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1 PROBLEMATIZAÇÃO DOS REGISTROS DE REPRESENTAÇÃO:

1.2 Pesquisas Relacionadas

1.2.3 Discussões

Para discutir a abordagem experimental de Duval (1988a), bem como as abordagens didáticas de Moretti (2003) e Silva (2008), apoia-se nas ideias de D’Amore (2005). Bruno D’Amore é um italiano especialista em Didática da Matemática reconhecido internacionalmente nessa linha de investigação e mantém conversas e troca de ideias com Raymond Duval. Cabe destacar que, embora algumas ideias de D’Amore (2005) tenham sido consideradas na pesquisa de Mestrado de Maggio (2011), foram concebidas quando se tinha em mente outro propósito: analisar o processo de ensino, exclusivamente.

D’Amore (2005), dentre alguns de seus esclarecimentos em torno da teoria de Raymond Duval, faz a seguinte observação: “[...] Duval não trabalha na observação de uma classe durante semanas, mas comporta-se mais como faz um biólogo ou um médico quando quer entender o funcionamento do cérebro” (D’AMORE, 2005, p 51).

Isso quer dizer que Raymond Duval, enquanto psicólogo de formação e pesquisador na área de Psicologia Cognitiva, tem por objeto de pesquisa o funcionamento do cérebro, em especial, o funcionamento do pensamento matemático, em um sujeito. Outrossim, não foi e

não é intencionalidade dele investigar o processo de ensino-aprendizagem em seu contexto de sala de aula, em um coletivo de estudantes (sujeitos). Ele investiga as condições de aprendizagem de um ponto de vista cognitivo.

D’Amore (2005) faz essa observação ao comentar sobre “[...] a estreita interdependência existente entre noesis e semiosis [...]” (D’AMORE, 2005, p. 60). D’Amore (2005), a partir de Raymond Duval, entende noesis como “aquisição conceitual de um objeto” e semiosis como “representação realizada por meio de signos” (D’AMORE, 2005, p. 58). D’Amore (2005) lembra que Raymond Duval foi o primeiro a afirmar que, “em Matemática, a aquisição conceitual de um objeto passa necessariamente pela aquisição de uma ou mais representações semióticas” (D’AMORE, 2005, p. 58). Segundo D’Amore (2005), Raymond Duval fez essa observação ao apresentar a problemática dos registros nos seus artigos de 1988 (um deles é o de 1988a, que abrange o teste de reconhecimento) e ao buscar uma síntese desses artigos no trabalho de 1993. Como se nota, Duval (1988a; 1993) investigou as condições de aquisição conceitual de um objeto matemático.

De forma específica, D’Amore (2005) faz tal observação ao comentar sobre o papel central das conversões na teoria de Raymond Duval em relação aos tratamentos, que, segundo ele, são considerados decisivos do ponto de vista matemático por outros autores. De acordo com D’Amore (2005), a conversão é central na teoria de Raymond Duval por conta de três motivos:

[1] A conversão esbarra em fenômenos de não-congruência que, de maneira alguma são conceituais (como se nota na seção inicial deste capítulo) [...]. [2] A conversão permite definir variáveis cognitivas independentes, o que torna possível construir observações e experimentações relativamente precisas e delicadas. [...] [3] A conversão, em casos de não congruência, pressupõe uma coordenação dos dois registros de representação mobilizados [...] (D’AMORE, 2005, p. 61).

De forma mais específica ainda, é em torno do segundo motivo que D’Amore (2005) faz a observação supracitada. Nessa ocasião, ele afirma: “é claro que, uma vez validadas [as variáveis cognitivas obtidas a partir da conversão] através de uma pesquisa muito metódica, podem ser, em seguida, utilizadas como variáveis didáticas” (D’AMORE, 2005, p. 61).

Como se nota, Moretti (2003) e Silva (2008) transformam o teste de reconhecimento de Duval (1988a) em objeto de ensino. Empregaram as variáveis cognitivas (variáveis visuais e simbólicas), definidas e utilizadas por Duval (1988a) em sua abordagem experimental acerca do conceito de função afim, como variáveis didáticas em sua proposta para o ensino de funções (quadrática, exponencial, logarítmica e trigonométricas).

