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1 PROBLEMATIZAÇÃO DOS REGISTROS DE REPRESENTAÇÃO:

1.4 Além das Transformações de Conversão e Tratamento

1.4.2 Funções Discursivas da Língua

Para Duval (1995), é necessário distinguir e separar funções discursivas de funções metadiscursivas, pois são planos radicalmente diferentes entre as funções que se mobilizam no emprego de uma língua – ainda mais quando se almeja analisar a variedade de discursos possíveis e o funcionamento intrínseco a cada um; analisar o discernimento dos fatores que podem modificar o funcionamento cognitivo e linguístico de sujeitos; e analisar a transição da língua formal para a língua natural ou vice-versa.

As funções discursivas são comuns aos registros discursivos: língua natural e linguagem simbólica. As funções metadiscursivas são “[...] as funções cognitivas mais comuns a todos os registros de representação linguísticos, simbólicos ou figurativos”. (DUVAL, 1995, p. 87). Há três funções metadiscursivas: a comunicação, o tratamento e a objetivação de representações visuais (tomada de consciência). Nesta seção, são detalhadas as funções discursivas da língua: referencial, apofântica, expansão discursiva e reflexividade.

Duval (1995, p. 94) ressalta que “a primeira função de uma língua é permitir designar objetos”. De acordo com Duval (1995), a função referencial mobiliza um complexo jogo de operações discursivas – a saber: operações de designação pura, categorização simples, determinação e descrição –, e cada uma destas operações demanda modos específicos de designação, como se vê a seguir.

A operação de designação pura consiste em identificar um objeto por meio de gestos ou de um só signo ou de uma combinação de signos: letra ou número (DUVAL, 1995). Por exemplo: seja L a metade do segmento AB (DUVAL, 1995). Nesse exemplo, L e AB designam, respectivamente, a metade de um segmento L e o segmento AB. Contudo, “geralmente, uma operação de designação pura pode ser suficiente para identificar o objeto do qual se fala no contexto de uma comunicação oral, mas não no contexto de uma expressão

escrita” (DUVAL, 1995, p. 95). Assim, as letras L e AB não funcionam por si só e necessitam das demais operações de categorização e determinação (DUVAL, 1995).

A operação de categorização simples incide em identificar um objeto por meio de suas características, por sua vez, marcadas por substantivos, verbos ou adjetivos qualificativos (DUVAL, 1995). Por exemplo: 1) Seja L a metade do segmento AB, e 2) Busca-se um divisor comum ao numerador e ao denominador (DUVAL, 1995). Nesses enunciados, as palavras: metade, segmento, divisor, numerador e denominador são as características do objeto matemático em questão, sendo que a primeira palavra (metade) se configura em adjetivo qualificativo, e as demais, em substantivos. Vale dizer que “[...] esta operação nunca é suficiente por si só para permitir identificar um objeto. Deve estar combinada com outra operação, a de determinação” (DUVAL, 1995, p. 95).

A operação de determinação “consiste em determinar o campo de aplicação da operação de categorização” (DUVAL, 1995, p. 95), por exemplo: 1) Seja L a metade do segmento, e 2) Busca-se um divisor comum (DUVAL, 1995). A identificação consiste em um modo preciso ou pontual, por sua vez, marcado pelo emprego de artigos: “a” e “um”.

A operação de descrição “consiste em identificar um objeto cruzando os resultados de várias operações de categorização” (DUVAL, 1995, p. 95), por sua vez, marcada pelo “[...] emprego de construções originais ou de proposições relativas [...]” (DUVAL, 1995, p. 95). Por exemplo: seja L o ponto de intersecção das alturas de um triângulo (DUVAL, 1995). Nesse exemplo, incluem-se a preposição original “de” e a combinação de + a (preposição + artigo). Ao retomarmos o exemplo anterior: seja L a metade do segmento AB (DUVAL, 1995), pode-se dizer que “do” (de + o) liga as duas designações (L e AB). Destaca-se que esta operação, assim como a operação de categorização simples, “[...] requer ser combinada com a operação de determinação. Salvo certos casos, pois, no registro das línguas naturais é necessário combinar ao menos duas operações para poder designar um objeto” (DUVAL, 1995, p. 96).

