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O processo de aprendizagem da docência: resgatando a questão do conteúdo Para compreender o processo de aprendizagem da docência apoiar-nos-emos em

No documento ANGÉLICA DA FONTOURA GARCIA SILVA (páginas 59-65)

NOVOS DESAFIOS PARA A PROFISSÃO PROFESSOR

2.4 SABERES DO PROFESSOR

2.4.1 O processo de aprendizagem da docência: resgatando a questão do conteúdo Para compreender o processo de aprendizagem da docência apoiar-nos-emos em

estudos de Shulman37 (1986a, 1986b, 1987), nos quais o autor discute o conhecimento pedagógico da matéria, partindo de análises referentes ao “pensamento do professor” e ao “conhecimento do professor”. Em 1983, Shulman já chamava a atenção para o que ele havia identificado como o “paradigma perdido” – o conhecimento do conteúdo –, destacando a necessidade do domínio deste para o ensino da disciplina. Em 1986, partindo da constatação de que as pesquisas ignoravam o conteúdo específico lecionado e não investigavam “... como o conteúdo específico de uma área de conhecimento era

14 Lee Shulman, educador americano, atualmente professor de Educação na Universidade de Stanford, dedica-

transformado a partir do conhecimento que o professor tinha em conhecimento de ensino”, Shulman (1986) questionou: “o que os bons professores fazem que os distingue dos professores comuns?” (p. 375).

Shulman (1987) classificava como a base do conhecimento para o ensino três tipos de conhecimentos que os docentes devem possuir:

Conhecimento da matéria ensinada (subject knowledge matter): refere-se a conteúdos específicos da matéria que o professor leciona. Segundo o autor, “o professor necessita não somente entender que alguma coisa é assim; o professor precisa, além disso, compreender porque é assim, sobre que terrenos sua justificativa pode ser defendida, e sob quais circunstâncias nossas crenças nestas justificativas podem ser enfraquecidas, e igualmente, escondidas” (Shulman, 1986). • Conhecimento pedagógico de conteúdo (pedagogical knowledge matter):

corresponde a uma “mistura especial” entre o conteúdo a ensinar e a pedagogia que pertence unicamente aos professores, e que constitui a sua forma especial de compreensão de como tópicos particulares, problemas ou temas são organizados, representados e adaptados aos interesses e capacidades dos alunos e apresentados para o ensino (Shulman, 1987, p. 8).

Conhecimento curricular (curricular knowledge) (Shulman, Sykes e Phillips, 1983; Shulman, 1986a, 1986b, 1987): é o conhecimento sobre as alternativas curriculares possíveis para o ensino, ou seja, é o conhecimento dos materiais curriculares alternativos para um determinado conteúdo (ou tópico), que inclui conhecimentos de teorias e princípios relacionados ao processo de ensino e aprendizagem.

Dentre estas categorias, o conhecimento pedagógico do conteúdo é a que mais tem se destacado em pesquisas que discutem a prática do professor. Trata-se de um conhecimento amplo, uma combinação entre o conhecimento da matéria e o modo de ensiná-la, que, segundo o autor:

(...) incorpora os aspectos do conteúdo mais relevantes para serem ensinados. Dentro da categoria de conhecimento de conteúdo pedagógico, incluo, para a maioria dos tópicos regularmente ensinados de uma área específica de conhecimento, as representações mais úteis de tais idéias, as analogias mais poderosas, ilustrações, exemplos, (...) as concepções e preconcepções que estudantes de diferentes idades e repertórios trazem para as situações de aprendizagem (Shulman, 1986, p. 9).

Trata-se de um conhecimento de fundamental importância nos processos de aprendizagem, posto ser ele o único conhecimento em que o professor é o verdadeiro protagonista.

