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1 PROBLEMATIZAÇÃO DOS REGISTROS DE REPRESENTAÇÃO:

1.4 Além das Transformações de Conversão e Tratamento

1.4.1 Argumentação em Matemática segundo Raymond Duval

Duval (1990) destaca três tipos de raciocínio, a saber: dedutivo, argumentativo e pelo absurdo. Não há “[...] uma definição geral do que é um raciocínio [...]” (DUVAL, 1990, p. 201), mas há “[...] uma classificação dos diferentes encaminhamentos de raciocínio na qual o raciocínio dedutivo, o raciocínio pelo absurdo e a argumentação encontram naturalmente seu lugar” (DUVAL, 1990, p. 201).

28 GOULART, J. G. A Argumentação na Abordagem do Pensamento Funcional: uma análise de atividades

presentes em livros didáticos de matemática da educação básica. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Licenciatura em Matemática) - Universidade Federal do Pampa, Itaqui, RS, 2016.

No Quadro 14, abaixo, são apresentadas as características dos três tipos de raciocínio identificados por Duval (1990). Neste Quadro, ele priorizou a comparação da argumentação com outras duas formas de raciocínio supracitadas.

Quadro 14: Características dos raciocínios matemáticos

Argumentação Raciocínio Dedutivo Raciocínio pelo Absurdo

Tipo de passo

(Do raciocínio) Passagem direta (Tipo 1 e 3) Referência a uma regra (Tipo 2 e 4)) 1, 2, 3, 4 Tipo de sucessão entre

os passos (Do raciocínio)

Neutro Explicitamente

encadeado Explicitamente encadeado e conexão externa Valor epistêmico das

proposições parcialmente explicitado Heterogêneo e inteiramente explicitado Heterogêneo e ou parcialmente explicitado Heterogêneo e inteiramente Estatuto operatório das

proposições Não Sim, determinado pelo valor epistêmico Sim, dentro do quadro de uma demonstração Tipo de representação

do raciocínio Rede em circuito fechado Flow Diagram Superposição dos dois tipos diferentes Fonte: Duval (1990, p. 207)

Para Duval (1990), “é pelo tipo de passo implantado que o raciocínio argumentativo se distingue dos outros modos de raciocínios” (DUVAL, 1990, p. 196), e “a análise de um raciocínio compreendendo vários passos requer então que levemos em consideração por sua vez a natureza dos passos e o tipo de sucessão dos passos” (DUVAL, 1990, p. 204). Desse modo, a argumentação diferencia-se do raciocínio dedutivo “[...] pelo tipo de passo e pelo tipo de sucessão admitido entre os passos” (DUVAL, 1990, p. 204).

De acordo com Duval (1990, p. 204), a argumentação, diferentemente da dedução, privilegia “[...] os passos do tipo 1 ou do tipo 3, quer dizer aqueles que são efetuados sem referência a uma regra e que levem em conta o conteúdo das proposições”.

Os passos 1 e 3 fazem parte de quatro tipos de passos do raciocínio, segundo a maneira como ocorre a passagem das premissas com uma conclusão efetuada (DUVAL, 1990). Há “[...] um passo de raciocínio cada vez que tem passagem de um (ou de várias) proposição(ões) dada(s) a uma proposição nova que toma valor de conclusão, intermediária ou final” (DUVAL, 1990, p. 201).

O passo 1 dá-se “diretamente a partir de uma única premissa: é inferência imediata, aquela que me permite compreender por exemplo em ‘ele não fuma mais’, ‘ele fuma’” (DUVAL, 1990, p. 202). O passo 3 ocorre “diretamente a partir de pelo menos duas premissas: é, por exemplo o silogismo clássico” (DUVAL, 1990, p. 202). Já os passos 2 e 4 ocorrem por meio de regras: definição, teorema, axioma ou lei lógica, que são próprios do raciocínio dedutivo (DUVAL, 1990). O raciocínio por absurdo combina os passos específicos da argumentação e da dedução (DUVAL, 1990).

No que se refere aos tipos de passos sucessivos da argumentação, Duval (1990, p. 204) afirma que “[...] são extrinsecamente conectados [...] [e] podem ser às vezes ‘encadeados’ por produzir um efeito retórico de ‘rigor’”.

De fato, toda a argumentação é neutra quanto ao tipo de sucessões entre seus diferentes passos. Pois a estrutura da argumentação é dada em prioridade pelas relações entre o conteúdo de suas proposições: o papel dos conectores que religam as proposições consiste em sublinhar, a selecionar ou a construir as oposições ou as correspondências de conteúdo sobre os quais a argumentação se desenvolve (DUVAL, 1990, p. 204).