Em volta do terceiro motivo, que, por sua vez, toca no aspecto da coordenação de registros de representação semiótica, D’Amore (2005) comenta que tal coordenação não é espontânea/natural do sujeito que apreende, implicando “[...] atividades matemáticas didaticamente interessantes” (D’AMORE, 2005, p. 61). Nessa linha de esclarecimentos, ele acrescenta: “aquilo que se denomina ‘conceitualização’ começa somente quando se coloca em ação, mesmo que apenas num esboço, a coordenação de dois distintos registros de representação” (D’AMORE, 2005, p. 61). Ressalta-se que D’Amore (2005) denomina de conceitualização o processo de construção de conceitos, como dizem outros autores, e aquisição conceitual de objetos, como diz Raymond Duval.

D’Amore (2005) também chama a atenção para a necessidade de pesquisas futuras para a investigação da teoria de Raymond Duval no que diz respeito à originalidade das observações e das atividades de aprendizagem, em vez de investigações baseadas em verificações da teoria (ou em réplicas da pesquisa de 1988a), como se observa no fragmento abaixo:

A teoria dos registros semióticos deve ser avaliada segundo os dados relativos à riqueza, às novidades das observações assim como às novidades das atividades de aprendizagem, que as variáveis cognitivas permitem definir, e não em relação a decisões tomadas a priori sobre o que é Matemática ou decisões baseadas em condições globalizantes não controláveis por meio de metodologias precisas (D’AMORE, 2005, p. 61-62).

Portanto, diante da observação supracitada e dos esclarecimentos de D’Amore (2005), pode-se dizer que Duval (1988a) não observou turmas de estudantes franceses durante um período de tempo; tampouco observou o processo de aquisição conceitual do objeto matemático em questão naquela ocasião (função afim). Cabe destacar que, assim como D’Amore (2005), tem-se ciência de que esse não era e não é o objeto de pesquisa de Raymond Duval. Seu objeto de estudo é o funcionamento do pensamento matemático, e não o processo de conceitualização em Matemática em contexto de ensino-aprendizagem. Seu teste de reconhecimento de 1988a foi aplicado a estudantes franceses após um ensino de funções, sendo que tal investigação lhe permitiu afirmar, em 1993, que a semiosis é condição para a conceitualização.

A seguir, discute-se o processo de conceitualização como um fenômeno próprio do espaço de sala de aula e, assim sendo, como objeto de pesquisa da Educação Matemática e, em particular, da Didática da Matemática, bem como o modo como se concebe tal objeto de estudo nesta tese (epistemologia da aprendizagem/processo/caminho/como).

O processo de conceitualização é um fenômeno intrínseco ao processo de ensino- aprendizagem em Matemática. Aliás, “[...] a compreensão, interpretação e descrição de fenômenos referentes ao ensino e à aprendizagem da matemática, nos diversos níveis de escolaridade, quer seja em sua dimensão teórica ou prática” (PAIS, 2011, p. 10), é objeto de estudo da área de pesquisa educacional denominada de Educação Matemática. Fiz proveito das ideias de Luiz Carlos Pais, brasileiro especialista em Didática da Matemática, para marcar o objeto de pesquisa da área de Educação Matemática, em que a presente tese está inserida.

A conceitualização em Matemática, de maneira mais específica, é objeto de pesquisa da Didática da Matemática (D’AMORE, 2005). A Didática da Matemática, no Brasil, é concebida como uma linha de investigação da Educação Matemática (PAIS, 2011), ou seja:

A didática da matemática é uma das tendências da grande área de educação matemática, cujo objeto de estudo é a elaboração de conceitos e teorias que sejam compatíveis com a especificidade educacional do saber escolar matemático, procurando manter fortes vínculos com a formação de conceitos matemáticos, tanto em nível experimental da prática pedagógica, como no território teórico da pesquisa acadêmica (PAIS, 2011, p. 11).

Assim sendo, o processo de conceitualização não é objeto de pesquisa da Psicologia Cognitiva, por exemplo, que é o campo científico de investigação em que Raymond Duval atua, mas sim da Didática da Matemática. Nesse sentido, vale marcar duas afirmações de D’Amore (2005): “[1] Como fazem outros autores, poderíamos chamar uma tal construção (de conceitos) de conceitualização, perguntando-nos o que poderia ser e como poderia ocorrer. [...] O que é? ou Como ocorre a conceitualização” (D’AMORE, 2005, p. 47); e “[2] A ausência da construção conceitual, o fato de não se chegar à noesis, é um fenômeno muito estudado em Didática da Matemática [...]” (D’AMORE, 2005, p. 63).

Como, então, investigar o modo como ocorre a conceitualização em Matemática? Nessa perspectiva, apontam-se os dois modos de conceber a pesquisa em Didática da Matemática, a saber: “Didática A” e “Didática B”, segundo D’Amore (2005).

