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CORPOS SOCIAIS, HISTÓRICOS E POLÍTICOS EM ORGANIZAÇÕES:

3 A “PRESENÇA AUSÊNCIA” DOS CORPOS NO MAINSTREAM DOS EOS E

3.3 CORPOS SOCIAIS, HISTÓRICOS E POLÍTICOS EM ORGANIZAÇÕES:

FOUCAULT

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Conforme Dreyfus e Rabinow (1995), Foucault foi influenciado pelo pensamento dos fenomenólogos existencialistas, com destaque para Heidegger e Merleau-Ponty. Foucault demonstrava profundo respeito por estas abordagens, pois "comunicam o espaço do corpo com o tempo da cultura, as determinações da natureza com o peso da história” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 36). Porém, apresenta críticas a Heidegger e Merleau-Ponty no que intitula, respectivamente, por analítica da finitude e analítica do vivido (FOUCAULT, 1999). Tal crítica parte dos “duplos” que delas surgiram: o empírico-transcendental; o cogito-impensado; o recuo-retorno à origem.

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Dreyfus e Rabinow (1995, p.45) discutem que, para Foucault, estes duplos presentes em qualquer estágio das ciências humanas, refletem a “repetição do positivo no fundamental”, em estratégias de redução, clarificação e interpretação que tendem a se autodestruir. Uma noção de homem baseada no duplo empírico-transcendental não se dá “na transparência imediata e soberana de um Cogito”, “tampouco pode ele residir na inércia objetiva daquilo que, por direito, não acede e jamais acederá à consciência de si” (FOUCAULT, 1999, p.445). Esse paradoxo sustenta a concepção de homem, a seguir: (a) como um fato, dentre outros fatos, a ser estudado empiricamente e como condição transcendental da possibilidade de conhecimento; (b) como cogito potencialmente lúcido, fonte de toda inteligibilidade, mas envolto do impensado; e (c) como fonte e “produto de uma longa história cujo início que nunca poderá alcançar” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.34). Foucault (1999), portanto, discute que a analítica da finitude abriu espaço para um debate inconsistente e paradoxal que consiste, de um lado, da afirmação positiva da finitude e, de outro, da negação total desta finitude como uma limitação fundamental do homem. Para Foucault (1999), esta estratégia não é adequada, pois promove um eterno retorno ao passado em busca do mistério essencial, das fontes de nossa cultura, e não nos processos que constituíram nossa compreensão acerca delas.

Quanto à analítica do vivido, a fenomenologia existencial presente na obra de Merleau-Ponty, Dreyfus e Rabinow (1995) discutem que Foucault se posiciona de forma mais favorável, pois esta contesta radicalmente o positivismo e a escatologia, ao tentar reestabelecer o transcendental em relação a um discurso de verdade que foi reduzido ao empírico, assim como questiona a profecia da integralidade do homem em relação à experiência. Porém, Foucault (1999) discute que esta pretensão não foi concretizada, pois ainda está ligada ao discurso empírico-antropológico. Ou seja, apesar de a fenomenologia existencialista trazer a importância do corpo, da sexualidade e do mundo percebido para o campo acadêmico, o Cogito permaneceu central nessa perspectiva, sendo que o duplo cogito-impensado traria uma oscilação infinita nunca superada pela racionalidade da ciência, nem pelo discurso de um indivíduo.

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A forma encontrada por Foucault (2003) para superar o discurso antropológico se deu a partir da analítica do poder, tendo em vista os processos de objetivação e subjetivação que envolvem construções e articulações presentes em todo o corpo social, ou seja, a construção da vida que se dá nos corpos, com a atuação dos corpos, mas também em processo além dos corpos, ou seja, nas redes de poder:

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Gostaria de observar a maneira como diferentes mecanismos de poder funcionam em nossa sociedade, entre nós, no interior e fora de nós. Gostaria de saber de que maneira nossos corpos, nossas condutas do dia-a-dia, nossos comportamentos sexuais, nosso desejo, nossos discursos científicos e teóricos se ligam a muitos sistemas de poder que são, eles próprios, ligados entre si (FOUCAULT, 2003, p. 258).

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Nesse sentido, Cardoso Jr. (2011) ressalta que, nos estudos genealógicos foucaultianos, o poder constitui a realidade por meio de relações microfísicas, cuja materialidade é atestada também pelo corpo. As relações de poder são móveis e se apresentam em diferentes formas, em situações nas quais cada um procura dirigir a conduta de outro, “ao que os outros tentam responder não deixando sua conduta ser determinada ou determinando em troca a conduta dos outros” (FOUCAULT, 2004, p.287). São, portanto, jogos estratégicos de liberdade, sendo que os sujeitos “livres” devem agir, escolher, em práticas que sofrem limitações, sempre em relação com saberes e esquemas inteligíveis.

Foucault (2004) discute que, em uma sociedade como a nossa, na qual se complexificam e densificam as regras de produção de verdades, as hegemonias tendem se tornar menos numerosas, pois os processos de organização vão se assumindo cada vez mais gerais e visam englobar mais particularidades, ou seja, é cada vez maior o desejo de se normalizar e regularizar a conduta das pessoas “livres”.

