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Capítulo 3: Considerações acerca da origem e da natureza dos primeiros

3.5. A natureza do dever como problema central

3.5.4. Sobre a natureza do ato de insight e a influência de Bernard Lonergan

Uma vez esclarecidos os pressupostos dos insights práticos sobre os princípios da lei natural, cabe uma palavra final sobre o próprio ato de insight. Isso porque, esse argumento intelectualista pode soar um tanto etéreo: afinal, trata-se de algo totalmente interno. Assim, tal argumento só pode ser compreendido por meio de reflexão. Aliás, em Lei Natural e Direitos Naturais, no capítulo dedicado às questões fundacionais, III. Uma Forma Básica de Bem: Conhecimento (primeiro capítulo da Segunda Parte da obra), Finnis fala diversas vezes que a compreensão dos princípios da lei natural demanda o engajamento em uma reflexão individual (2007a, p. 68-9, 71). Mas isso não significa que não possamos compreendê-los através de nossa experiência no mundo. Como diz o autor: “No entanto, tais pressupostos e princípios podem ser desengatados e identificados por meio de reflexão não apenas em nosso próprio pensamento, mas também nas palavras e feitos de outrem.” (FINNIS, 2007a, p. 71) Agora, é fato que recorrer ao testemunho dos bens básicos da lei natural que nos é conferido pela vida dos outros não é uma inferência menos problemática do que aquela engendrada no conhecimento interno

reference to specific purposes and circumstances {absolute considerans} : as when we will knowledge {scientiam} , virtue, health {sanitatem }, and suchlike.”

que podemos ter sobre a capacidade intelectual de obter insights. Nesse ponto, a justificação mais coerente com a filosofia de Finnis parece ser aquela que recorre tanto à (1) imaterialidade e peculiaridade dos processos mentais, quanto à (2) necessidade de lançar mão de argumentos dialéticos na explicação de fundamentos profundos.

(1) É preciso reconhecer que o insight não é algo que podemos ver ou tocar, mas que, assim como os significados, as cores, os critérios de validade lógica etc., constituem uma realidade que todos os seres humanos conhecem. Ter um contato direto com o processo de insight é tão impossível quanto ter um contato direto, por exemplo, com a intencionalidade humana. A neurociência pode descobrir quais áreas do cérebro são ativadas nessas atividades mentais. Contudo, ela nunca

poderá dizer o que essas atividades são em termos empíricos – afinal, nenhum

estado material pode explicar os processos inteligíveis (os quais, aliás, já estão pressupostos em toda e qualquer compreensão e avaliação de dados). Assim como não podemos “ver” nossa mente operando, por exemplo, divisões ou multiplicações, também não podemos “ver” nossa mente gerando atos de insight.

(2) Sabemos que 2 x 2 = 4; mas não sabemos “explicar”, materialmente, o

processo mental que chamamos de multiplicação. Sabemos apenas que se trata de uma capacidade humana; e compreender tal processo assim é o bastante para nós. Aliás, o mesmo segue para a capacidade de “concluir” que é pressuposta no

símbolo de igualdade em “2 x 2 = 4”. Ora, os atos de insight também são uma

capacidade tipicamente humana. Aliás, é importante notar que não existem apenas os insights fundacionais sobre primeiros princípios. Na verdade, o insight é uma atividade comum da inteligência humana. Temos um insight ordinário sempre que apreendemos algo de uma forma que não é uma mera conclusão das premissas disponíveis. Por exemplo: suponha que uma pessoa está usufruindo do final de seu horário de almoço em uma livraria; ela então se depara, nas prateleiras da filosofia, com um livro que fala sobre a questão da imortalidade alma; ao lado deste livro está um outro livro sobre o ateísmo de Ludwig Feuerbach; a pessoa, então, tem a ideia de chegar em casa e escrever um artigo em seu blog sobre a relação entre a filosofia e os temas da religião. Escrever tal artigo não é uma conclusão da experiência de se deparar com ambos os livros; antes, é uma iniciativa inteligente e espontânea que proveio de um insight.

Uma outra forma de compreender o ato de insight é recorrer ao pensador que influenciou Finnis sobre isso, a saber: o sacerdote, teólogo, filósofo e economista canadense Bernard Lonergan. A noção de insight defendida por Finnis foi certamente influenciada pela obra Insight: A Study of Human Understanding (1957), de Lonergan. Finnis geralmente critica as posições de Lonergan em ética; ainda assim, não deixou de reconhecer que: “A crítica de Bernard Lonergan ao empirismo, em Insight, tem muita coisa de valor inigualável, e me ajudou grandemente em uma fase crucial de minha educação.” (FINNIS, 2011a, p. 88).