Portanto, segundo Duval (1995), os objetos matemáticos podem ser referidos discursivamente de duas formas: pelo emprego de um signo de identificação (número, símbolo, letra, nome próprio, por exemplo) ou pela combinação de signos. Em suas palavras:

[...] a referência aos objetos se efetua discursivamente de duas formas: seja pelo emprego de um signo de identificação que procede da operação de designação pura (símbolo, letra ou número de codificação, número de matrícula, nome próprio ...), ou pelo emprego de uma combinação de signos que provém de duas operações (categorização ou descrição, e determinação) (DUVAL, 1995, p. 99).

Acerca da operação de descrição, vale marcar que “nenhuma língua, inclusive a língua natural, pode ter um nome para cada objeto ou para cada classe de objetos; se trata de poder nomear não importa que objeto apesar da limitação do léxico da língua de que se dispõe” (DUVAL, 1995, p. 95-96). Ou seja, a operação de descrição permite designar qualquer conceito matemático por meio de léxicos (signos, símbolos ou palavras), sejam eles associativos ou sistemáticos (DUVAL, 1995).

Um léxico sistemático é constituído por símbolos e é próprio da língua formal (DUVAL, 1995). O sistema de numeração indo-arábico é um exemplo de léxico sistemático, pois os signos que compõem o seu léxico inicial correspondem aos números de zero (0) a nove (9) do sistema de base dez (10), e “todos os outros números são então designados pela combinação destes signos; as posições sucessivas dos signos combinados correspondem às potências sucessivas da base” (DUVAL, 1995, p. 97). Um léxico sistemático “[...] permite só a operação de designação pura [...]” (DUVAL, 1995, p. 97), que consiste em identificar um objeto matemático por meio de um signo ou de uma combinação de signos (números, na situação em questão).

Já um léxico associativo é composto por palavras e é próprio da língua natural, permitindo uma extensão semântica, que consiste “na formação de termos novos para todos os objetos que, nesse léxico inicial, não têm nome para designá-los, se faz em primeiro lugar através do emprego de palavras que já existem, mas com uma transferência parcial de seu sentido e um desplazamiento da referência” (DUVAL, 1995, p. 99, grifo meu). Assim, o procedimento de extensão semântica permite combinar a operação de designação pura com a operação de categorização.

Para exemplificar esse tipo de léxico, tomo o exemplo de Brandt, Moretti e Bassoi (2014) de léxico associativo AB. Por exemplo, “[...] seja AB o segmento de reta; seja AB o lado do triângulo ABC. Nesses casos, o léxico AB é associado ao segmento de reta e também ao lado do triângulo” (BRANDT; MORETTI; BASSOI, 2014, p. 482, grifos dos autores). Retomando-se os exemplos anteriores: 1) Seja L a metade do segmento AB, e 2) Seja L o ponto de intersecção das alturas de um triângulo (DUVAL, 1995), é possível afirmar que tais enunciados são ilustrações de léxicos associativos, de modo que o léxico L é associado ora ao ponto médio de um segmento de reta, ora ao ponto de interseção de segmentos de reta.

Duval (2011) continua, afirmando que “[...] a atividade matemática é independente do conhecimento de conceitos” (DUVAL, 2011, p. 37). Ele acrescenta que a atividade matemática é transversal ao conhecimento de conceitos matemáticos, de maneira a implicar a “[...] utilização não habitual da língua natural para designar as propriedades de uma figura, ou

nas propriedades que devem ser mobilizadas em uma situação concreta, para demonstrar uma conjectura ou para justificar o emprego de um procedimento” (DUVAL, 2011, p. 37). Ainda, ele questiona: “como os alunos podem descobrir, por eles mesmos, se isto não está explícito e especificamente cobrado na preparação do ensino?” (DUVAL, 2011, p. 37). Esta pergunta é de ordem didática e abordada por esta pesquisa de doutoramento.

