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ENXERGANDO A LÍNGUA COMO UM CONJUNTO DE VARIEDADES

2.1 Apresentando alguns conceitos importantes

Ainda hoje, o fetiche conservador de que a língua é binária, vista em termos dicotômicos, em que se separa em caixinhas o que é “padrão” e o que é “não padrão”, o que é “formal” e o que é “informal”, paralisa as possibilidades de se repensar questões importantes no ensino de língua nas escolas. É chegada a hora, de acordo com o que afirma Lefebvre (1991), de rever as contradições existentes entre o que é centro e o que é periferia, o que é global e o que é local, o que é individual e o que é social, entre o conhecimento universal e o conhecimento situado nas práticas cotidianas. Para esse autor, é preciso “atravessar”, “apagar” e “redefinir” as barreiras entre produção linguística e significados sociais. Para isso, é preciso ter em mente um dos princípios mais significativos desenvolvidos pela linguística, que é o de que a organização da estrutura de uma língua (os sons, os fonemas, os morfemas, as construções gramaticais, o léxico) não está rigorosamente associada com a homogeneidade

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da língua. Ao contrário disso, a variação linguística é uma característica inerente às línguas naturais e, “quer sirva a uma grande nação consideravelmente extensa e muito diferenciada cultural e socialmente, quer pertença a uma pequena comunidade isolada de apenas poucas dezenas de indivíduos, é um complexo de variedades, um conglomerado de variantes”, como afirma Rodrigues (2002 [1968], p.11).

Assim, é impossível negar que a língua seja um fenômeno social. Entretanto, estudá-la em suas diversas facetas nunca foi tarefa fácil. Se observarmos os estudos linguísticos desde Platão e Aristóteles, veremos que a uma das grandes preocupações nessa época era com a categorização das formas linguísticas, ou seja, com a gramática da língua.

Estudos contemporâneos26, por sua vez, corroboram a tese de que, ao se

assumir as línguas como sistemas abertos, heterogêneos, múltiplos e dinâmicos, está-se rompendo com a visão clássica de que elas são entidades discretas e homogêneas e consideradas como sistemas monolíticos e fechados. Em função disso, a adaptação de falantes/escreventes a diferentes situações de interação nas diferentes redes de relações sociais é que pode confirmar a verdadeira natureza da língua: heterogênea e plural.

Do ponto de vista sociolinguístico, a língua é um fenômeno dinâmico, cumpre um papel crucial na interação social e é agente importante na transmissão dos valores culturais e sociais e, por isso mesmo, é moldada pelas forças políticas, sociais e culturais.

É exatamente com base nesse complexo universo que podemos respaldar nosso conceito de diversidade linguística. Em uma sociedade estratificada e complexa como a do Brasil, o multiculturalismo e o plurilinguismo caminham juntos, diversamente, e paradoxalmente, estão também articulados entre si, não só pela atual heterogeneidade de línguas faladas no território brasileiro, por exemplo, mas, mais ainda, pela grande diversidade interna da

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Estudos desenvolvidos por pesquisadores, tais como: Milroy; Milroy (2012), Monteagudo (2011), Faraco (2008, 2005), Milroy (2001), Gnerre (1988), Britto (1997), Labov (1972), para citar apenas alguns.

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língua portuguesa falada no País. Apesar de esse plurilinguismo não ser assumido pelo Estado, ele faz parte de nossa realidade linguística e está diretamente relacionado com a própria heterogeneidade da rede de relações sociais que são estabelecidas dentro de cada comunidade linguística, em cujo interior encontram-se as “comunidades de prática”, nos termos de Eckert (2000).

De uma forma geral, Eckert (2000) entende por comunidades de prática um conjunto de pessoas que partilham experiências coletivas no trabalho, nas igrejas, nos sindicatos e associações, no lazer, no cotidiano, no bairro etc. Assim, embora essas pessoas partilhem as mesmas características do nível macro (idade, escolaridade, sexo, profissão), elas podem apresentar diferenças quanto à fala devido a inserção em diferentes práticas sociais. Em outras palavras, quanto mais heterogêneas são as relações dentro desse panorama linguístico, mais são as categorias necessárias para analisar as múltiplas redes que se interconectam e de que participam os falantes.

A esse respeito, Mattos e Silva (2004) ressalta que enquanto o plurilinguismo ocupa as margens sociais e geográficas do Brasil, a diversidade dialetal se espalha por todo o espaço geográfico e social brasileiro. É bom que se diga, entretanto, que a tarefa de transposição dessa realidade para a escola e para os materiais didáticos tem sido feita ainda de forma bastante tímida e está longe de ser assumida, de fato, no campo do ensino de língua portuguesa.

É preciso evidenciar, no entanto, que esse aparente caos, que é a diversidade e a variabilidade linguísticas, constitui-se em fenômenos regulares, sistemáticos e motivados pelas próprias regras do sistema linguístico (Cf.

GNERRE, 1988). As variedades linguísticas no Brasil não são

“compartimentadas”, de acordo com Bortoni-Ricardo (2005); elas se intercambiam e se misturam numa espécie de continuum horizontal e dependem de uma série de fatores extralinguísticos – socioeconômicos e históricos –, tais como a distribuição geográfica do falante, o grau de instrução, a exposição aos meios de comunicação, as redes de relacionamentos, o gênero, a faixa etária e

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outras variáveis. Todos esses aspectos contribuem para caracterizar a forma como o falante/escrevente vai se comportar no momento da interação.

Além desses matizes externos, podemos dizer que as línguas ainda podem variar motivadas por fatores internos à língua, nos níveis lexical, morfossintático, fonético-fonológico (Cf. ILARI; BASSO, 2007, p. 163-169) e discursivo. Tanto uma variação quanto outra ou muitas delas se misturam e se entrecortam nas múltiplas situações de interação, como mostraremos no capítulo 4 deste estudo, quando analisaremos os fenômenos sociolinguísticos e como eles foram abordados pelos autores dos LDP.

Um dos aspectos importantes quando se trata da variação é a atribuição de prestígio a uma forma, chamada de padrão, e a estigmatização das outras que concorrem e coocorrem com a de prestígio. Na próxima seção, apresentaremos um breve comentário sobre a questão da língua padrão e da padronização e seus efeitos no ensino de língua.

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