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6 URSOS EM TERRAS CAPIXABAS

6.2 NODALIDADE DO CORPO URSINO

6.2.4 Enfim, Ursos

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“Antes era contado como gordo e agora sou contado como urso” (URSO 4). Este é sem dúvida um dos primeiros efeitos dos contatos com enunciados ursinos. Subjetivar-se como urso, ver sua imagem diferente defronte do espelho, ser visto

! Por estarem fora das normas em hegemonia, as outras “irmandades” (que obviamente também se 15

“autoajudam”) utilizam este termo usualmente de forma depreciativa, reiterando os embodiments de regularidades LGBT.

como portador de qualidades especiais em espaços que passaram a ser “próprios”, tornou-se realidade para grande parte dos entrevistados, que paulatinamente foram adentrando espaços nos quais operam outras normas. Nos quais ser gordinho, ter barba e exibir os pelos do corpo não era visto como algo relaxado, sujo, até mesmo bizarro (URSO 8).

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Pelo contrário, são algumas de suas principais qualidades sabatinadas nas buscas por corpos na internet, nos olhares assertivos na rua e nas expectativas de sucesso em festas específicas que passaram a ocorrer em diversas capitais brasileiras. Sim, sexualidades também colocam os sujeitos em movimento. Muitos inclusive deixavam de sair na região de Vitória para conferir as cenas de São Paulo, do Rio de Janeiro, até mesmo em cenas pequenas como a de Belo Horizonte (URSOS 1, 2, 4, 14, 17 e 19). E estas práticas vão reforçando o algo ursino que passa a compor suas subjetivações:

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“Quando eu entrei na Ursound [festa ursina localizada em São Paulo]... com aquela pista gigantesca!!! Aquele monte de corpo suado. Que eu desci a escada, assim... (risos) quando eu conto isso o povo ri, mas tipo: eu me senti a rainha do baile, sabe? Que vai descendo a escada, com o vestido de festa para ... (risos) um monte de gente olhando pra mim. Eu falei: gente, que isso!!! Foi muito bizarro. Inclusive o tipo de pessoa que eu via na Move estava lá e olhando pra mim (risos)” (URSO 17).

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“Eu fui numa festa e eu fiquei deslumbrado... realmente assim, um exemplo tosco... uma criança. Foi no rio, uma criança que entra na festa de aniversário de seu super- herói favorito onde todo mundo passa a olhar pra você” (URSO 4).

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“[...] eu cheguei num almoço do ursos em São Paulo... o lugar meio que parou, assim, sabe que quando você percebe que dá aquela parada? E eu achei a coisa mais linda do mundo. Porra. Eu, gordinho e tal, do jeito que eu me senti nesse dia... foi muito ... não sei explicar. E... poder fazer, sei lá, quando a gente tá mais novo ... poder fazer as putarias que eu fiz. Que é um meio que eu acho que até mais promíscuo que os outros, felizmente ou infelizmente (risos)” (URSO 19).

O discurso ursino atua na reformatação dos corpos, dando novo estatuto a partes antes vistas como excessos a serem eliminados. As pernas grossas, o peitoral e as costas largas, a barriga proeminente, em princípio, deixam de ser vistos como algo que deve ser escondido, para algo a ser primeiramente exibido e acionado nos jogos afetivos. Isso vai um pouco de encontro com um movimento que Foucault (1982) intitula por dessexualização do prazer. Tudo bem que a comida faz parte das interações ursinas, até mesmo porque veremos que há um trabalho de manutenção do corpo maior. Porém, não podemos desprezar que os ursos dão novo estatuto sexual a partes e formatações em estado de abjeção. Os entrevistados, então, passaram a tomar este discurso para si em espaços onde os corpos “desviantes” são o valor mais imediato de interação.

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“Eu me senti aceito... eu sou assim... muito sexual, entendeu? Não teve um benefício cultural, social ... teve, lógico ... eu falei que eu fui aceito, eu me achei dentro de um lugar. Como eu te disse, eu não tinha tido ninguém que me desejasse. E naquele momento todo mundo me queria. E eu queria todo mundo, assim. Pessoas já falaram pra mim que me “usaram”, entre aspas, pra saber como era estar na cama com um gordo e usaram o termo urso. E isso eu acho bacana” (URSO 4).

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Foi em autoestima, no encontro com algo “próprio”, em espaços “próprios”, de se cercarem de amizades que majoritaria e paulatinamente foram se tornando cada vez mais ursinas, que os benefícios com a adoção destas práticas ocorreram de forma quase unânime. Eles passaram a ser “alguém”:

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Todos os benefícios. É... pelo menos no quesito ... é.... relacionamento, desejo, ou, enfim.... conseguir ser alguém, conseguir ser bonito, você sai de um padrão estabelecido pela sociedade e vai pra um padrão que é totalmente você. Então você é alguém. Você é bonito ali, você é desejado, as pessoas te olham, as pessoas querem ficar com você, querem ser amigas. Você cria uma popularidade. Então, começa a existir. Então, eu acho que o maior benefício é essa coisa do ego mesmo, assim. Do nada, você se transforma em alguém. (URSO 1, grifos nossos).

