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6 URSOS EM TERRAS CAPIXABAS

6.1.4 Corpos Ao Trabalho

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Outra importante rede de saber-poder que atua na objetivação de corpos e na subjetivação do sujeito contemporâneo é o trabalho (CARRIERI; SOUZA, 2010). Conforme já apresentado, os participantes não tiveram que trabalhar durante o percurso escolar normal. Mas e quando chega a idade em que passam a operar os investimentos políticos que os forçam ao trabalho formal? Sobre este aspecto, no período em que foram realizadas as entrevistas, entre os participantes da pesquisa:

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-3 (três) eram graduandos das áreas biomédica e exatas, e não exerciam trabalho formal;

-3 (três) eram graduandos na área de comunicação social, artes e gastronomia, e exerciam trabalho formal;

-2 (dois) interromperam ensino superior nas áreas de ciências políticas e artes, mas exerciam trabalho formal;

-5 (cinco) trabalhavam na área de educação; -3 (três) trabalhavam na área de artes e design;

-3 (três) tinham formação na área de exatas, humanas e comunicação social, mas se encontravam desempregados.

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No que tange ao dispositivo do trabalho, que normas operam e que saberes são articulados quando o tema é a sexualidade dos trabalhadores? Medeiros (2007) expõe grande parte dos contextos de trabalho contemporâneos como marcadamente heternormativos, o que leva com que muitos homossexuais tenham dificuldade de se assumirem para os colegas. Como consequência, é expressiva a adoção de táticas de reclusão, de calarem suas sexualidades e de policiarem seus gestos e atitudes a fim de evitarem possíveis atos discriminatórios (MEDEIROS, 2007): “Eu não conto. Durante um tempo o que fazia no trabalho era não fazer amizade com ninguém. Pra não dar liberdade pra ninguém perguntar nada” (URSO14).

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A constante incitação a se posicionarem no contexto de trabalho, a falarem suas “verdades”, a se assumirem sexualmente nas diversas ocupações foi relatada por 7 (sete) dos pesquisados: “[...] depois que eu vim pra cá, nos dois lugares que eu trabalhei, já de cara, as pessoas são muito curiosas. Elas perguntam onde você mora, com quem você mora” (URSO 1). Isso faz com que em alguns casos os trabalhadores vigiem seus corpos, gestos, comportamentos e afetividades com os colegas e próximos, para que não passem indícios de afeminação ou de que se encontram em relacionamentos homossexuais,

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“Estava fazendo um serviço na escola que eu trabalho. Ele foi me levar de carro. Aí eu pedi se ele podia subir em uma sala que tinha um plotter. Eu ia imprimir um cartaz. Dias depois surgiu um assunto que eu levei um caso no trabalho. Já cortei de cara” (URSO 1).

É interessante notar que um dos graduandos também informou que no ensino superior toma cuidados semelhantes, ou seja, também na etapa de formação acadêmica há o receio de que a homossexualidade venha “contaminar” seu futuro profissional.

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“Eu não falo, né? Porque eu acho que isso é meu. Infelizmente, ainda tem muito preconceito hoje em dia. Então, eu prezo muito meu futuro. Eu serei um profissional e eu não quero que alguma pessoa me julgue como um profissional ruim pela opção sexual. E o que eu já ouvi: nossa, fulano é um profissional tão bom, pena que é gay. Não é uma coisa que eu queira ser julgado por isso. Então, eu procuro não me expor. E, assim, eu não sou o mais másculo da turma, não chego todo homão, assim. Então, quem não tem certeza desconfia, no mínimo” (URSO 5).

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Observa-se que Urso 5 apresenta alguns indícios de efeminação, mas os reprime na faculdade para que não sejam utilizados por outros na sua classificação como homossexual e a consequente pejoratividade no trabalho. Outro tema que se mostrou recorrente é o da concepção do trabalho como um espaço-tempo em que a pessoalidade e a afetividade devem ser isoladas,

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“Existem algumas pessoas que sabem.... mas elas também não sabem oficialmente, assim. Mas naturalmente eu não tenho muito trejeitos, não tenho muita demonstração. Então, os que sabem, sabem porque de alguma forma pescaram no ar. Não abro pra ninguém, mas não é nem por uma questão de segredo. Puramente por eu achar que não é assim, não acrescenta, nem diminui em nada minha relação profissional. E como no trabalho eu só tenho relação profissional e não amizade, então não importa” (URSO 6).

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Urso 6 expõe o ambiente do trabalho como de não “demonstração” de alguns trejeitos “femininos”. A dificuldade de rompimento com o modelo burocrático nas empresas (DELLAGNELO; MACHADO-DA-SILVA, 2000) e a consequente construção imagética de espaços que se apresentariam como neutros e desprovidos de qualquer singularização (SOUZA; GARCIA, 2010) não impedem a circulação de forças e violências heteronormativas e dos consequentes modos “corretos” (masculinos) de como se portar e dispor os corpos. Nesse sentido, o policiamento heteronormativo

pode assumir uma ficção de naturalidade e seriedade, que os sujeitos regram para que nada possa ser “pescado no ar” (URSO 6).

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“No serviço, por ser um ambiente mais talvez sério ... eu não tenho intimidade com meus patrões. Eu fico lá com mais dois patrões. Aí não vou chegar pra eles e dizer: sou gay, sacou? Assim, por ser um ambiente sério, eu não falo. Mas assim, talvez eles desconfiam. Talvez eu tenha dado alguma pinta por lá, não sei. Bom, mas da minha boca não. Nem deixo rastros para eles desconfiarem. Só tendo a ficar na minha. Acho que tem que ter alguma coisa particular em alguns pontos” (URSO 11).

