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Capítulo 3: Considerações acerca da origem e da natureza dos primeiros

3.4. A noção de “estado de coisas benéfico”

As considerações sobre a relação da esfera prática com a teórica fazem parte do propósito de Finnis de resgatar a ideia de conhecimento prático na filosofia política e moral contemporânea. Esse propósito perpassa a obra Lei Natural e Direitos Naturais inteira, e ganha uma atenção especial no primeiro capítulo (“A Praticalidade da Ética”) de Fundamentos de ética. Ao longo desse capítulo, além de falar sobre a importância do bem humano e da ação virtuosa (razoável) na investigação ética, Finnis faz uma série de reivindicações sobre o papel que a razão também desempenha nos assuntos práticos. Tais reivindicações envolvem as

questões acadêmicas sobre o cognitivismo ético155 e o realismo moral. O

cognitivismo ético é a posição que defende a existência de verdades morais; ao passo que o realismo moral é a posição que defende a existência de fatos morais (estados de coisas objetivos sobre valores morais). Não obstante a distinção de seus escopos, ambas essas posições constituem tentativas de compreender e justificar a objetividade ética. Elas visam, entre outras coisas, elucidar o alcance da razão prática, a fim de situá-la num patamar de objetividade e confiabilidade semelhante (ou mesmo igual) ao da razão teórica.

No pensamento de John Finnis, o fundamento ontológico dos fatos e verdades morais que a razão prática pode apreender e fundamentar talvez estejam na ideia de “estados de coisas benéficos”. Em uma de suas Reflections and Responses aos artigos do Festschrift organizado por John Keown e Robert P. George, Finnis fornece um argumento esclarecedor sobre o que a ideia de “estados

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Finnis observa (2011a, p. 204-5) que o que distingue o cognitivismo presente no jusnaturalismo das demais teorias cognitivistas é o fato do primeiro contar com seguintes pontos: (i) uma concepção abrangente de bens humanos básicos; (ii) uma concepção sobre a apreensão intelectual de princípios práticos fundacionais através de atos de insight sobre as inclinações e possibilidades humanas; (iii) o entendimento de que os bens humanos básicos são objetivamente incomensuráveis e não dão espaço para uma fundamentação consequencialista da ética; (iv) uma concepção metodológica que prevê a interdependência mútua entre descrição e avaliação, aproximando, assim, ética e ciências sociais descritivas.

de coisas benéficos” conota em seu objetivismo ético. Trata-se da resposta a Joseph Raz, especialmente na parte onde Finnis analisa os pressupostos dos quais Raz se vale para criticar a ideia de “valor básico” (bem humano básico). A questão é que Raz predica valores da própria ação, e isso é algo que Finnis não faz. Para Raz, as propriedades que constituem o bem e o mal na ação, e que, portanto, fornecem razões a favor ou contra certas ações, são propriedades das próprias ações. Entretanto, na perspectiva de Finnis, o bem inteligível (isto é, o benefício intelectual que confere uma razão à ação) é “um aspecto de um propósito atual ou possível”, e não um aspecto da ação (no sentido empírico, behaviorista).

Um propósito é um estado de coisas concreto atingível mediante a ação (por exemplo: se tornar um professor, pintar uma casa, criar um filho, etc.); e o benefício é aquele aspecto do estado de coisas que contribui para o florescimento da pessoa, dando ao propósito da ação um ponto de inteligibilidade que não é derivado de nenhum outro propósito ou benefício (GEORGE; KEOWN, 2013, p. 460-1). Podemos arrematar a questão dizendo que o benefício engendrado no propósito possui duas características distintivas, a saber: por um lado, confere razão à ação na medida em que confere inteligibilidade à mesma; por outro lado, confere razão à ação na medida em que proporciona à pessoa atingir um aspecto de sua realização enquanto tal – de modo que a realização nesse aspecto não pode ser conferida por nenhum outro benefício (seja inteligível ou sensível).

