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Armários De Concreto Não Barram Poderes Microfísicos

6 URSOS EM TERRAS CAPIXABAS

6.1.2 Armários De Concreto Não Barram Poderes Microfísicos

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Com exceção do participante que se assumiu na infância, todos os outros interioranos visualizaram no deslocamento para a capital uma forma de se desvencilharem da vigilância presente naquelas sociedades, o que facilitaria o processo de “saída do armário”,

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“Quando resolvi que eu tinha uma coisa pra resolver que é interna, eu meio que bolei uma tática: eu fui me afastando das pessoas aos poucos, para que quando eu tivesse que... que quando descobrissem, elas não teriam que se intrometer. E de certa forma eu conseguiria. Se eles tivessem mais longe, eu conseguiria sair mais fácil. Até nas relações sexuais mesmo. Eu não sei como as pessoas lá no interior ainda conseguem viver (risos). Você é limitado pra tudo” (URSO 1).

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Foi interessante notar na narrativa destes participantes uma sensação anterior de “sufocamento” e uma consequente sensação de alívio quando mencionaram a mudança para a região da capital. Os deslocamentos ocorreram por três motivações principais: (a) por relacionamentos com outros homens (URSO 1 e 14); (b) para estudo no ensino médio, pré-vestibular ou ensino superior (URSOS 3, 5 e 10); (c) por deslocamento da família por motivos de trabalho (URSOS 7, 8, 13 e 15). O paulatino contato com sites de relacionamento e com comunidades gays na

internet também contribuiu para os deslocamentos, pois já observaram materializadas práticas homoafetivas nestes espaços. Práticas estas que, no interior, assumiam status de perigosas, até mesmo “contagiosas”. Potencializam- se, então, na capital, as possibilidades de subjetivação como homossexuais,

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“Só na minha escola tinham mais pessoas do que na minha cidade! Então, você via rapazes que, assim, eu não conversei com eles, mas tinham alguns assumidamente gays. Tinham os grupos na internet e você via comentários de quem foi à baladas GLS. Aí ia direto pro Google pesquisar esses locais. Olha, isso existe, wow!!!! Aí comecei a procurar e descobrir outras comunidades no Facebook, pessoas nem tão distantes... e vai como uma bola de neve” (URSO 5).

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A mudança para a Grande Vitória não contribuiu somente para a potencialização das identidades que imaginavam para si, mas também para colocarem isso “em prática”, para que namorassem, transassem, “saíssem à noite”, ou seja, para um desprendimento do uso de seus corpos,

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“Eu vim pra cá pra fazer faculdade e minha mãe perdeu aquele controle sobre mim. Eu completamente deslumbrei por um tempo, saindo de uma cidade que não tinha nada. O máximo que eu fazia era sair sábado pra lanchar com os amigos. E dez da noite estava em casa. Aqui, que nem é tanto cidade grande assim, eu saí e curti. Eu fiz muita bobeira nesse tempo. É que o que dizem: muitas das coisas que você não faz durante sua vida, você faz na faculdade. Eu fiz muuuuita coisa” (URSO 10).

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Porém, a tática de deslocamento espacial não fez com que seus problemas “internos” fossem completamente sanados. Até porque estamos lidando com saberes heteronormativos e relações de forças que operam por todo corpo social. Quando falamos de dispositivos de poder (FOUCAULT, 1995), estamos lidando com inteligibilidades que buscam se estabelecer na ação de todos os sujeitos e grupos sociais. Apesar de alguns participantes identificarem um afrouxamento de violências mais visíveis, a sensação de constante vigilância é ainda presente na capital:

“Não é que aqui em Vitória não exista isso, até porque as pessoas brincam: Vitorinha. É um ovinho, mas não dá pra comparar com outras capitais como Belo Horizonte, Rio e São Paulo. Aqui, a gente tem que trazer esse relacionamento para locais que sejam seguros ou que não exponham a gente de uma maneira degradativa. Ou que tragam uma pejoratividade pra nossa atividade. Eu posso estar tomando um café e uma pessoa pode olhar aquilo como diferente” (URSO 3).

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“Até em festas gays, em boates gays, eu não tenho aquela necessidade de ficar abraçando, beijando e namorando, essa coisa toda não. Até porque nessa vida de casado, então, já estou satisfeito em casa. Tenho muita liberdade, passo a maior parte do tempo em casa. Em casa dá pra se beijar, pra se abraçar, dá pra fazer carinho. E quando você sai de casa, o foco já é outro” (URSO 1).

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Como este processo ocorreu para os que nasceram e cresceram na região metropolitana de Vitória? Apesar da maior diversidade característica dos centros urbanos, do maior acesso aos meios de comunicação como internet, cinema, bibliotecas e até chats de relacionamento via telefone (URSO 4), encontramos similaridades entre as narrativas pelos participantes da capital. Inclusive, observou-se que entre os “urbanos” a “sexualização tardia” (URSOS 2, 4, 5, 9, 16, 17) ocorreu com maior intensidade. Esta prática apresentada pelos participantes se refere ao atraso na “iniciação” sexual em relação aos heteros de mesma idade, ou seja, do primeiro beijo, transa e namoro.

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Conforme dito, os períodos de término do ensino médio, de cursinho pré-vestibular e início da faculdade foram os momentos em que os participantes passaram a sair a locais LGBT, a namorar, a transar com outros homens, e a construir círculos de amizades com “próximos”: “no cursinho e com a entrada na universidade, fui fazendo um ciclo de amigos bem friendly. Ou eram gays ou que conviviam com gays. E comecei a me cercar de pessoas que, no momento de me assumir, não faria diferença alguma” (URSO 2); “[...] era muito mais natural e fácil pra mim abrir isso pros gays do que pros heteros, digamos, regulares” (URSO 6). Observa-se nos discursos destes dois participantes que cresceram em Vitória (URSOS 2 e 6) que também policiavam

seus gestos, que também adotavam táticas de não manifestarem suas sexualidades, até o momento em que passaram a compor “outros meios”.