Como podemos observar, a questão epistemológica debatida em pesquisas sobre formação de professores é estudada por vários autores, entre eles Maurice Tardif,38 que assim como Shulman discute a questão dos saberes docentes. Tardif, juntamente a Lessard e Lahaye, introduziu no Brasil a idéia de saber docente a partir do artigo “Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente” (1991). Esse estudo apresentou a problemática do saber docente analisando suas interferências na prática pedagógica. Classificou esses saberes em:

saberes profissionais: “... é o conjunto dos saberes transmitidos pelas instituições de formação dos professores” (p. 219).

saberes da disciplina: “... correspondem aos diversos campos do conhecimento, aos saberes de que dispõe nossa sociedade, tal que encontram-se hoje integrados” (p. 220).

saberes curriculares: “correspondem aos discursos, objetivos, conteúdos e métodos, a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais que ela definiu como modelo da cultura erudita e de formação na cultura erudita” (p. 220).

saberes da experiência: são os saberes adquiridos e validados pela experiência. “Eles incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber ser” (p. 220).

38 Maurice Tardif é pesquisador e diretor do Centre de Recherche Interuniversitaire sur la Formation et la

Assim, ao identificar as características dos saberes e a relação do professor com esses saberes, Tardif valorizou os saberes da experiência nos fundamentos da prática e da competência profissional.

Assim, ao identificar as características dos saberes e a relação do professor com esses saberes, Tardif valorizou os saberes da experiência nos fundamentos da prática e da competência profissional: “Os saberes da experiência passarão a ser reconhecidos a partir do momento em que o(a)s professore(a)s manifestarem suas próprias idéias sobre os saberes curriculares, das disciplinas e, sobretudo, sobre sua própria formação profissional” (p. 232).

Em 2000, Tardif discute a questão da profissionalização do trabalho docente. Inicia fazendo uma análise da “conjuntura social”, constatando, assim, a existência de um paradoxo relativo à formação de professores: por um lado haveria um movimento no sentido da profissionalização do trabalho docente e, por outro, a profissão e a formação profissional estariam passando por um período de crise profunda, que, segundo o autor, consistiria em:

• crise da perícia profissional;

• crise de confiança na capacidade da universidade em formar bons profissionais;

• crise do poder profissional ou da confiança do público em relação aos profissionais;

• crise da ética profissional.

Assim, por um lado temos a profissionalização do trabalho docente como uma necessidade urgente e, por outro lado, temos a crise da profissão. Surge, então, a questão da “epistemologia da prática”:

De fato, se admitirmos que o movimento de profissionalização é, em grande parte, uma tentativa de renovar os fundamentos epistemológicos do ofício de professor, então devemos examinar seriamente a natureza desses fundamentos e extrair daí elementos que nos permitam entrar num processo reflexivo e crítico a respeito de nossas próprias práticas como formadores e como pesquisadores

Tardif define epistemologia da prática como “... o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas”. A partir dessa definição, o autor desenvolve toda a sua argumentação visando mostrar que os cursos de formação universitária não têm realizado uma formação profissional (inicial) por serem, em primeiro lugar, “... globalmente idealizados segundo um modelo aplicacionista do conhecimento” (2000, p. 18) e em segundo lugar, porque “esse modelo trata os alunos como espíritos virgens e não leva em consideração suas crenças e representações anteriores a respeito do ensino” (2000, p. 19).

O autor conclui destacando o que ele denomina de “possibilidades promissoras e campo de trabalho para os pesquisadores universitários”, quais sejam:

• “elaboração de um repertório de conhecimentos para o ensino, repertório de conhecimentos baseado no estudo dos saberes profissionais dos professores tais como estes os utilizam e mobilizam nos diversos contextos do seu trabalho cotidiano à sua bagagem, aos seus saberes, aos seus modos de simbolização e ação;

• introduzir dispositivos de formação, de ação e de pesquisa que não sejam exclusivamente ou principalmente regidos pela lógica que orienta a constituição dos saberes e as trajetórias de carreira no meio universitário” (2000, p. 20);

• “fazer com que os [centros de formação] contribuam de outra maneira e tirar deles, onde ainda existe, o controle total na organização dos cursos” (p. 21);

• fazer que “os professores universitários da educação comecem também a realizar pesquisas e reflexões críticas sobre suas próprias práticas de ensino” (p. 21).