Do acima exposto, fica claro que a ideia de “estados de coisas benéficos” é sutil e demanda algumas clarificações. A estrutura da tese é a seguinte: o aspecto objetivo de um “estado de coisas benéfico” não se encontra na descrição desse

estado, mas naquilo que fundamenta seu(s) propósito(s). A ideia de “fundamento”,

aqui, remonta à perspectiva intelectualista de Finnis: trata-se do fundamento intelectual do propósito, que é o ponto que confere inteligibilidade à ação e realização ao agente que a performa. Como dissemos antes, esse fundamento intelectual é o que Finnis chama de “benefício inteligível” ou “bem inteligível”. Pois como temos visto, sua tese é que a razão apreende uma série de benefícios inteligíveis: são os chamados bens humanos básicos. Esses benefícios constituem a base de todo raciocínio prático. Assim, toda ação humana visa um bem que pode ser explicado, fundamentalmente, através de alguma daquelas formas básicas de bem humano da lei natural. Finnis conclui a explicação alegando que esses bens humanos básicos, cujo fundamento é inteligível, são aspectos do florescimento

humano, isto é, são manifestações das aspirações e inclinações gerais dos seres humanos. Essa alegação remonta ao argumento que desenvolvemos na seção 2.6 (“Superando a falácia naturalista”) do presente trabalho, qual seja: que a lei natural depende de uma concepção de natureza humana, mas que, todavia, não parte de nenhuma descrição da mesma (seus pontos de partida são proposições normativas sobre o bem humano). Assim, o correto é dizer que a lei natural implica uma

concepção de natureza humana156.

No final das contas, parece que a objetividade dos benefícios inteligíveis da lei natural depende da objetividade das capacidades humanas. (Entretanto, é preciso sempre ter em mente que o jusnaturalismo chega até essas conclusões metafísicas só após ter investigado as verdades práticas). Com efeito, é só em razão de a ação humana tender à realização das capacidades humanas, que podemos falar em “valores objetivos”. Ora, embora isso implique uma metafísica sobre a natureza humana, essa tese só pode ser confirmada se for confirmado que os primeiros princípios da lei natural realmente correspondem e conduzem à natureza e realização humanas. Assim, a concepção de objetividade advogada por Finnis só poderá ser comprovada na análise da própria ação humana. Por mais que seu fundamento seja, a rigor, “interno”, a análise da prática concreta se torna indispensável, pois apenas essa análise pode comprovar se as pessoas realmente se inclinam aos bens humanos básicos.

É claro que a análise das ações concretas não deve funcionar como uma espécie de reducionismo, como se a consistência lógica e epistemológica da teoria dos bens humanos básicos fosse dispensável. É evidente que ela não é; e uma confirmação prática não serve apenas para que possamos nos convencer da teoria individualmente, mas também para que sua formulação teórica possa ser vislumbrada, testada e criticada.

Entrementes, é importante ter em mente que o “valor” que os benefícios

inteligíveis dos “estados de coisas benéficos” conferem aos propósitos humanos, não é um valor propriamente “moral”. Os benefícios inteligíveis implicam uma moralidade incipiente, pois sua tarefa fundacional diz respeito apenas à orientação

prática (diretividade) da ação – isto é, trata-se apenas da inteligibilidade da ação, e

não de suas implicações morais (FINNIS, 2011a, p. 30). Por outras palavras, o que o

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De todo modo, a análise teórica da ação (tal como a da presente seção), lança muitas luzes à complexa relação de interdependência mútua entre descritividade e normatividade.

benefício inteligível (por exemplo, do conhecimento) confere à ação, é simplesmente o direcionamento para um dado objeto benéfico (benéfico não só para mim, mas também para toda e qualquer pessoa). Assim, a “moralidade” envolvida nesse nível mais fundamental da ação é muito vaga (“pré-moral” ou “incipientemente moral”, como costuma dizer Finnis). (Temos falado apenas em “estado de coisas benéfico”; mas isso não significa que não exista o oposto, um “estado de coisas maléfico”, o qual ocorre exatamente quando aquele primeiro estado de coisas é negado, prejudicado ou violado de alguma maneira).