Porém, “a possibilidade de designar objetos não é suficiente para permitir uma atividade discursiva” (DUVAL, 1995, p. 104). É necessário que uma língua possibilite dizer outras coisas sobre os objetos designados: “uma língua também deve permitir que se possa dizer qualquer coisa sobre os objetos que designa. Dito de outra maneira, uma língua deve permitir que se cumpra o que chamamos de função ‘apofântica’” (DUVAL, 1995, p. 104).

Segundo Duval (1995), a função apofântica mobiliza duas operações discursivas: predicação, que desencadeia proposições e frases, que, por sua vez, possuem estruturas internas distintas, e “elocução”30, sendo que proposições e frases são enunciados completos (DUVAL, 1995).

De acordo com Duval (1995, p. 106), a operação de predicação “[...] consiste em vincular a expressão de uma propriedade, de uma relação ou de uma ação, com uma expressão que designe os objetos”. Além do mais, o enunciado constituído por meio da operação de predicação “[...] pode tomar um valor epistêmico e um valor lógico ou um dos dois” (DUVAL, 1995, p. 106). O autor afirma que a função apofântica envolve enunciados completos, que podem ter um valor epistêmico: de certeza, necessidade, verossimilhança, possibilidade ou de absurdo; ou um valor lógico: de verdade ou falsidade.

No intuito de esclarecer ainda os valores epistêmico e lógico de um enunciado completo, apresento alguns exemplos – tomados das análises realizadas por Brandt, Moretti e Bassoi (2014) – de problemas algébricos31 resolvidos por estudantes brasileiros da Educação Básica e Superior. Para os referidos pesquisadores, as soluções apresentadas por alguns estudantes que se apoiavam em soluções únicas ou em um só dado empírico ou procedimentos empíricos, ou ainda, obtidas por tentativas não têm valor epistêmico de certeza; segundo eles, tais soluções não foram baseadas em propriedades, definições, teoremas ou axiomas, por exemplo. Mesmo assim, constataram que algumas dessas soluções não eram desprovidas de valor lógico de verdade, pois abrangiam afirmações verdadeiras, embora não envolvessem todas as possibilidades afirmativas.

30 A tradução de “acto ilocutorio” neste texto foi tomada de Brandt, Moretti & Bassoi (2014, p. 482).

31 Os dois problemas algébricos são apresentados na seção seguinte (seção 1.4.3), em que são apresentadas pesquisas que abordam as funções discursivas da língua.

Conforme Duval (1995, p. 106), a operação de elocução consiste no ato elocutório, quer dizer, “[...] ato que, através da produção de enunciado, confere a este enunciado um valor social de ato que compromete o locutor ou o destinatário”. No entendimento de Duval (1995) sobre valor social, a função apofântica envolve enunciados completos, que podem ter um valor social: de pergunta que obriga uma resposta; ordem para executar; desejo; promessa; etc.

A Duval (1995) interessa mais a variação das formas de expressão associadas à operação de predicação do que à operação de elocução. Ou seja, “a variação das formas de expressão mais importante para nosso propósito não é a que está associada ao ato elocutório, mas a que está associada à operação de predicação” (DUVAL, 1995, p. 108). Ressalta-se que, nesta pesquisa de doutorado, do mesmo modo, interessam as formas de predicação e elocução, pois nesta tese se tem em vista a problemática da argumentação no processo educativo em álgebra; mais ainda, o ato de expressar-se oralmente é intrínseco ao processo de ensino-aprendizagem no contexto da sala de aula.

A função de expansão discursiva de um enunciado completo consiste em relatar, descrever, explicar, comentar, argumentar, deduzir, calcular, etc. (DUVAL, 1995). Essas formas de progressão do discurso podem ocorrer de dois modos: lógico ou natural, sendo este último caracterizado pela espontaneidade (DUVAL, 1995).

Além disso, a expansão de enunciado completo pode ser elaborada por substituição ou por acumulação (DUVAL, 1995). A progressão do discurso por substituição ocorre por meio da substituição de uma proposição anterior por novas inferências – é o que acontece em um cálculo, por exemplo (DUVAL, 1995), bem como na dedução. A compreensão do discurso por substituição “[...] requer então que cada vez se perceba a aplicação da regra utilizada, seja explicitamente ou implicitamente” (DUVAL, 1995, p. 114).