Segundo Finnis (2012, p. 42-6), ao mesmo tempo em que Lonergan lançou as bases para uma compreensão profunda da estrutura cognitiva humana (superando tanto o empirismo rasteiro que julga serem os sentidos a única fonte de conhecimento quanto o apriorismo kantiano que não explica a relação entre intelecto e experiência), acabou caindo no engodo humiano de julgar que os bens humanos são questões de sentimentos e inclinações sensíveis. Em verdade, quase sempre que Finnis traz a figura de Lonergan para suas discussões é para ressaltar um ou outro (ou ambos) desses pontos.

Ademais, o conceito de insight em Lonergan é evidentemente mais profundo do que em Finnis, pois se trata do conceito chave para a epistemologia e metafísica propostas pelo primeiro. A obra Insight, de Bernard Lonergan, é em verdade extremamente densa e complexa. Ela estabelece uma crítica ao empirismo e ao kantismo através de uma incursão nos métodos da matemática, das ciências e do senso comum. Sua pretensão é revelar a estrutura cognitiva (os insights) por trás dos principais campos de conhecimento humano (LONERGAN, 2005, p. XI). O objetivo de Lonergan não é buscar pelas propriedades abstratas do insight, mas,

antes, “assistir o leitor em efetuar uma apropriação pessoal da estrutura dinâmica

concreta imanente e recorrente em suas próprias atividades cognitivas.”

(LONERGAN, 2005, p. XVII). Deste modo, o autor não deve ser lido como se estivesse descrevendo uma região desconhecida, misteriosa de nossa mente, pois seu objetivo é refletir os insights, que são familiares. Trata-se, contudo, de uma reflexão individual que não pode ser feita por mais ninguém a não ser pela própria pessoa que está refletindo. (LONERGAN, 2005, p. XIX)

Lonergan não nega que o conhecimento que obtemos por insight pode ser sempre revisado e superado. Mas, sua tese é que a estrutura cognitiva do sujeito que conhece é sempre a mesma, podendo ser analisada por uma série de perguntas

estratégicas (LONERGAN, 2005, p. XVIII). Assim, o objetivo mais básico da obra Insight é fazer com que o leitor tome conhecimento de sua própria estrutura cognitiva, de seu modo de compreender.

Um exemplo estratégico para a compreensão do ato de insight é o “Eureka” de Arquimedes quando ele descobre que a autenticidade da coroa do rei poderia ser verificada pesando a mesma na água. O “Eureka” simboliza o “estalo”, o “flash” que traz à mente um novo conceito. Com base nisso, Lonergan chama a atenção para cinco pontos: (i) o insight traz um descanso à tensão criada pela procura da resposta (tensão criada pelo desejo de compreender); (ii) é espontâneo; surge de repente e mesmo em momentos inesperados; (iii) depende de circunstâncias internas: nem todos que frequentavam os banhos de Siracusa descobriram o princípio da Hidrostática, o que ocorreu provavelmente porque Arquimedes tinha uma questão concreta em mente; (iv) o insight é uma ponte entre o concreto e o abstrato: o problema de Arquimedes era concreto, mas a solução que ele encontrou pode ser aplicada a uma variedade de casos semelhantes, constituindo um princípio universal; (v) depois de adquirido, o insight passa a ser parte do escopo de

conhecimentos da pessoa – torando evidente o que outrora parecia insolúvel

(LONERGAN, 2005, p. 27-31).

Não obstante as diferenças entre Lonergan e Finnis, a exposição feita acima pode ajudar na compreensão do insight como um ato intelectual de indução de primeiros princípios. Embora Finnis raramente reconheça, sua noção de insight é certamente inspirada no trabalho de Lonergan. Há pelo menos duas características fundamentais do ato de insight em Finnis que evidenciam tal inspiração, a saber: por um lado, a ideia de que o insight é um processo cognitivo espontâneo e não- inferencial, do qual só podemos nos tornar conscientes por meio de uma reflexão individual, mas que é, ao mesmo tempo, familiar para todo ser humano com uma capacidade cognitiva funcional; por outro lado, a ideia de que o ato de insight faz a ponte entre os dados sensíveis e a razão humana, entre o particular e o universal.

3.5.5. Apreensão intelectual e reconhecimento razoável: uma distinção