Ora, a principal dificuldade com essa noção de que a objetividade dos bens humanos básicos depende das capacidades humanas, não está no reconhecimento de que os seres humanos possuem todas as capacidades pressupostas pelos bens humanos básicos (por exemplo: capacidade para conhecer, para apreciar a beleza, para ser um bom profissional, para ser um crente sincero, etc.). Antes, a dificuldade parece estar na aceitação de que essas capacidades são expressas por meio de bens inteligíveis. Ao que parece, levando em consideração a tendência majoritariamente subjetivista da ética contemporânea, teorias da objetividade tais como de Finnis sempre encontrarão forte resistência, pois tem se considerado implausível compreender a razão ou a inteligência como fonte de princípios práticos básicos universais. Seja como for, essa dificuldade não compromete em nada a tese finnisiana de que a objetividade dos valores morais se dá pelo fato destes valores poderem ser subsumidos a elementos inteligentes básicos do florescimento das pessoas.

Não obstante, há ainda uma outra questão a se considerar sobre o objetivismo de Finnis: trata-se da implicação realista que a ideia de “estado de coisas benéfico” acarreta. Aqui surge a dificuldade comum com o realismo moral: pois, à primeira vista, parece que falar em “valores morais objetivos” e “fatos morais” implica em compreender os valores como “coisas” externas materiais, o que não faz sentido em absoluto. Esse tipo de crítica, cujas raízes remontam a Hobbes, Locke e Hume, ganhou proeminência no séc. XX com o trabalho de John Mackie, especialmente através de argumento da “estranheza” (queerness). A objeção central do argumento é que, se existissem valores morais objetivos, então eles seriam totalmente estranhos (queerness) de tudo o mais no universo; de modo que também precisaríamos de uma faculdade de intuição especial para compreendê-los (MACKIE, 1977, p. 38). Assim, Mackie conclui que os valores são todos subjetivos, e

a sua aparência de objetividade é, na verdade, uma ilusão – uma projeção e objetivação.

Finnis resume o argumento da estranheza dizendo o seguinte: “Esta é a teoria de Mackie acerca da objetivação: supostamente qualidades objetivas de atos, estados de coisas etc. são, em realidade, apenas a projeção de sentimentos e desejos.” (FINNIS, 2012, p. 59) Finnis enfrenta esse argumento já em Lei Natural e Direitos Naturais, ao discutir a objetividade dos bens humanos básicos (2007, p. 76- 9, 85). Mas em Fundamentos de ética o tema ocupa a segunda seção do terceiro capítulo (“3.2 O Argumento da Estranheza”). Nessa ocasião, a estratégia de Finnis é a mesma adotada contra os argumentos céticos, buscando “[...] entender qual concepção de verdade e de objetividade está implícita nas proposições apresentadas pelos céticos e no seu esforço de apresentar essas proposições para a nossa aceitação.” (2012, p. 59). Assim, ao invés de postular uma concepção de objetividade específica, sua estratégia é sondar a própria concepção de objetividade pressuposta nas afirmações do interlocutor.

A partir dessa estratégia, Finnis lança mão de uma análise desafiadora sobre a própria atitude de Mackie ao assumir a veracidade de sua tese da estranheza: pois Mackie já está pressupondo que o leitor irá “entender” que ele julga a objetividade prática uma quimera. Ou seja, Mackie pressupõe que o leitor compreenderá suas intenções e as adequará com a realidade dos fatos (FINNIS, 2012, p. 59-60). Com base nessa constatação, Finnis alega que a objetividade dos valores morais está exatamente no mesmo patamar da objetividade das intenções (e dos critérios de verdade e falsidade), as quais são totalmente estranhas de tudo o mais no universo, mas, ao mesmo tempo, são pressupostas por nós todo o tempo (Ibidem, p. 60-1).