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Assim, as relações de poder podem sofrer influência de uma estratégia maior que as reconverte e dificulta sua “livre” mobilidade e circulação por meio da articulação de diversos instrumentos que podem ser econômicos, militares, de sexualidade, de raça, família, religião, entre outros.

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É neste contexto que chamamos atenção para as possibilidades limitadoras de materialização de corpos e existências, dada a articulação de dispositivos presentes nas redes contemporâneas do poder. O dispositivo é uma rede que estabelece uma relação entre elementos heterogêneos dentro de uma rede que assume uma coerência mais ampla (FOUCAULT, 1998e). Conecta elementos heterogêneos ditos e não ditos de uma temática que engloba diversas práticas, instituições, saberes (científicos, dogmáticos, do senso comum, de regras morais, proposições filosóficas, entre outros), em diversos grupos sociais que tem seus corpos e comportamentos investidos de forças políticas. Os dispositivos organizam, visam demarcar a natureza da relação entre esses elementos heterogêneos e estabelecem um tipo de jogo que situa possibilidades de práticas, as mudanças de posição dos sujeitos e dos saberes em hegemonia, e as funções atribuídas a estas práticas (FOUCAULT, 1998e).

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Diante disso, para pensarmos os corpos, não requeremos somente uma análise do social, mas também do histórico. A genealogia proposta por Foucault preocupa-se com a trama histórica, pois nela se constituem sujeitos, saberes, discursos, domínios de objetos, sem que recorramos a grandes narrativas ou exclusivamente a um sujeito. A história, para Foucault (1998b), também se encontra na rede do poder, pois os acontecimentos são descritos em conformidade com a Wirkliche Historie, ou História Efetiva. Ou seja, nas relações de forças sem domínio, “que se invertem e se superam sem regras específicas” (FOUCAULT, 1998b, p.22). Ao se afastar da busca das essências e origens, Foucault

(1998b) lançou mão do conceito de proveniência (Herkunft) de Nietzsche para focar na dispersão própria (na exterioridade) dos acontecimentos, captada em espaços de melhor identificação: nos corpos. Nos corpos, explicitam-se “os acontecimentos passados nunca resolvidos, os conflitos insuperáveis” e as materializações potenciais que se assumiram marginais, ou seja, o corpo é a história materializada e não materializada, visível e potencial (FOUCAULT, 1998b, p.22).

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Mas, como defendemos desde o início desta pesquisa, o corpo não é somente objetivado. Ao lançar mão do conceito de emergência (Entstehung), as proveniências (os corpos) adentram os jogos de forças, “passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude” (FOUCAULT, 1998b, p.23). Os corpos são articulados em jogos que apresentam regras sempre mutáveis, nem sempre explícitas, com diversas formas de subversão e imposição que atuam sobre o tornar- se visível. Foucault (1998b, p.22) define o corpo como “superfície de inscrição dos acontecimentos, lugar de dissociação do ‘eu’, volume em perpétua pulverização”. Nesse sentido, a análise do corpo é histórica, pois a análise da proveniência é o ponto em que a história se articula com as práticas diárias, com os corpos, “inteiramente marcado[s] de história e a história arruinando o[s] corpo[s]” (FOUCAULT, 1998b, p.22).

A partir disso, não nos orientamos apenas por sua fisiologia e não os posicionamos como demarcadores naturais dos homens, pois são produtos e agentes efetivos da história das relações de forças que ocorreram em acontecimentos particulares referentes a movimentos históricos. São agentes porque são também produtores, atuantes na constituição dos sujeitos, nas práticas cotidianas, nos espaços de luta que atualizam a trama histórica. Assim, o corpo está também mergulhado em um campo político:

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O corpo humano é, nós sabemos, uma força de produção, mas o corpo não existe tal qual, como um artigo biológico ou como um material. O corpo existe no interior e através de um sistema político. O poder político dá um certo espaço ao indivíduo: um espaço onde se comportar, onde adaptar uma postura particular, onde sentar de uma certa maneira, ou trabalhar continuamente. [...] Se o homem trabalha, se o corpo humano é uma força produtiva, é porque o homem é obrigado a trabalhar. E ele é obrigado porque ele é investido por forças políticas, porque ele é capturado nos mecanismos de poder (FOUCAULT, 2003, p.259).

Foucault (1998c) destaca que a existência de um saber do corpo não se constitui somente com base nas ciências biomédicas, mas nas tecnologias políticas do corpo, ou seja, em relações de força articuladas com saberes em hegemonia. Foucault (1995) relaciona estas tecnologias com instituições disciplinares, mas não no intuito de fechá-las a estes espaços (como um domínio), pelo contrário, estes espaços auxiliam na distribuição (colocam em jogo) e materialização (utilizam, valorizam ou impõem alguns de seus procedimentos) destas relações tanto nos processos de objetivação de corpos, quanto nos de subjetivação. Nesta dinâmica, as instituições são, como os corpos e os sujeitos, efeitos e mecanismos de produção de relações de poder, que contribuem para a criação de campos de validade, materialidade e localidade das forças, assim como de resistências e da proliferação de novas existências (DREYFUS; RABINOW, 1995).

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No intuito de relacionarmos corpos que não podem estar dissociados dos processos de constituição de sujeitos, identificamos como um campo fértil de análise o debate de organizações que atuam na produção de limites, de fronteiras, na delimitação dos corpos, que será apresentado a seguir.

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