Como se nota em Duval (1990), o raciocínio argumentativo ocorre por acumulação de proposições, ao contrário do raciocínio dedutivo, que ocorre por substituição de proposições. Nessa substituição, “[...] intervém primeiramente [...] o seu estatuto operatório e não diretamente [...] seu conteúdo [como ocorre no raciocínio argumentativo]” (DUVAL, 1990, p. 204).

Do ponto de vista de Duval (1990), o encaminhamento do raciocínio argumentativo não pode ser representado por um “flow diagram” (diagrama de flechas ou diagrama linear) porque:

[...] as proposições não são substituídas umas pelas outras, mas seguidamente opostas umas às outras. Uma argumentação não se percorre e não pode ser controlada passo a passo, ela exige ao contrário uma apreensão simultânea das múltiplas relações existentes entre as proposições (DUVAL, 1990, p. 204).

Além do mais, porque a argumentação:

[...] se representa mais naturalmente como uma rede semântica de proposição. Em uma tal rede, todas as flechas não são da mesma natureza. E, em relação a uma rede semântica, a rede argumentativa apresenta a particularidade de funcionar, mais ou menos, em circuito fechado (DUVAL, 1990, p. 204).

Como se vê em Duval (1990), os passos no raciocínio argumentativo são “extrinsecamente ligados por conectores” (mas, então, etc.) (DUVAL, 1990, p. 204). Já no raciocínio dedutivo, são “explicitamente encadeados” e, “[...] na redação das demonstrações, os conectores marcam o estatuto operatório das proposições que eles introduzem” (DUVAL, 1990, p. 204). “Esta organização dedutiva do raciocínio se representa naturalmente por um ‘flow diagram’, no qual todas as flechas são da mesma natureza” (DUVAL, 1990, p. 204).

Portanto, Duval (1990) conclui que a argumentação difere cognitivamente da dedução no que se refere à natureza entre os passos do raciocínio e ao tipo de ligação entre os passos sucessivos. Em Duval (1999), encontrei duas noções essenciais à presente pesquisa que, segundo ele, são fundamentais para analisar o processo de argumentação: argumento e discurso. Para Duval (1999), a argumentação é constituída por mais de um argumento,

configurando-se em um discurso, seja em língua natural ou formal (matemática), como se vê a seguir.

Argumento, de acordo com Duval (1999), é justificativa. Segundo ele, o argumento pode ser feito por meio de uma sentença, de um exemplo, de uma definição, de uma regra, de uma crença ou de uma contradição. O argumento tem valor (validade) desde que utilizado para dizer o “porquê”. Nas palavras do autor:

Um argumento é considerado ser qualquer coisa que é usada para justificar ou contrariar uma proposição. Isso pode ser uma sentença de um fato, o resultado de um experimento, ou até simplesmente um exemplo, uma definição, a retomada de uma regra, uma crença mutuamente tida ou a apresentação de uma contradição. Ele tem o valor da justificação quando alguém o usa para dizer “porque”, aceitando ou rejeitando uma proposição. Uma argumentação é a resposta para a questão por que “você diz isso? ...você acredita nisso? ...” (DUVAL, 1999, p. 2).

Duval (1999) menciona que a noção de argumento não é um modelo de não dedução, nem é determinada/definida. Conforme Duval (1999, p. 2), a noção de argumento é indeterminada “porque o que dá valor e força a um argumento não só depende da matéria (matemática) mas também do contexto particular que motiva a argumentação”. Ele cita e comenta o exemplo: um teorema pode ser um argumento se ele for empregado para justificar uma tese/conclusão, ou ser uma ferramenta se o seu uso for central ao desenvolvimento do problema em questão. Isto é:

Por exemplo, ao buscar a solução de um problema, uma questão simples pode ter o valor ou força de um argumento para desalojar uma ideia. Este ponto é importante. Para vê-lo, é suficiente se perguntar se um teorema pode ser considerado um argumento. [...]. Se o uso de teoremas é tão central à resolução de problemas quanto é à prova seu uso não é como um argumento, mas como uma “ferramenta”. Podemos apenas apresentar um teorema como um argumento na condição de querer justificar uma proposição como uma necessária conclusão da hipótese (DUVAL, 1999, p. 2- 3).

Assim sendo, de acordo com Duval (1999, p. 3), “a noção de argumento é mais global do que a de teorema e envolve considerar duas dimensões”. As dimensões são: o contexto de produção do argumento e a escolha do sujeito para alcançar algum objetivo. Segundo ele, “falar de argumento é primeiramente se referir à escolha de um sujeito a atingir determinado objetivo. Em seguida, é se referir ao contexto para a produção do argumento” (DUVAL, 1999, p. 3).