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A construção de círculos de amizades gays/friendly não está dissociada da inserção em espaços nos quais havia maior visibilidade e materialidade de práticas homoafetivas, principalmente nas faculdades e nas universidades que, segundo Trevisan (2000), desde a década de 1970 a temática LGBT vem sendo incluída nos movimentos estudantis. Porém, não estamos lidando com percursos lineares de reclusão e isolamento para a “saída do armário” na vida universitária. Para 4 (quatro) dos entrevistados, o percurso de subjetivação como homossexuais envolveu também práticas heterossexuais, ou seja, eles se relacionaram “carnalmente” com mulheres. As motivações principais foram por dúvidas ou por necessidade de se enquadrarem na “normalidade”, sendo que somente um deles se assume como bissexual (URSO 6),

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“Na verdade, a minha sexualidade foi muito assim. Ela sempre ficou muito em segundo plano na minha vida. Durante toda a adolescência eu me vi tendo desejo por outros homens, desde criança. Eu até brinco com esse assunto, mas a primeira vez que senti tesão por uma pessoa foi na novela Vale-tudo, com o Carlos Alberto Richelli de sunga (risos). Eu tinha 9 anos de idade. Eu achei isso estranho. E isso foi florescendo durante minha adolescência. E na adolescência eu também tinha vontade de ficar com mulher, aí eu suprimia isso e não tinha também coragem de me aproximar de homens, pois eu achava isso muito estranho. Eu não sabia nem por onde começar isso, nem tinha ideia. Minha primeira relação sexual foi tardia. Foi com mulher... mas foi aos 21 anos de idade, quando eu resolvi investir nisso. Fiz o ato sexual inteiro, teve gozo, mas não era a minha praia. E a partir daí eu comecei a descobrir alguns caminhos pra poder exercitar a minha sexualidade. A partir daí foi tudo muito natural pra mim” (URSO 4).

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Para os que “forçaram” um enquadramento dentro da “normalidade”, o relacionamento sexual com mulheres compõe o esquema corpóreo de atitudes e de gestos corporais masculinos que usualmente são adotados para a identificação de heterossexuais,

“Meus amigos desses de faculdade, de escola, da cidade, esses até então eu ainda tenho uma .... uma... como diz assim, uma posição heterossexual, na qual eu comportava de uma maneira estabelecida na sociedade hoje, né? Frequentando os lugares convencionais e fazendo as atividades convencionais. Inclusive já namorei com mulheres. Já tive relações sexuais com mulheres, né? Não por uma só vez, por várias vezes. E com o tempo a gente vai entendendo como a coisa vai acontecendo e você vai estreitando o caminho, né?” (URSO 3).

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Observa-se a reiteração dos efeitos ficcionais da matriz de heterossexualidade compulsória por meio de normas de gênero (BUTLER, 2010). É também recorrente a replicação de termos que classificam o homossexual como um homem afeminado, por exemplo, no grande uso dos termos: bicha, bichinha, viado. Além da extensa conversão de palavras que gramaticalmente possuem artigo masculino para o feminino, fato expressado na canção da Legião Urbana abaixo:

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Eu canto em português errado

Acho que o imperfeito não participa do passado Troco as pessoas

Troco os pronomes (LEGIÃO URBANA, 1989)

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Vale destacar que a efeminação dos termos poucas vezes é trazida com uma valoração positiva, muitas vezes cômica. Então, não importa se os armários são de “madeira”, de “concreto”, no interior ou na cidade, o tipo de saber que dá mais sustentáculo às práticas de identificações de sexualidades, sejam elas para desqualificar sujeitos “desviantes” ou para uma identificação inicial com algum esquema social que se aproxime de demandas pessoais, é um saber que envolve uma construção de gênero.

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Nesse sentido, buscamos exemplificar o que Rios (2007) discute como a grande dificuldade de se distinguir sexualidades com base em recursos visuais. Observa-se que as relações de forças que oprimem os “desvios” da normalidade são acionadas em múltiplos espaços, por múltiplos agentes: quando homens apresentam algo que foi construído como sendo exclusivo de “mulheres”, ou quando “saem do armário”. No último caso, muitas vezes, este sujeito poderia automaticamente estar acionando relações de força, violências, legitimadas para tais “desvios”.

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Porém, em muitos casos, as pessoas adotam táticas de ocultarem suas sexualidades ou de optarem pelas normas heterossexuais (SOUZA; GARCIA, 2010). E se homens homossexuais não apresentarem gestos, vozes e vestimentas efeminados, nem “se assumirem”, como se dariam suas classificações? Realizando testes? Requisitando alianças? Olhares dissimulados para mulheres na rua? Exibindo fotos das namoradas? E se este homem de fato trouxer indícios de “efeminações” e “for” heterossexual?

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Observamos que práticas de gênero se constituem nas questões de sexualidade dos participantes, principalmente no policiamento para que seus corpos não se apresentem de forma “efeminada”, o que levaria a indícios de homossexualidade por outros. Isso leva a táticas de reclusão e muitas vezes de “forçarem” relações heteroafetivas para que se mantenham na normalidade. Observamos também que sexualidades passam a ser “assuntos do lar”, questões de família, para que não caiam na “boca do povo”. Diante disso, quando focamos no espaço familiar, que saberes e relações de força se encontram articulados quando o tema passa a ser a sexualidade dos participantes?

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