A Didática A é vista como “[...] divulgação das ideias [...] fixando a atenção na fase do ensino” (D’AMORE, 2005, p. 37). O papel do especialista em Didática A

[...] está totalmente voltado para a transformação de um discurso especializado (e, portanto, complexo, porque fazendo uso de uma linguagem técnica não-natural) em um discurso compreensível e mais de acordo com a natureza do aluno” (D’AMORE, 2005, p. 37).

Além do mais, “o especialista em didática A é sensível ao aluno, colocando-o ao centro de sua atenção; entretanto, a sua ação didática não é sobre o aluno, mas sobre o assunto que está em jogo”. (D’AMORE, 2005, p. 37).

Ainda conforme D’Amore (2005), “em síntese, fazem parte da didática do tipo A todos os estudos e toda a elaboração de instrumentos (concretos ou não) que podem melhorar o ensino de Matemática [...]” (D’AMORE, 2005, p. 38). Melhorar o ensino em que sentido? No sentido de que “a didática A pode contribuir na resolução de problemas de grande importância como: melhorar a imagem da Matemática, melhorar a imagem de si próprio ao fazer Matemática, melhorar a atenção, ativar o interesse e a motivação” (D’AMORE, 2005, p. 37). Ele cita instrumentos didáticos elaborados nessa perspectiva: história da matemática, blocos lógicos, ábacos, barras de Cuisinaire, máquina-operações e linguagem das flechas.

Porém, D’Amore (2005) aponta alguns limites da Didática A. Para ele, “um dos principais problemas didáticos [...] é o de transferência cognitiva” (D’AMORE, 2005, p. 40). Tal fenômeno, segundo ele, é correlacionado ao direcionamento dado nas e pelas pesquisas: elaboração de instrumentos didáticos e produção de ambientes de trabalho artificiais, como se nota nas palavras do próprio autor na ocasião em que ele esclarece o fenômeno de transferência cognitiva.

Muitos dos que criaram instrumentos [instrumentos didáticos] como os acima referidos produziram ambientes de trabalho especiais, fechados em si mesmos, que chamarei de ambientes artificiais, neles potencializam-se os aspectos matemáticos das próprias atividades, evidenciando-os e isolando-os. Trata-se, porém, de atividades, por assim dizer, com fins em si mesmas, isto é, “endógenas”. A aposta pedagógica subjacente parece ser a seguinte: a motivação e o interesse, que a nova atividade provocou no aluno, são tais que a aprendizagem do conceito “em jogo” será não epidérmica, mas profunda. Dessa maneira, quando o aluno se encontra diante de um problema do mesmo tipo, mas num ambiente diferente, transferirá o saber de uma situação para outra, de um modo natural, implícito, espontâneo, sem exigências cognitivas específicas para a nova situação de aprendizagem (D’AMORE, 2005, p. 40).

D’Amore (2005, p. 41) alerta que “[...] as coisas não ocorrem sempre dessa forma [...] não é possível transferir o conhecimento, a não ser em casos particulares”. Acerca disso, ele afirma: “esse limite redimensionou os estudos realizados no âmbito da Didática A” (D’AMORE, 2005, p. 41). Hoje em dia, as pesquisas em Didática A continuam, mas são “[...] acompanhadas de uma pesquisa empírica séria, bem fundamentada, cada vez mais especializada” (D’AMORE, 2005, p. 41). Nesse sentido, ele questiona a impossibilidade de ausência de pesquisa empírica, como se nota nas palavras do próprio autor: “na ausência de uma verdadeira pesquisa empírica, qual a certeza que podemos ter sobre o fato de o uso de um instrumento qualquer, dentre os descritos na tipologia A, tornar de fato os alunos mais capazes em alguma coisa que seja meramente específica?” (D’AMORE, 2005, p. 42).

Nessa conjuntura, passa-se da pesquisa em Didática A para a pesquisa em Didática B, conforme D’Amore (2005), ou seja:

[...] realizando provas empíricas com dispositivos experimentais adequados e bem estudados, a respeito dos resultados cognitivos obtidos com atividades do tipo A, então se passa à pesquisa considerada experimental, entrando no campo da epistemologia da aprendizagem, ou seja, chega-se ao ponto que diferencia a tipologia B (D’AMORE, 2005, p. 43).

A Didática B, então, de acordo com D’Amore (2005, p. 33), é vista “[...] como pesquisa empírica, fixando a atenção na fase da aprendizagem”. É denominada pelo autor como epistemologia da aprendizagem, isto é, o processo de aprendizagem é foco de atenção na pesquisa em Didática B.