Já a progressão do discurso por acumulação ocorre quando características ou informações novas são adicionadas. É o caso de um relato, de uma descrição ou de uma explicação, em que frases são acrescentadas às frases anteriores, e de tabelas ou composição de uma tabela, por exemplo (DUVAL, 1995). Vale lembrar que a argumentação ocorre por acumulação e que a compreensão deste discurso “[...] requer uma apreensão sinóptica de todas as frases e de todas as relações que existem entre elas” (DUVAL, 1995, p. 114).

Na perspectiva de Duval (1995), a diferença entre esses dois modos de expansão de discurso – substituição e acumulação – está na forma como as unidades apofânticas (proposição ou frase) são concebidas: sob a ótica de seu conteúdo ou estatuto.

O conteúdo de uma unidade apofântica refere-se à materialidade dos signos, que permite diferenciar um signo do outro (DUVAL, 1995). Tal materialidade admite “[...] a significação de expressões referenciais e predicativas assim como associações permitidas pela rede semântica da qual provém, ou seu eventual valor lógico de verdade” (DUVAL, 1995, p. 115). O conteúdo de uma unidade apofântica é determinado por seu possível valor lógico de verdade. Além do mais, na expansão de um discurso por acumulação, “[...] o passo de um enunciado a outro depende de seus conteúdos respectivos [...] e [...] se fundamenta exclusivamente nas relações de conteúdo [...]” (DUVAL, 1995, p. 115). Por exemplo, no estabelecimento de um discurso argumentativo, o passo de um enunciado a outro é realizado com base nas relações de seus conteúdos (DUVAL, 1995).

Já o estatuto de uma unidade apofântica “[...] corresponde ao papel que cumpre frente a outro enunciado na organização global de um discurso: premissa, regra, conclusão...” (DUVAL, 1995, p. 115). O estatuto de uma unidade apofântica é determinado por seu valor epistêmico (DUVAL, 1995). Este valor epistêmico depende do contexto teórico ou social em que o discurso é estabelecido: definições, axiomas e teoremas (teórico), ou por normas, opiniões e crenças (social), “[...] que determinam os graus de aceitabilidade de um enunciado por um meio ou por um grupo” (DUVAL, 1995, p. 115). Na expansão de um discurso por substituição, o passo de um enunciado a outro depende do estatuto dos enunciados (DUVAL, 1995).

É pertinente assinalar que, mesmo quando o foco de análise está no discurso argumentativo por acumulação, não se pode deixar de analisar o valor epistêmico dos enunciados verbalizados. Brandt, Moretti e Bassoi (2014) destacam que nem sempre o enunciado verbalizado em uma expansão discursiva por acumulação tem os mesmos valores epistêmicos, ou seja:

Quando a expansão discursiva acontece por acumulação, a evolução do enunciado depende do conteúdo expresso. O estatuto é quase sempre esquecido, pois se imagina que as informações expressadas têm o mesmo valor epistêmico e estão relacionadas ao mesmo assunto (BRANDT; MORETTI; BASSOI, 2014, p. 484).

Tendo em vista a continuidade discursiva de uma unidade apofântica com outra unidade apofântica dada, a expansão discursiva pode ser produzida de diferentes formas: expansão lexical, expansão formal, expansão natural e expansão cognitiva (DUVAL, 1995).

A expansão lexical baseia-se na “[...] recuperação de um mesmo significante, pela identificação homofônica ou homográfica, o que assegura a continuidade e a coesão de um

discurso de uma frase a outra” (DUVAL, 1995, p. 119). Por exemplo, “o pelo do cachorro é preto; vou pelo lado de dentro” (BRANDT, MORETTI, BASSOI, 2014, p. 484).

A expansão formal é caracterizada “[...] pela aplicação de regras de substituição que se baseiam exclusivamente em símbolos que representam variáveis ou proposições, independentes de sua significação” (DUVAL, 1995, p. 120). As demonstrações são exemplos de expansão discursiva do tipo formal (DUVAL, 1995).

