ademais, vimos na citação acima que as pessoas imorais (irrazoáveis) podem usar e geralmente usam os princípios da lei natural. Essa afirmação já serve como uma evidência para nossa tese de que talvez haja uma distinção entre apreender intelectualmente um bem da lei natural e estar consciente da necessidade de ser coerente (razoável) com o mesmo. De qualquer forma, trata-se apenas de uma distinção analítica. Na vida concreta das pessoas é muito difícil dizer que uma pessoa apreendeu um primeiro princípio da lei natural, mas não foi madura, razoável

o suficiente para reconhecê-lo como um aspecto de seu bem estar – um aspecto

que deve ser respeito e promovido.

172 No original: “This ought is intelligible in a sense which is not moral. Even people quite indifferent or

hostile to all moral claims can and, if they are intelligent, do recognize and use (albeit defectively) some at least of the first principles of practical reason. The moral sense of 'ought', understood critically, not merely conventionally, is reached-as we shall see (1v. s )-when the absolutely first practical principle is followed through, in its relationship to all the other first principles, with a reasonableness which is unrestricted and undeflected by any subrational factor such as distracting emotion. In that sense, the 'ought' of the first principles is incipiently or 'virtually', but not yet actually, moral in its directiveness or normativity. Just in so far as they are each a first principle, the 'ought' that each affirms-even the ought of 'is-to-be-avoided' - is nothing more nor less than the intelligible, propositional content of the attractiveness of that basic human good towards which the principle in question directs.”