No que tange ao contexto de produção de argumentos, ele é determinado conforme dois pontos: o motivo e o objetivo dos argumentos.

Um contexto de produção é determinado de acordo com dois pontos. Por um lado, há o que quer que tenha motivado o recurso para argumentos: um peso no senso de decisão a ser tomada, a resolução de um conflito de interesse, a resolução de um problema apresentando restrições técnicas ou lógicas. Por outro lado, há o objetivo:

convencer outra pessoa ou, por outro lado, diminuir o risco de erro ou incerteza na escolha de um processo. Longe do contexto de sua produção, um argumento geralmente perde sua “força” (DUVAL, 1999, p. 3).

Em Matemática, o contexto de produção de argumentos, ou seja, “[...] o motivo e o objetivo da argumentação são específicos do problema a ser resolvido” (DUVAL, 1999, p. 3); são as “[...] limitações do problema que determinam a escolha de argumentos e não primeiramente a crença da pessoa para quem o argumento está direcionado” (DUVAL, 1999, p. 3). “A força de um argumento depende primariamente no quanto ele é apropriado para a situação e não na sua ressonância no universo da pessoa com quem se fala: a questão é se a solução ‘funciona’ ou pode ‘funcionar’” (DUVAL, 1999, p. 3).

A segunda noção fundamental para analisar o processo de argumentação do ponto de vista de Duval (1999) é a de discurso. Segundo ele, a noção de discurso abrangerá sempre mais de um argumento:

[A] Argumentação não pode realmente ser reduzida ao uso de um único argumento. Ela requer que possamos avaliar um argumento e opor este argumento a outros argumentos. [...] O argumento sempre aparece em um discurso [...] em uma sequência de operações sucessivas mobilizando um sistema semióptico (DUVAL, 1999, p. 3).

Assim, em um discurso, conforme Duval (1999), os argumentos podem ser utilizados para convencer alguém acerca da veracidade de uma proposição ou para justificar por meio da descrição.

Além dos argumentos que podem convencer alguém de que uma proposição nem sempre surge do raciocínio. Eles podem consistir de clarificação, quer dizer, descrever como o sistema funciona e mostrar o lugar que a proposição justificada toma. (DUVAL, 1999, p. 3-4).

O exemplo abaixo é citado por Duval (1999) no domínio da Matemática: relações feitas no Teorema de Pitágoras acerca do convencimento de sua veracidade e de sua justificativa por meio da descrição.

Vamos pegar as relações feitas no Teorema de Pitágoras. Para convencer alguém da veracidade das proposições podemos proceder em várias aplicações numéricas e fazer a pessoa observar que a relação é sempre validada não importam as medidas dos lados do triângulo. Mais interessante, podemos fazer qualquer das numerosas reconfigurações possíveis de cada quadrado construído em cada lado do triângulo (Padilha 1992, pp. 33-38, 197-218). Essas verificações numéricas ou reconfigurações geométricas não constituem, exatamente, uma prova matemática, mas existem argumentos que irão produzir convicção da veracidade da proposição de Pitágoras. E se o assunto é levado a mudar o registro da representação, a proposição de Pitágoras pode ser justificada pela descrição, com expressões da linguagem convencional, o que se observou das transformações entre quadrados e triângulos (DUVAL, 1999, p. 4).

Nesse exemplo, a argumentação envolveu a mobilização da linguagem matemática. Porém, para Duval (1999), a argumentação sempre abrange a língua natural, ou seja, “[...] a argumentação sempre envolve mobilizar a linguagem natural, mesmo quando os argumentos usados surgem de outro registro de representação” (DUVAL, 1999, p.4).

No que se refere ao desenvolvimento do discurso em língua natural, Duval (1999, p. 4) marca que “[...] existem dois grandes mecanismos [...] ao passo que a linguagem formal permite apenas um”. Para ter uma ideia dessas distinções, ele apresenta o quadro abaixo:

Quadro 15: Distinções entre os discursos em língua natural e língua formal Relações entre uma proposição dada e outra proposição Relações de justificação

(um componente de um argumento) A primeira proposição é dada como “tese”

Relações de derivação

A primeira proposição é dada como “hipótese” ou “premissa”

Razões relativas para a pessoa com quem se fala

Argumentação retórica Razões relativas às restrições da situação ou do problema Argumentação heurística Direto: Interferência semântica Lógica de uma linguagem

Por “énoncétiers”29, teorema, definição

Prova matemática Fonte: Duval (1999, p. 4).

Sobre tais distinções, Duval (1999) marca que elas são cognitivamente diferentes. “É por isso que elas se tornam essenciais neste estudo, da perspectiva do aprendizado, de todas as questões relativas à relação entre argumentação e prova matemática” (DUVAL, 1999, p. 4). Quer dizer, de um ponto de vista cognitivo, o discurso em língua natural permite relações de justificação tanto no domínio da retórica quanto no da heurística.