A expansão cognitiva é caracterizada “[...] pelo emprego especializado da língua natural” (DUVAL, 1995, p. 120). Neste tipo de discurso, o léxico associativo empregado expressa significações estabelecidas por definições, enunciados resultantes de demonstrações, observações, experiências, descrições e explicações técnicas ou teóricas (DUVAL, 1995). No tocante às demonstrações, a diferença entre a expansão cognitiva e a formal está no emprego de regras de substituição, isto é, na expansão cognitiva, tais regras não se baseiam unicamente em símbolos (DUVAL, 1995).

A expansão natural é caracterizada “[...] pelo emprego comum de uma língua” (DUVAL, 1995, p. 120). Neste tipo de discurso, são utilizados concomitantemente a rede semântica de uma língua natural e os conhecimentos práticos próprios do meio sociocultural dos locutores (DUVAL, 1995) ou “[...] daqueles que produzem o discurso” (BRANDT; MORETTI; BASSOI, 2014, p. 485). Essas diferentes formas de continuidade discursiva têm a ver com a noção de similaridade: similaridade semiótica e similaridade semântica.

A similaridade semiótica baseia-se na continuidade de um enunciado a outro “[...] por repetição dos mesmos signos, das mesmas palavras ou dos mesmos símbolos [...]” (DUVAL, 1995, p. 117). No caso da continuidade de um enunciado na língua natural, a repetição deve basear-se “[...] em sucessões que correspondam a uma unidade referencial, a uma unidade predicativa ou a uma proposição antecedente” (DUVAL, 1995, p. 117).

Já a similaridade semântica não se assenta sobre a repetição de signos, mas baseia-se em expressões diferentes e referencialmente equivalentes, o que possibilita a continuidade

temática (conceitual) (DUVAL, 1995). No seguinte exemplo: “[...] [...]” (DUVAL, 1995, p. 117), as expressões numéricas são diferentes e referencialmente equivalentes, isto é, concernem ao mesmo objeto matemático (número quatro).

Outro exemplo que abrange, além da língua formal, a língua natural: “o produto de dois números é positivo” ou “ ” (BRANDT; MORETTI; BASSOI, 2014, p. 485). Nesse caso, as expressões na língua natural (frase) e língua formal (linguagem simbólica), respectivamente, também são referencialmente equivalentes. Além disso, cabe notar que

expressões referencialmente equivalentes, embora possuam o mesmo significado, não têm o mesmo sentido, o que possibilita a progressão do discurso (DUVAL, 1995):

[...] a invariância referencial entre duas expressões diferentes estabelece uma continuidade temática entre as frases que as contêm, enquanto a diferença de sentido entre as expressões referencialmente equivalentes permite que a segunda frase constitua um progresso em relação à primeira (DUVAL, 1995, p. 117).

As diferentes formas de continuidade discursiva nem sempre bastam para assegurar a continuidade de discurso; é necessário levar em consideração um terceiro enunciado que se confira em similaridade interna ou externa (DUVAL, 1995). A similaridade interna ocorre quando, na passagem de um enunciado inicial a um enunciado expandido, não se recorre a um terceiro enunciado, sendo suficiente o vocabulário empregado para reconhecer a similaridade (semântica ou semiótica) na continuidade dos enunciados (DUVAL, 1995). Já a similaridade externa requer um terceiro enunciado, explícito ou implícito. Este é o caso da expansão dedutiva, que ocorre por meio de regras de substituição ou por aplicação de teoremas ou definições (DUVAL, 1995).

A função de reflexividade consiste em “assinalar o valor, o modo ou o estatuto estabelecido para uma expressão por parte de quem a enuncia” (DUVAL, 1995, p. 89). O autor chama atenção para a diferença, muitas vezes ignorada, entre “[...] o ato de fala realizado e a explicitação linguística do ato de fala realizado” (DUVAL, 1995, p. 122). Nesse sentido, a seguir, enunciados são elucidados e discutidos.

