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Capítulo 3: Considerações acerca da origem e da natureza dos primeiros

3.7. Aproximações sobre a concepção de bem proposta por John Finnis

3.7.2. Da diretividade prática como forma básica da lei natural

Todo princípio e todo conhecimento são proposicionais (FINNIS, 1998, p. 124, 130, n. f). Portanto, os primeiros princípios da lei natural são conhecidos pela

inteligência como proposições177. Esses princípios são apreendidos na seguinte

forma proposicional diretiva: “O bem é para ser feito e buscado, e o mal é para ser evitado” (“Bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum”). Finnis é enfático quanto ao caráter normativo (ou melhor, diretivo) que está em jogo nessa formulação:

Os princípios práticos não são nem gramaticalmente nem substantivamente indicativos (afirmando o que é ou será o caso). Nem são imperativas (dando comandos ou ordens). Eles são diretivos; a forma latina no gerúndio: ‘faciendum et prosequendum et... vitandum’ capta exatamente essa diretividade ao que ‘é para ser feito... buscado... evitado’ no sentido de ‘deve ser’, e não de ‘será’. (FINNIS, 1998, p. 86)178

Na nota 123 que se encontra na mesma página da citação acima, Finnis acrescenta ainda que, embora “faciendum” venha antes de “prosequendum” na formulação que Tomás de Aquino propôs, é preciso notar que é esta última palavra que dá o sentido essencial do princípio. Aliás, negligenciar o peso de “prosequendum” levou muitos intérpretes a pensarem que o primeiro princípio da lei natural poderia ser resumido em comandos como: “Faça o bem e evite o mal!” (Ibidem, idem, n. 143). Adiante, Finnis reforça sua alegação notando que a expressão “Bonum... faciendum” é encontrada raras vezes na obra de Aquino, geralmente sobre questões morais ou legais (e, portanto, não sobre questões fundacionais, como é o caso da lei natural) (Ibidem, p. 99, n. s.).

Em ST, I-II, q. 94, a.2, vemos Tomás de Aquino postulando princípio “O bem é para ser realizado e buscado, e o mal é para ser evitado” como o primeiro princípio da lei natural. Logo em seguida, ele afirma que a razão compreende os objetos das

177

Em 1998, p. 130 (nota f), Finnis critica a leitura de Maritan segundo a qual o conhecimento dos primeiros é “conatural” ou “por afinidade” ou “através da inclinação”. Antes, para Tomás de Aquino, o conhecimento dos primeiros princípios é conceitual e proposicional. Aliás, ainda segundo Aquino, não há conhecimento não-conceitual.

178 No original: “Neither grammatically nor substantively are practical principles indicative (stating what

is or will be the case) . Nor are they imperative (giving commands or orders). They are directive; the Latin gerundive form 'faciendum et prosequendum et… vitandum' exactly captures this directiveness to what 'is-to-be done… pursued… avoided' in the sense, not of 'will be' but of 'ought to be'.”

inclinações naturais do homem como bens a serem realizados e buscados na ação. Aquino divide essas inclinações em três classes, a saber: (1) as que compartilhamos com todos os entes; (2) as que compartilhamos com os animais; e (3) as que não compartilhamos com nenhum outro ente. Finnis geralmente prefere deixar de lado essa explicação metafísica das inclinações naturais, optando por explicá-las através de seu argumento do insight. Como já vimos acima, segundo esse argumento, nós apreendemos as formas básicas de bem através de atos de insights não-inferenciais sobre as inclinações e possibilidades. Esses atos, nos quais compreendemos as possibilidades como possibilidades benéficas, preenchem a diretiva “é para ser realizado e buscado” da lei natural com um conteúdo substantivo. Assim, forma diretiva e conteúdo substantivos se encaixam em primeiros princípios práticos tais quais, por exemplo: “o conhecimento é para ser realizado e buscado, e seu oposto é para ser evitado”; “a amizade é para ser realizada e buscada, e seu oposto evitado”; etc. Agora, há alguma diferença entre “O bem é para ser realizado e buscado, e o mal é para ser evitado” e os demais primeiros princípios práticos que se fundam nele? Tudo indica que não. Ao explicar esse ponto, Finnis diz que:

Aquino forneceu sua concepção mais completa de bens humanos básicos no contexto da consideração sobre os “primeiros princípios das ações humanas”. A questão que ele diretamente colocou foi se há apenas um ou muitos desses princípios. Sua resposta foi que há muitos, embora um deles seja o “fundamento” de todos os outros {supra hoc fundantur omnia alia}, pois – tal como o princípio de não-contradição dá ao pensamento racional sua forma, excluindo toda afirmação e negação simultânea (da mesma coisa e no mesmo sentido) – esse ‘primeiro princípio da razão prática’ não qualificado dá ao pensamento prático sua forma: ‘o bem é para ser feito e perseguido, e o mal é para ser evitado” [...]. Deste modo, os bens {bona} que ele procede em identificar serão todos referidos em princípios de forma: X (digamos, a vida humana) é um bem a ser perseguido e preservado {vita conserva[nda]}, e o que prejudica X é um mal a ser evitado; [...]. (FINNIS, 1998, p. 86)179

179

No original: “Aquinas gave his fullest account of basic human goods in the context of considering the 'first principles of human actions'. The question he directly posed was whether there is only one such first principle or many. His answer was that there are many, though one of them is the 'foundation' of all the others {supra hoc fundantur omnia alia} because-just as the principle of non- contradiction gives rational thought its form, excluding all simultaneous affirmation and negation (of the same thing in the same respect)-this unqualifiedly 'first principle of practical reason' gives practical thought its form: 'good is to be done and pursued, and bad is to be avoided’ […]. So the goods {bona} which he proceeds to identify will all be referred to in principles of the form: X (say, human life) is a good, to be pursued and preserved {vita conserva[nda]} , and what damages X is a bad, to be avoided; actions that are good as means to realizing such basic human goods are to be done; actions bad as harming a basic good are to be avoided.”

Assim, podemos entender que, quando Aquino postula esse primeiro princípio absoluto como sendo o fundamento último da razão prática, ele está simplesmente destacando a forma proposicional da lei natural. O paralelo estabelecido entre tal princípio prático absoluto e o princípio de não-contradição, o primeiro dando sua forma ao pensamento prático e o segundo dando sua forma ao pensamento teórico, mostra claramente que a ênfase inicial no princípio prático absoluto é meramente formal, “técnica”, por assim dizer. Isso fica claro quando, logo após postular que a lei natural tem a forma diretiva “O bem deve ser realizado e buscado, e o mal evitado”, Aquino prossegue afirmando que essa diretividade tem como conteúdo os bens que

a razão prática apreende a partir das inclinações naturais humanas180.

O “primeiro princípio absoluto da lei natural” não é, portanto, nenhuma entidade superior e mais fundamental. Ao falar nesses termos, Aquino estava apenas procedendo como um bom filósofo analítico. De fato, ele não via nossa razão prática como um mero um substrato proposicional, como se estivesse desligada do mundo concreto. Antes, sua tese era que o pensamento prático se constitui nas ações que performamos nesse mundo. É mediante as experiências do mundo e das próprias inclinações, que a pessoa apreende as formas básicas de bem cuja forma diretiva diz que “o bem [que foi apreendido] é para ser feito e buscado, e o mal [oposto do bem que foi apreendido] evitado”.