É claro que a passagem de Finnis das intenções para os valores morais é questionável e demanda a consistência e veracidade de toda sua argumentação em prol da lei natural. De todo modo, sua crítica à tese de Mackie constitui um passo

significativo para a elucidação da objetividade moral – poderíamos dizer, para a

“desmistificação” dessa ideia. Pois sublinha que a estranheza na constatação de que “[...] a bondade poderia ‘pertencer’ a certos estados de coisas [...]”, é igualmente visível na demanda racional (de Mackie) segundo a qual faz sentido pensar que alguém “[...] deveria afirmar a conclusão desse argumento porque suas premissas são verdadeiras e suas inferências são válidas.” (Ibidem, idem).

A insistência de Finnis em aproximar as duas situações, afirmando que ambas são “estados de coisas” que envolvem objetividade, nos conduz a uma visão mais sofistica da ideia de objetividade. Mas por que “sofisticada”, e não obscura? Ora, porque se trata de pensar as objetividades como pressuposições fundamentais

para a nossa vida, de modo que questioná-las seria loucura157. E a objetividade que

pertence ao estado de coisas buscado por Mackie em sua tese da estranheza é justamente a do conhecimento: pois Mackie, necessariamente, tem de julgar que é melhor ficar sabendo a verdade sobre a objetividade ética, do que estar no engano e na ilusão. Ora, se estar em pose do conhecimento da verdade é melhor do que estar na ignorância, então esse conhecimento é considerado uma coisa boa, um bem (FINNIS, 2012, p. 61). E, além do mais, o fato de Mackie pressupor que seu leitor também julgará bom ficar sabendo da verdade sobre a objetividade ética, reitera sua suposição da objetividade do bem do conhecimento.

Podemos ainda acrescentar uma última observação sobre a ideia de fato moral que está imbricada na ideia de estado de coisas objetivo. Há, de fato, um realismo pressuposto na afirmação de Finnis que os bens humanos básicos são objetivos. Agora, novamente: isso não significa dizer que os bens humanos básicos são “coisas” do mundo físico. Significa dizer, antes, que eles estão atrelados à constituição da realidade das coisas: pois, no caso do conhecimento, por exemplo, como isso poderia ser um bem se não pudéssemos saber que, ao nível do mar, a água ferve a 100° graus? A formação do conhecimento não está dissociada da realidade do mundo físico; pelo contrário, há uma sintonia entre a capacidade de conhecer e as condições externas – sem essa sintonia, não poderíamos sequer nos orientar no mundo. O mesmo valeria, pois, a todos os outros bens humanos básicos.

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Esta é, aliás, a forma como Wittgenstein, em seu pensamento tardio, concebeu a objetividade dos jogos de linguagem (que são as expressões mais gerais da linguagem humana). Esse pensamento se encontra na obra Da Certeza (1951), cuja tradução para o inglês, aliás, foi iniciativa de Ascombe (junto com von Wright e Denis Paul). Nessa obra (que, na verdade, é um conjunto assistemático de aforismos cuja morte de seu autor inviabilizou uma organização), Wittgenstein defende que a linguagem está fundada sob uma série de proposições fulcrais ou crenças básicas (certezas objetivas) cuja dúvida não é possível – pois elas seriam a condição mesma da linguagem, sendo, enquanto tais, pressupostas em toda e qualquer dúvida. No artigo Objetictivity and Content in Ethics (1975), John Finnis empreende uma aproximação entre a ideia de certeza defendida por Wittgenstein e sua concepção de bens humanos básicos. O cerne da aproximação está justamente na ideia de que negar a objetividade desses bens contradiz a própria prática humana, uma vez que eles seriam certezas ou fulcros básicos que a tornam possível. É certo que a aproximação intentada por Finnis não seria bem vista pelos defensores do filósofo austríaco. No entanto, uma vez compreendido o caráter fundacional dos bens humanos básicos, ignorando as diferenças metodológicas entre os autores, a aproximação parece fazer sentido.