Diante desses dois modos de conceber a Didática da Matemática, pode-se dizer que as pesquisas de Moretti (2003) e Silva (2008) se enquadram no contexto da Didática A.

Moretti (2003) propôs a transformação geométrica de translação como um recurso para obter retas e parábolas. Quer dizer, ele sugeriu a translação com vistas à potencialização do procedimento de interpretação global de propriedades figurais preconizado por Duval (1988a), bem como à economia do tratamento gráfico, deixando de lado o procedimento ponto a ponto. Além disso, ele descreveu as propriedades figurais que são matematicamente pertinentes para a interpretação global das parábolas: vértice da parábola e posição da parábola sobre o eixo X, pois, segundo ele, são menos evidentes que a posição da parábola sobre o eixo Y.

Silva (2008), seguindo as sugestões de Moretti (2003), combinou as transformações geométricas do tipo translação e simetria (axial e linear) para interpretação global de propriedades figurais de gráficos de funções trigonométricas (seno e cosseno), exponencial e logarítmica. Também descreveu as propriedades figurais de senoides e cossenoides, a saber: amplitude, período e simetria; de funções exponenciais: simetria e posição da curva sobre o eixo Y; e de funções logarítmicas: simetria e posição da curva sobre o eixo X.

Como se nota, ambos – Moretti (2003) e Silva (2003) – exploraram o ensino de funções, fixando a atenção na fase do ensino, e suas ações didáticas são sobre o assunto que está em jogo: funções (D’AMORE, 2005). Eles propuseram as transformações geométricas de translação e simetria como recursos para o esboço de gráficos na perspectiva indicada por Duval (1988a). Porém, o trabalho de ambos os autores não é acompanhado de uma pesquisa empírica e não fixou a fase da aprendizagem (D’AMORE, 2005). Nenhuma das duas pesquisas foi realizada no âmbito experimental da prática pedagógica (PAIS, 2011).

Se ambas as pesquisas – Moretti (2003) e Silva (2008) – fossem realizadas no âmbito experimental da prática pedagógica, caberiam os seguintes questionamentos, do ponto de vista didático: como analisar o processo de conceitualização em situações de ensino-aprendizagem?

Nessa perspectiva, o teste de reconhecimento de Duval (1988a), em sua forma original, seria apropriado? Deve-se lembrar que a Didática da Matemática “[...] visa compreender as condições de produção, registro e comunicação do conteúdo escolar [conteúdo acadêmico] da matemática e suas consequências didáticas” (PAIS, 2011, p. 11).

Assim, poder-se-ia dizer que o teste de reconhecimento de Duval (1988a), em sua forma original, é um instrumento de produção e de análise insuficiente em uma pesquisa de cunho didático. No teste de reconhecimento, “toda atividade de cálculo deveria ser excluída para estudar o reconhecimento dos objetos representados, pois o trabalho requerido era a escolha entre diferentes escritas algébricas” (DUVAL, 1988a, p. 316), sendo que:

Este tipo de trabalho apresenta também a vantagem de controlar o tempo necessário para que um aluno “tenha sucesso”, porque os sucessos não têm o mesmo significado se eles são obtidos quase que espontaneamente ou, se ao contrário, foram necessários vários minutos por item (DUVAL, 2012, p. 316).

Ou seja, o teste de reconhecimento, sob um enfoque cognitivo, visa à identificação imediata de escritas algébricas correspondentes a retas dadas inicialmente. Para corroborar tal afirmação, salienta-se que, “de um ponto de vista cognitivo, o reconhecimento implica a espontaneidade das conversões, qualquer que seja o sentido nos quais elas devam ser efetuadas” (DUVAL, 2012, p. 319). Quer dizer, cognitivamente, interessam no teste o tempo de reconhecimento da resposta e a resposta propriamente dita.

Portanto, pode-se dizer que o teste de reconhecimento em sua forma original não leva em conta o processo de produção realizado pelo sujeito para chegar à resposta ou ao reconhecimento da resposta. O teste leva em consideração como um sujeito (estudante) elabora o conceito matemático (função afim) no plano individual, mas não como isso ocorre coletivamente em processo de ensinar e apreender, pois é isso que acontece em sala de aula, sendo a sala de aula um espaço de interações entre professor e estudantes e entre estudantes e estudantes, bem como de intervenções intencionais do professor. Isso indica que o teste pode não se configurar em um instrumento de produção e/ou de análise de dados adequado para pesquisas em Educação Matemática que tenham por objeto de estudo processos de ensino- aprendizagem em sala de aula.

1.3 Práticas de Pesquisa e Ensino da Autora sob a ótica dos Registros de Representação