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Capítulo 3: Considerações acerca da origem e da natureza dos primeiros

3.8. Mais questões sobre a concepção de bem jusnaturalista

3.8.1. Bem enquanto experienciado e bem enquanto inteligível

Segundo Finnis (2012, p. 142), “Tudo na Ética depende da diferenciação entre o bem enquanto experienciado e bem enquanto inteligível.” Isso porque, na visão do autor, é justamente a compreensão do status fundacional do bem enquanto inteligível que explica a normatividade prática. A ideia é que, sem essa estrutura inteligível, o próprio sentido de “bem” é perdido. Pois o que explica qualquer tipo de bem a ser desejado, antes dos desejos sensíveis que simplesmente ocorre de a pessoa ter, são os bens inteligíveis. Passemos agora a refletir sobre esse argumento.

A filosofia moral contemporânea se mostra de acordo, pelo menos em termos gerais, com a tese de Hobbes, Locke e Hume segundo a qual a razão não possui nenhum papel na fundamentação na normatividade prática. Antes, esse papel seria dos desejos ou emoções das pessoas (FINNIS, 2012, p. 27-30). Nessa perspectiva, a razão seria apenas um instrumento para garantir satisfações, desejos, emoções etc. (Ibidem, p. 32). Esse subjetivismo (ou emotivismo) tal como aparece em Hobbes, Locke e Hume, encontra nos desejos sensíveis e nos sentimentos o fundamento da ética. Em verdade, poderíamos dizer que esses desejos e sentimentos são tratados como os desejos e sentimentos humanos, isto é, como sendo desejos ou emoções “antropológicas”. Assim, eles podem ser encarados como fatos naturais sobre a natureza humana (Ibidem, p. 33). Essa forma de conceber a natureza humana é manifestamente distinta da visão jusnaturalista [de Finnis] segundo a qual a natureza humana é descoberta através dos bens humanos básicos.

Com efeito, para Hobbes, Locke e Hume, termos como, por exemplo, bom e ruim, certo e errado, justo e injusto, etc. são apenas expressões de aprovação ou reprovação subjetiva. Para eles, não é possível falar de certo ou errado sem falar de

algo que se restringe apenas à sensação que a pessoa tem frente a uma ocorrência

do mundo – uma sensação que não é uma “coisa” como as demais coisas desse

mundo, mas que é, antes, puramente subjetiva. Portanto, não existem valores objetivos, e o papel da razão é meramente instrumental: ela apenas calcula quais meios são melhores e mais eficientes para se atingir os fins subjetivos que as pessoas almejam.

Assim, segundo a visão esboçada acima, para explicar a fundamentação da ética é preciso explicar a conexão desses desejos com a natureza humana. Ocorre que, como sublinha Finnis (2012, p. 27-9), aqueles autores simplesmente reduziram esses desejos à própria natureza humana, expondo-se embaraçosamente a um problema que o próprio Hume teria notado, qual seja: o problema da falácia naturalista. Pois como explicar os desejos da natureza humana senão a partir de uma descrição desses desejos e/ou dessa natureza?

Mackie, como um seguidor contemporâneo desse tipo de subjetivismo, tentou contornar o problema dizendo que, embora os nossos juízos morais não sejam objetivos, sendo apenas meras projeções dos nossos sentimentos, o processo de objetivação pode, contudo, ser socialmente útil (Ibidem, p. 28). No entanto, a gama de pressuposições de que Mackie se vale no exato instante em que afirma a sua tese a objetificação já comprovam que os valores não são tão subjetivos assim: afinal, ele certamente está supondo que o conhecimento é um bem a ser realizado e buscado, e que a ignorância um mal a ser evitado.

Ora, é fato que filósofos como Mackie não compreenderão a concepção de bem por trás do princípio prático que diz que “o conhecimento é um bem a ser realizado e buscado, e a ignorância um mal a ser evitado”. Pois, para eles, o termo “bem” só faz sentido por causa dos sentimentos, afetos, desejos etc. que as pessoas têm. Filósofos céticos e subjetivistas como Mackie não vislumbram diferença alguma

entre o bem enquanto experienciado e o bem enquanto inteligível – em verdade,

para eles, este último não é mais que uma quimera. Mas, como destacamos antes, Finnis afirma (Ibidem, p. 142) que: “Tudo na Ética depende da diferenciação entre o bem enquanto experienciado e bem enquanto inteligível.” O ônus do argumento repousa, evidentemente, na justificação do bem inteligível como um bem mais fundamental e estruturador.

