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Capítulo 3: Considerações acerca da origem e da natureza dos primeiros

3.8. Mais questões sobre a concepção de bem jusnaturalista

3.8.2. Considerações sobre a inteligibilidade da ação

Segundo a perspectiva fundacional da concepção de bem finnisiana, a ação humana não é um mero mover-se de um ponto para outro; não é exatamente a mesma coisa que o transcurso de um movimento físico que apenas passa por momentos ou tempos: T1... T2... T3... Enquanto um ser natural, é claro que o homem move-se de acordo com sua natureza biológica, e, portanto, de acordo com certo transcurso físico. Se sentirmos sede, e tivermos a possibilidade de nos servir de um copo de água potável, a princípio não temos nenhuma razão para não nos movermos até tal copo de água, e matar nossa sede. Todavia, na concepção de razão prática de Finnis, o mover-se do homem, sua ação, não diz respeito apenas ao movimento que surge de seus instintos e impulsos, mas também – e, sobretudo – ao agir com sentido. Isso significa dizer que a ação humana não é meramente um transcurso de movimento instintivo cego, ou completamente incognoscível, ou uma loucura; mas que, antes, a ação humana é um mover-se inteligente, algo que possui sentido, e a chave para o entendimento disso está no caráter fundacional razão prática: o ponto forte da tese de Finnis é, com efeito, que a razão prática, através de seus primeiros princípios fundacionais, evidencia uma série de horizontes inteligíveis de ação, finalidades, transcursos inteligíveis que dão sentido à ação ao mostrar que ela se dirige a algo inteligível (FINNIS, 2011a, p. 2). Esse algo inteligível está precisamente nos bens humanos básicos que os primeiros princípios da lei natural prescrevem como coisas boas a serem buscadas e realizadas (e seu oposto

evitado). Mas encarar a ação humana sob tal ponto de vista não seria o mesmo que destituí-la de sua espontaneidade?

É evidente que Finnis não desconsidera os impulsos ou paixões que afetam o homem. Inclusive, ele reconhece que os sentimentos desempenham um papel fundamental na realização humana através dos bens humanos básicos, pois: “há tipicamente um aspecto emocional da participação em um ou outro desses bens, e essa emoção ou sentimento é um aspecto de sua realidade enquanto bem humano” (FINNIS, 2012, p. 48). O que está sendo afirmado aqui é que, antes de tudo, a ação humana só possui sentido em razão de certos pontos inteligíveis, e não por causa de impulsos, paixões ou sentimentos. Ou seja, estamos falando da esfera fundacional da ação humana, sem a qual não entenderíamos o motivo de ter sentimentos e emoções. Pode parecer que essa alegação de inteligibilidade é algum retrocesso filosófico, e que faz muito mais sentido pensar no aspecto fundacional da razão prática da perspectiva de impulsos, sentimentos e paixões, tal como Hume queria. Mas será que é mesmo assim?

A inteligibilidade que o bem em nível primário confere à ação talvez fique mais clara quando imaginamos uma ação que carece dela. Ora, uma ação sem pontos inteligíveis orientadores e norteadores sequer pode ser concebida pela inteligência, pois esta está sempre visando cursos de ação cujo fundamento depende de alguma inteligibilidade. No entanto, podemos refletir sobre algo como: se vemos uma pessoa caminhando em uma determinada direção, e perguntamos a ela onde ela está indo, o que devemos esperar? Ora, seres humanos inteligentes, quando questionados, costumam dar respostas que elucidam (ao menos de alguma forma – pois a pessoa pode ser sarcástica) o que querem fazer ou estão fazendo. Se a pessoa do nosso exemplo fictício respondesse: “A, b, c”, o que deveríamos pensar? “A, b, c”, a princípio, não responde a pergunta sobre onde ela está indo. Queremos saber a sua razão para agir daquele modo. Ela, contudo, nos forneceu uma resposta cujos elementos inteligíveis não estão nada claros – e tal é a obscuridade dessa resposta que certamente estamos justificados em supor, à primeira vista, que ela possui alguma demência.