Acreditamos que a crítica de Tardif à “constituição dos saberes no meio universitário”, ou aos centros de formação, ou mesmo aos professores universitários, é na verdade uma forma de chamar a atenção para a necessidade de haver um resgate do saber da experiência docente. De acordo com o texto, pode-se inferir que o autor acredita, que se for garantida a reflexão, tanto sobre as pesquisas realizadas como sobre os cursos ministrados, conseguiremos resgatar a importância dos saberes da experiência.

Em 2002, Tardif apresenta na introdução da obra Saberes docentes e formação profissional os seguintes questionamentos “Quais são os saberes que servem de base ao ofício de professor, às competências e às habilidades que os professores mobilizam diariamente, nas salas de aula e nas escolas, a fim de realizar concretamente as suas

diversas tarefas? Qual é a natureza desses saberes?” (p. 9). O autor considera o saber docente como um saber diversificado, formado por saberes provenientes de diversas fontes. Afirma ainda que os futuros professores, antes mesmo de ministrarem suas aulas, experimentaram “lições” no seu futuro local de trabalho. Assim, um professor, mesmo antes de escolher o ofício docente, ficou pelo menos 12 anos vivenciou por pelo menos 12 anos o cotidiano escolar, tornando-se essa uma primeira dimensão formadora.

Para um maior esclarecimento dessa idéia, Tardif (2002) propõe um quadro que apresentaremos seguir. Quadro, cujo objetivo é identificar e classificar os saberes dos professores, mostrando suas fontes de aquisição e como isso se incorpora ao trabalho docente. Além disso, o quadro apresenta a natureza social do saber profissional.

O autor descreve assim os saberes:

Quadro – Saberes dos professores Tardif (2002)

Saberes dos professores Fontes de aquisição Modos de integração no trabalho docente

Saberes pessoais A família, o ambiente de vida, a educação no sentido lato etc.

Pela história de vida e pela socialização primária. Saberes provenientes da

formação escolar anterior

A escola primária e secundária, os estudos pós- secundários não

especializados etc.

Pela formação e pela socialização pré- profissionais. Saberes provenientes da

formação profissional para o magistério

Os estabelecimentos de formação de professores, os estágios, os cursos de reciclagem etc.

Pela formação e pela socialização profissionais nas instituições de

formação de professores. Saberes provenientes dos

programas e livros didáticos usados no trabalho A utilização das “ferramentas” dos professores: programas, livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas etc.

Pela utilização das

“ferramentas” de trabalho e sua adaptação às tarefas.

Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola.

A prática do ofício na escola e na sala de aula, a experiência dos pares etc.

Pela prática do trabalho e pela socialização

Segundo Tardif (2002), toda essa experiência rica em hábitos e rotinas leva o professor a adquirir crenças, valores e representações tanto sobre a prática da docência como sobre ao ato de ser aluno. Assim, para o autor:

o saber profissional está de um certo modo na confluência entre várias fontes de saberes provenientes da história de vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores educativos, dos lugares de formação, etc. Ora, quando estes saberes são mobilizados nas interações diárias em sala de aula, é impossível identificar imediatamente suas origens: os gestos são fluidos e os pensamentos, pouco importam as fontes, convergem para a realização da intenção educativa do momento (Tardif, 2002, p. 64).

Portanto, ao internalizar as experiências vividas, os professores selecionam, julgam, avaliam, refletem e se auto-avaliam para trazer para a sua prática o que consideram correto, o que Tardif (2002) denomina de saberes experienciais. Estes “não são saberes como os demais; são, ao contrário, formados de todos os demais, mas retraduzidos, ‘polidos’, e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência” (p. 54).

Partindo desse pressuposto, entendemos como primordial para a pesquisa de saberes dos professores a imersão no contexto docente, visto que os saberes experienciais abrangem saberes múltiplos e interligados, sempre em integração com o social. Por isso, acreditamos ser a escola um ambiente profícuo para encontrarmos toda essa teia de saberes.

Analisaremos, então, estudos de pesquisadores de Portugal, como João Pedro da Ponte (1998, 2003) Lourdes Serrazina (1998, 2004), que consideram que a reflexão individual não basta, e que se devem propiciar momentos de reflexão em uma equipe colaborativa.

No documento ANGÉLICA DA FONTOURA GARCIA SILVA (páginas 59-65)