Segundo Finnis (Ibidem, p. 35), a forma mais eficiente de compreender a concepção de bem fundamental sob a qual a pessoa está agindo (isto é, a

concepção inteligível), é através da pergunta: “O que você está fazendo?”. Na verdade, essa pergunta tem o poder de evidenciar o bem ou bens irredutíveis com base nos quais a pessoa está agindo. Como diz o autor:

Em suma, nesse tipo de caso padrão, a pergunta “O que você está fazendo?” é a pergunta “Por que você está...?”, e essa pergunta é respondida, de modo relevante, não simplesmente apontando para apontando para algum estado de meus sentimentos, emoções ou “desejos”, mas, primariamente, por meio da referência à ação que, ao ser descrita, torna-a inteligível como uma oportunidade, i.e., como tendo um motivo, i.e., como um bem (não necessariamente moral!), i. e., uma coisa boa de se fazer... agora. (FINNIS, 2012, p. 35)

Ou seja, o comportamento das pessoas pode ser compreendido através de uma concepção de bem ulterior. Não se trata de descobrir essa concepção através

da mera descrição do comportamento184. Trata-se, antes, de olhar para a ação (o

que, é claro, envolve sua descrição) e compreender o que a move, isto é, qual o motivo fundamental que a explica mais plenamente.

Com efeito, atentar para a ação pessoa, buscando sondar qual razão ou motivo explica melhor sua ação, pode no conduzir a uma concepção de bem ulterior em sua ação. Finnis afirma que as pessoas costumam agir com base em descrições. (E não apenas descrições “teóricas”, “contemplativas”, mas também práticas, “diretivas”. Isto é, descrições que envolvem propósitos práticos, concepções de que “seria bom...” obter tal e tal coisa [Ibidem, p. 34]). Como diz Finnis (2012, p. 45): “Uma vez concebidos desse modo os objetos da nossa ação, isto é, querendo-os e escolhendo-os com base em alguma descrição, entendemos que as descrições, ou constituem ou podem ser subsumidas a concepções ainda mais gerais [...]”. Esses fins genéricos são justamente as formas de bem irredutíveis da ação.

Dizer que essas formas irredutíveis de bem são formas inteligíveis não significa dizer que as emoções não têm importância. Muito pelo contrário. Como diz o autor: “Mas, em cada caso, há tipicamente um aspecto emocional da participação em um ou outro desses bens, e essa emoção ou sentimento é um aspecto da sua realidade enquanto bem humano.” (FINNIS, 2012, p. 48). É fato que essas emoções

184

Ou seja, Finnis não é um behaviorista. Aliás, ele se vale de uma distinção terminológica entre “comportamento” (como um evento na ordem da natureza) e “ação” no sentido de escolha deliberada em vista de um propósito (portanto, algo da ordem da moralidade) (FINNIS, 1998, p. 53, n. n). Enquanto descritivistas, os behavioristas estão preocupados com a ação humana apenas no sentido de “comportamento”.

podem instrumentalizar as razões para ação, transformando-as em “racionalizações” que servem para propósitos irrazoáveis (FINNIS, 1998, p. 74-5). Essas racionalizações são as típicas justificações emocionais que os seres humanos lançam mão para justificar suas motivações irrazoáveis: alguém pode alegar, por

exemplo, que, mesmo estando com a glicose bastante alta, “merece” comer um

doce depois de um longo dia de trabalho. É claro que as pessoas não são razoáveis o tempo inteiro. No entanto, a teoria serve para nos orientar e esclarecer. E, quando

mais razoáveis formos, mais floresceremos como seres humanos. Pois, “Somos

animais, mas inteligentes.” (FINNIS, 2011a, p. 212).