Como nossa inteligência é guiada por inteligibilidades, é natural que venhamos a nos esforçar para tentar chegar a alguma conclusão sobre o que a pessoa queria dizer com “A, b, c”. Isso porque, sabemos que os seres humanos possuem propósitos práticos. Ora, esta pressuposição da qual nos valemos em

nossa orientação prática no mundo já dá considerável testemunho em prol da inteligibilidade do bem. Pois, se os seres humanos possuem propósitos práticos, e a inteligência humana é guiada por inteligibilidades, por que os propósitos práticos não estariam também fundados em inteligibilidades?

Suponha que uma pessoa, que está assistindo a uma palestra sobre direito natural, de repente se levanta de sua cadeira, vai até um canto do auditório, e começa a cacarejar como uma galinha, fazendo ainda gestos estranhos. Frente a tal cena, é óbvio que os demais presentes no auditório perguntarão: Por que ela está fazendo isso? Qual o sentido desse comportamento? Se a ação humana fosse um mover-se sem sentido e um mero transcurso físico, é evidente que essas perguntas não surgiriam. Mas elas surgem; e antes mesmo de todas as convenções sociais a respeito do bom comportamento e da educação (cuja existência, aliás, é totalmente razoável), a explicação para isso está na razão prática, na esfera “fundacional” da ação humana. Agimos com sentido porque nossa inteligência prática nos dirige através de uma série de cursos inteligíveis de ação, cursos que se caracterizam por uma finalidade, isto é, um propósito que tem sentido por alguma razão. Ora, a tese jusnaturalista de Finnis defende que o que dá sentido à ação, suas razões básicas, são os bens humanos básicos aos quais a razão prática dirige; pois eles são os fundamentos inteligíveis sobre os quais toda a ação está fundada e sem os quais nenhum curso de ação com sentido seria possível. Portanto, o que dá sentido à ação é precisamente o seu ponto inteligível, a razão básica pela qual ela se dirige – algo bom em sentido fundacional. Assim, tomar um copo de água é uma ação que faz sentido não só porque mata a sede na medida em que confere uma sensação de saciedade, mas porque a vida e a saúde são bens dignos de serem buscados e realizados; assistir uma palestra sobre direito natural sem ser interrompido por um louco, também faz sentido não só porque é agradável ouvir a voz de um ser humano sem ser interrompido, mas, fundamentalmente, porque o conhecimento é um bem digo de ser buscado e realizado (e mesmo se direito natural fosse infundado, seria bom saber isso para não cair na ignorância de defender algo falso e enganoso); do mesmo modo, até mesmo cacarejar como uma galinha em um auditório onde pessoas sérias estão investindo o seu tempo para comunicar ideias que lhe são valiosas, fazendo um papel de louco ou insensato, poderia ter um ponto interno de inteligibilidade, ainda que a ação seja deveras extravagante e talvez não razoável,

obscurecido pela atitude louca –, como ridicularizar o direito natural por ele ser falso e levar as pessoas à ignorância, ou pretender expressar alguma espécie de senso

estético inovador – uma vez que a apreciação estética e a beleza também são

coisas valiosas de se buscar e realizar. Deixando a razoabilidade da ação extravagante e possivelmente desrespeitosa de lado, a questão é que só é possível perscrutar algum sentido na ação de alguém, mesmo o aparentemente louco que de repente começa agir de forma bizarra, porque nos guiamos por horizontes inteligíveis de ação, e porque esses horizontes se instanciam em objetos que são bons e dignos de serem buscados e realizados para qualquer um. Ou seja, só é possível perscrutar algum sentido na ação de alguém, seja quem for e em qualquer situação, porque procuramos pelas suas razões básicas, seus propósitos, os quais, segundo Finnis, partem de bens humanos básicos ou fins genéricos que dirigem a

ação humana185.

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É necessário reconhecer que todos os exemplos empreendidos nesta seção foram diretamente inspirados nos exemplos dos quais Finnis lança mão (2012, p. 33-7) para elucidar como uma explicação emocional da ação é insuficiente e depende de uma concepção de inteligibilidade.