“Pra mim foi bom, porque eu sempre tive problema de autoestima, problema de aceitar meu corpo, por eu ter sofrido bullying. Isso me ajudou a me aceitar. Então, a partir do momento que você se aceita como você é: eu sou gordinho, eu tenho pelos e tem gente que gosta assim. É como fosse uma coisa de se aceitar como gay” (URSO 5).

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Ao frequentarem, ou mesmo construírem, espaços estilizados que carregam como norma primeira uma identificação corpórea e sexual com homens de porte físico maior, há também uma abertura para atividades muitas vezes inconcebíveis em grupos onde opera a lógica do corpo “perfeito”:

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“Se eu sou urso e sou gordinho é porque eu gosto de comer. Gosto de sair, gosto de ir a um japonês, ir à pizzaria, de comer. Adoro ir pro Outback e sair de lá rolando. Então, assim, eu me aproximei desses amigos porque eles também gostam de fazer isso: Vamos comer alguma coisa? Então, assim, eu me identifiquei com meus amigos por causa disso” (URSO 5).

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“A impressão que você tem quando é urso, é que você não perde muito tempo com o físico. Você gasta as energias com outras coisas. Então, um urso, ele dá prioridades pra fazer coisas, artesanato, culinária, ele tem um bom humor. Ele... é carinhoso, porque ele não está preocupado consigo mesmo. Tô falando a impressão que dá, não estou dizendo que todos os ursos são assim. Essa é a impressão que a gente tem. São inteligentes, a maioria dos ursos que eu conheço são pessoas inteligentes. É mais ou menos isso. A impressão que a gente tem de uma pessoa que tem um corpo perfeito é que ela fica muito tempo fazendo exercício, entendeu?” (URSO 1).

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O debate das energias necessárias para que estabeleçam os limites corpóreos não passa somente por questões biológicas, mas por questões sociais e culturais. Para que sejam mantidos corpos que resistem aos investimentos políticos de um corpo exercitado, sarado e “belo”, é necessário que tais energias sejam trabalhadas em outros aspectos que também tenham valoração social nos processos de diferenciação. Muitas vezes isso requer que alguns sujeitos lancem mão de saberes de “maior estatuto hierárquico” em comparação com as demandas do mundo pop. Mas como nos recorda Urso 1, esta não é a regra. Além

dos benefícios na subjetivação dos participantes, não podemos desprezar também que os corpos comunicam e a mensagem se torna ainda mais visível quando os ursos saem em “bando”:

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“[...] se você pensar bem: homem grandes, barbudos, num piquenique gay, onde a maioria das pessoas dos outros lugares gays são magrelas e saradas ... fazem uma rodinha, estendem uma toalha, com muita comida (risos). Isso já chama atenção, porque gordo chama atenção em qualquer lugar. A questão é essa” (URSO2).

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Não somente pela criação de “hiatos” visíveis, mas também na desestabilização de normas em espaços que parecem definitivamente “suturados” (LACLAU; MOUFFE, 1987). O sentido de o corpo ursino ser um ponto nodal é o de denunciar verdades que operam em circuitos mais demarcados, ou seja, mostrar que aquelas regras não são tão unânimes assim. Ao objetivar corpos abjetos, converter sujeitos “inexistentes” em ursos, emergem “mercados ursinos”, inclusive em boates gays tradicionais.

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“A gente se impõe, isso é fato. Onde estão, por mais que não seja um ambiente de urso, se eles estão lá, eles se impõe. Estava conversando com um amigo que mora comigo. Ele é bonito, sarado, alto, tem um rosto bem masculino, barba, bocão. Traços bonitos. Ele é muito bonito. Mas malhado e tal. Quando a gente estava solteiro, ele tinha muito mais dificuldade pra achar parceiros, pra ficar com alguém, do que eu. Aí é aquela questão do meu público, assim, o público que se interessa por mim ... é um público mais específico, um público mais restrito, entendeu? É mais específico. Ele tem que disputar com um monte de gente na boate, ele tem que disputar a atenção um monte de gente igualzinha a ele. No meu caso sempre tinha um ou outro que gostava de gordinhos ... de ursos” (URSO 10).

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Estamos falando, portanto, de sujeitos que se “converteram” socialmente em um tipo especial de gay denominado urso a partir de indícios corpóreos, assim como passaram a autodenominarem como ursos. Porém, cabe-nos estabelecer outra pergunta: já que todo discurso é composto por uma polissemia que ganha coerência

a partir de suas práticas articulatórias, que concepções “próprias” de ursos os participantes capixabas trazem?

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