No que tange ao estudo sistemático da argumentação heurística, que concerne às restrições da situação ou do problema, Duval (1999) chama a atenção para os seguintes quatro pontos fundamentais: o contexto de produção de argumentos; os modos de expressão (verbal ou escrita); argumentos discursivos mobilizados; e argumentação versus prova matemática.

No tocante ao primeiro ponto, quer dizer, ao contexto de produção de argumento, de acordo com Duval (1999), a noção de problema é geral, e sua escolha é aleatória:

[...] nos parece que a noção de problema continua muito geral e que a escolha de um problema preciso para observarmos os alunos frequentemente permanece muito contingente. Entre a extrema generalização da noção do problema e do caráter dos problemas, os quais, não importa o que falemos, sempre permanece particular, não há um nível de análise intermediário (DUVAL, 1999, p. 5).

Além disso, na visão de Duval (1999), a análise do problema selecionado é realizada a partir de suas soluções, e não de possíveis variações em dados (nos enunciados, suponho). Em seus termos:

[...] a análise do problema escolhido é feita para baixo, ou seja, respeitando sua solução ou soluções, e não para cima, quer dizer, respeitando possíveis variações em

dados e as variações de distância entre a sentença e a inicialização do primeiro tratamento matemático relevante que resulta delas (DUVAL, 1999, p. 5).

Quanto ao segundo ponto, isto é, maneiras de expressão – verbal ou escrita –, suas dificuldades devem ser levadas em conta no estudo da argumentação. Nesse sentido, Duval (1999) marca alguns questionamentos sobre esse caminho (passagem da expressão verbal à escrita) que seriam implicados pelo contexto da argumentação retórica e heurística, isto é:

O que poderia então contribuir a uma passagem ao modo escrito de expressão? Realizar uma função de comunicação e institucionalização, que continua a prolongação de um modo oral de expressão, ou, por outro lado, funciona como tratamento e controle, incluindo as provas escritas, as quais envolvem uma ruptura com o modo oral de expressão? Como pode ser visto, atrás desta questão está o problema de interferências entre o contexto da argumentação retórica e argumentação heurística (DUVAL, 1999, p. 5-6).

No terceiro ponto, ou seja, os argumentos discursivos mobilizados, segundo Duval (1999, p. 6), abrangem necessariamente “[...] a mobilização de uma ‘linguagem’ natural ou formal”. Nesse sentido, ele chama a atenção: “o problema não é o da linguagem usada, mas todas as operações discursivas as quais podemos carregar com a linguagem” (DUVAL, 1999, p. 6). Tais operações serão retomadas com mais afinco na próxima seção, na perspectiva de Duval (1995).

No quarto e último ponto do estudo da argumentação heurística – argumentação versus prova matemática –, Duval (1999) evidencia suas diferenças do ponto de vista cognitivo e, nessa direção, levanta duas questões “[...] para as quais nós não temos ainda resultados de observação realmente úteis à disposição” (DUVAL, 1999, p. 6). Seguem as duas perguntas levantadas:

[1] Com referência a um trabalho de um matemático, muita ênfase é dada no momento do desenvolvimento de uma conjectura. Porém, ao menos para os alunos, os argumentos os quais levam à formulação de uma conjectura também possibilitam encontrar meios para provar isso? [2] As capacidades que um aluno deve ter para verificar a pertinência dos argumentos produzidos enquanto está tentando provar uma conjectura formulada e mantida consideravelmente desenvolvida quando ele entendeu as diferenças no funcionamento discursivo entre “validação formal” e argumentos retóricos são mais [...] espontâneas? (DUVAL, 1999, p. 6-7).

Como é possível notar, a primeira questão refere-se à validade dos argumentos utilizados na elaboração de conjecturas pelos estudantes; a segunda questão concerne à natureza dos argumentos utilizados pelos estudantes para verificar a validade dos argumentos empregados na formulação de conjecturas.

Por fim, cabe marcar que, na perspectiva de Duval (1999), um dos papéis da problemática da argumentação é trazer à tona a situação paradoxal no ensino da matemática: utilização da língua natural em Matemática. Nas palavras do autor:

A importância da comunicação e das interações sociais e didáticas reconhecidas nos leva necessariamente a dar prioridade a uma linguagem natural. Ao mesmo tempo, desejamos apenas reter os modelos cognitivos de aprendizagem nos quais o papel da linguagem, ao menos da linguagem natural, é dado em segundo lugar. Uma das tarefas de uma problemática de argumentação é trazer essa situação paradoxal ao conhecimento (DUVAL, 1999, p. 7).