Por exemplo, os seguintes enunciados: “[1] Por um ponto exterior a uma reta dada passa uma e somente uma (reta) paralela”, e [2] “Se admitirá que por um ponto exterior a uma reta dada passa uma e somente uma (reta) paralela” (DUVAL, 1995, p. 122, grifo do autor). Embora envolvam afirmações, as expressões do primeiro enunciado não marcam o seu valor elocutório ou o seu valor epistêmico, como ocorre no segundo enunciado. No segundo enunciado, “[...] os elementos elocutórios estão explicitamente marcados [...] [e] [...] Só o contexto de ocorrência é que permite decidir o valor epistêmico de [...] [1]” (DUVAL, 1995, p. 122). No primeiro enunciado, “[...] o ato de fala não está explicitamente marcado” (DUVAL, 1995, p. 122), ou seja, “[...] o valor do enunciado [1] pode explicitar-se por meio de <<se admitirá que...>> como no enunciado [2], ou por <<é evidente que...>> ou por <<é verdade que...>>” (DUVAL, 1995, p. 123).

No que diz respeito a essa variação de valores epistêmicos, “cada uma destas explicitações dá um valor epistêmico e, em consequência, um sentido diferente ao enunciado [1]” (DUVAL, 1995, p. 123). “Esta variação [de explicitação de valores] é essencial para

compreender o funcionamento do raciocínio da argumentação” (DUVAL, 1995, p. 123). De um ponto de vista cognitivo, o valor epistêmico de uma proposição é fundamental em relação ao valor lógico de verdade de uma proposição (DUVAL, 1995).

Em se tratando de raciocínio argumentativo, Duval (2016), ao ser questionado sobre o papel da argumentação no desenvolvimento do raciocínio matemático, destaca inicialmente que os estudantes não têm interesse em argumentar. Depois, de um ponto de vista didático, o autor chama atenção para a natureza das tarefas, isto é, dos enunciados das tarefas na língua natural. Duval (1990), de um ponto de vista cognitivo, salienta a natureza e conexão dos passos do raciocínio argumentativo.

1.4.3 Pesquisas Relacionadas

No Quadro 16, abaixo, são apresentadas pesquisas que se referem às funções discursivas da língua e/ou as adotam (DUVAL, 1995):

Quadro 16: Pesquisas que mencionam e/ou adotam as funções discursivas da língua

AUTORES/ANO FUNÇÕES DISCURSIVAS OBJETOS DE PESQUISA

Mencionadas/Adotadas

Neres (2010) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva Aprendizagem de operações com números naturais por estudantes do Ensino Fundamental

Tozzeto (2010) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva e Reflexividade Matemática por licenciandos em Pedagogia Saberes docentes discursivos acerca de

Kluppel (2012) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva e Reflexividade Livros didáticos de Matemática do Ensino Fundamental, enfocando conteúdos de Geometria

Dionizio (2013) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva e Reflexividade Trigonometria por professores que atuam na Saberes docentes discursivos acerca de Educação Básica

Cargin (2013) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva e Reflexividade Aprendizagem da Integral de Riemann para funções de uma variável real por estudantes de Engenharia e de Licenciatura em Química

Thiel (2013) Designação, Enunciação, Expansão

Discursiva e Reflexividade Aprendizagem do plano cartesiano por estudantes do Ensino Fundamental Brandt, Moretti e

Bassoi (2014) Referencial, Apofântica, Expansão Discursiva e Reflexividade estudantes da Educação Básica e Superior Resolução de problemas algébricos por

Anjos (2015) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva e Reflexividade Livro Didático de Matemática em Braille e Código Matemático Unificado para a Língua Portuguesa, enfocando a linguagem

matemática

Mossi (2016) Referencial, Apofântica, Expansão

Discursiva e Reflexividade Aprendizagem de funções por licenciandos em Matemática Moretti e Anjos

(2016)

Referencial, Apofântica, Expansão Discursiva e Reflexividade

Livro Didático de Matemática em Braille e Código Matemático Unificado para a Língua

Portuguesa, enfocando a linguagem matemática

Dentre essas pesquisas, duas adotam/enfocam concomitantemente as funções discursivas da língua e a aprendizagem em álgebra: o artigo de Brandt, Moretti e Bassoi (2014) e a dissertação de Mossi (2016). O artigo configura-se em uma pesquisa original dentre aquelas que adotam os pressupostos teóricos de RRS, pois essa pesquisa adota as