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E os supostos ambientes desprovidos de singularizações apresentam normas cada vez mais acirradas de apresentação estética dentro da normalidade heterossexual e do corpo “saudável”,

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“A gente demonstrou em algum momento um affair, um abraço, um beijo. Aí fui entregar currículo na Riachuelo. Nisso, tinha uma amiga nossa atrás de mim e ela disse que não entregaram meu currículo. Isso, porque ela disse que estavam rindo de mim e do meu ex. Aí eu cheguei e perguntei por que ela estava rindo. Será por que eu era gordo, sabe?” (URSO 11).

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Temos que levar em conta os espaços nos quais os trabalhadores estão inseridos e quão forte a ficção de gênero oprime suas práticas, pois 9 (nove) dos entrevistados adotam uma postura de esconderem suas sexualidades até o momento em que são diretamente questionados acerca delas. Entre os trabalhadores das áreas de educação, comunicação social, artes e humanas, a maior presença de colegas assumidos como gays parece causar menor ansiedade nas relações de trabalho quando o assunto é a sexualidade: “Está implícito que sou gay. É um dado, todo mundo sempre soube. Eu nunca precisei ter que dizer. Nem nos meus empregos anteriores. Pra mim sempre foi um dado” (URSO 2). “Em se tratando dessa área é mais fácil. Eu tenho colegas de trabalho que são heteros, mas a grande maioria é gay” (URSO 15). Em alguns casos, a efeminação chega a ser um requisito de trabalho, sendo há um policiamento “invertido”, para que não se apresentem de forma muito “masculina”,

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“Vamos dizer, assim, eu sou um pouco afetado, eu sei que eu sou. Quando estou trabalhando sou mais ainda, pois trabalho com essa coisa de estética. Quem trabalha com estética é mais afetado. Eu acabo usando essa estratégia dependendo do cliente. Dependendo do cliente, eu não uso de jeito nenhum. Então... na verdade, quando eu vejo que é mulher e gosta daquela coisa viado, eu dou umas patinadas mesmo pra agradar e elas patinam junto. Mas elas falam: esse homem grandão, só sei que você é gay quando você abre a boca. Eu tenho essa coisa do grandão, do alto, eu tenho que tomar cuidado com essa fisionomia. Eu não percebo que tenho esse semblante de bravo. Eu trabalho muito, principalmente quando estou trabalhando, para tentar não carrancar. É uma coisa natural minha. Eu sou marrento, ao menos passo essa impressão” (URSO 18).

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Observou-se também que, no trabalho, os sujeitos tendem a formar grupos de “próximos” no sentido que a identidade sexual seria um fator de formação de grupos informais: “Eu acho que eles sabiam, mas eu nunca cheguei a comentar isso com eles. Eles devem ter imaginado. Juntavam os grupos dos viados da empresa, todo mundo junto pra bater papo e fumar (risos)” (URSO 17).

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Para os que trabalham em áreas consideradas mais heteronormativas, o policiamento dos gestos corporais efeminados foi descrito como mais intenso, o que fez com que dois dos participantes adotassem uma tática de intimidação,

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“No trabalho, hoje, eu tenho passado um pouco de problema quanto a isso, porque a empresa em que eu trabalho, no prédio administrativo, é uma empresa de peão, basicamente. Nem tanto no nível de escolaridade, mas de instrução baixa quanto a isso. Eu tenho passado muita dificuldade. A única forma que tem sido é impor. Impor o direito de me respeitarem” (URSO10).

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“[...] antes que comece qualquer tipo de conversa: sim, eu sou gay. Eu acho que é uma maneira de intimidar a pessoa e mostrar a verdade. A onda é essa. Qualquer tipo

de pensamento da pessoa para por aí, aí a conversa é outra, eu não crio um terreno pra ter conversa de qualquer outra coisa” (URSO 4).

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Outros dois entrevistados informaram que, apesar de apresentarem indícios de efeminação, não tiveram problemas mesmo em trabalhos muito caracterizados por serem “neutros”: “[...] foi super normal, o tratamento no trabalho continuou normal. Nada mudou. Mas tomo cuidado porque tem muito velhinho na minha sala” (URSO16); “[…] Ah não, hoje em dia, hoje em dia o mundo é gay, né? Então, eles me recebem de braços abertos e adoram brincadeiras. Mas não pode ser demais” (URSO7).

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Quando o assunto é o trabalho, portanto, a heteronormatividade é reiterada também a partir de inteligibilidades de gênero captadas nos corpos dos participantes, o que os leva a policiarem seus corpos ou a adotarem táticas de intimidação. Nesse sentido, podemos identificar a operação da matriz de heterossexualidade compulsória, que estabelece uma relação de corpos sexuados com gêneros culturais e é composta por discursos que visam limitar as possibilidades de materialização de diferentes tipos de sujeitos e corpos por meio de identidades opressivas (BUTLER, 2010; FOUCAULT, 1997c). Porém, vale retomar a pergunta anteriormente colocada por Urso 11: “Será por que eu era gordo, sabe?”. Será que estamos lidando somente com corpos “sexuados” e “genderizados”? Ou há outros esquemas que se articulam com estes? No próximo tópico o debate está centrado no tema da saúde.

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