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6 URSOS EM TERRAS CAPIXABAS

6.1.3 Laços De Família

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Quando da partida para relações afetivas e sociais com pessoas do mesmo sexo, os entrevistados destacaram que o contexto familiar foi o que mais os incitou a dizerem ou reprimirem suas sexualidades. Na família, as pressões para que se “posicionassem” se deu de forma mais intensa em comparação com outras redes de poder. Não houve declarações espontâneas por parte dos participantes dos tempos de escola, mas podemos supor que sejam ambientes também “inquisitivos”. Em seus discursos, o espaço familiar se apresentou como de maior ansiedade, das tensões mais representativas, sendo que as mães se configuraram como as principais mediadoras e comunicadoras nos processos de subjetivação dos participantes. Tanto no sentido de auxiliarem no desenvolvimento e catalisação das práticas desejadas pelos filhos, quanto na atualização e reiteração de violências e esquemas em

hegemonia na sociedade. Captamos ocorrências de famílias que abrigavam gays em suas relações cotidianas, mas que apresentaram outras práticas quando seus filhos se assumiram homossexuais,

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“É preconceito por parte da minha família, né? Eu contei, mas não aceita, né? Então, assim, eu acho que é mais por ser família. Minha tia tem amigos gays, minha mãe tem amigos também. Assim ... são os amigos da minha tia com quem ela convive, brinca, conversa, chama pro aniversário... Mas, tipo assim, o filho do outro pode, o meu não. Então, eu acho que é uma coisa por ser da família” (URSO 5).

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Outro assunto recorrente foi de transmissões por parte das mães de poderes “paternos”. Paternos no sentido de recorrerem à figura do pai nas relações de força em que requisitavam aos filhos subjetivações em conformidade com as normas sociais, ou seja, lançam mão da figura paterna castradora ou da possibilidade de magoarem os pais para condenarem as “transgressões” sociais dos filhos, mesmo que, na prática, os pais não se assumissem como figuras tão opressoras,

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“Eu morava no Rio e tinha alguns amigos aqui no Espírito Santo. A gente se comunicava por carta. Aí a minha mãe abriu uma carta minha. Interceptou e abriu. Eu conversava abertamente com esses amigos que eram homossexuais. Ela grilou. Ela foi e me levou pra conversar na rua. Ela me falou que se eu não deixasse de virar homossexual a família toda viraria as costas pra mim. Que... meu pai era alcoólatra e iria beber até morrer. Que o pai dela era velhinho e morreria quando soubesse. Aí eu arrumei todas as minhas coisas e saí escondido à noite. Eu fugi de casa. Eu tinha um namorado na época, aí a gente foi pra casa da irmã dele. Foi a primeira vez que pisei aqui no Espírito Santo” (URSO 14);

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“Minha mãe, com o tempo, ela meio que... não sei se aceitou ou se ela desistiu. Eu sei que não é fácil pra ela. Porque mãe nenhuma espera ter um filho que seja viado. Eu também não gostaria. Eu sei o que eu passo [...] Quando eu conversei com minha mãe sobre isso e tal: ‘mãe, não dá, não vou mudar, não existe isso’. A gente chegou a um acordo de não contar pro meu pai. Ele é da roça. Ele já é de idade, né? E ele sempre falava que preferia um filho ladrão do que um filho viado. Aí acabei tendo uma

discussão com minha mãe. Aí meu pai chegou. Nesse negócio todo, ele acabou perguntando ... Eu me senti muito mal quando falei pra ele. Não porque eu achei que ele fosse brigar comigo. Eu imaginei que ia fazer mal pra ele. Porque uma coisa é ele brigar, me expulsasse de casa e eu ia sobreviver. Outra coisa era o mal que ele ia sentir. Eu fiquei mal com isso na hora. Mas ele me abraçou e falou: ‘tá, você é meu filho do mesmo jeito’. Isso acabou comigo, assim ...” (URSO 10).

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E os acontecimentos não param por aí. É interessante destacar que os maiores receios e violências inicialmente atualizadas pelas mães estão diretamente ligados aos estereótipos de homossexuais que temos apontado. Trata-se do temor de que os filhos alterem as disposições de seus corpos, que se tornem “mulheres” - em seu “extremo” representado pelos transgêneros. Como exemplo, encontramos a preocupação de uma das mães com os limites corpóreos do filho, com a melhor forma que ele dispunha de seu corpo nas relações sexuais: “quando eu contei para a minha mãe, a única coisa que ela quis saber era se eu era passivo ou não” (URSO 2). O medo de que os filhos sejam “passivos” nas relações sexuais está intimamente articulado não somente com a noção de feminilidade, mas também com toda a negatividade que tem sido associada às mulheres.

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Reencontramos, aqui, como apontado por Garton (2004), o enunciado medieval que associa mulheres a figuras “carnais”, que não tem domínio de seus corpos, que se não fossem reguladas decairiam na promiscuidade. Temos, também, os investimentos do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1985) na histerização das mulheres, refratado nos receios familiares de que os filhos, ao se assumirem como homossexuais, agiriam de forma promíscua e sem controle:

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“Dizem que o gay é promíscuo. E não que todo mundo seja promíscuo, mas eu acho que a gente é, às vezes, mesmo. Em comparação com que a sociedade diz que é. É correto. É falta de limite. Eles acham que talvez algum... você não tem muito limite porque você é gay. Você não teve limite em se segurar, em continuar dentro do armário, então você é capaz de mais coisas. Então, você é capaz de agarrar uma pessoa à força na rua. Você é capaz de apontar umas pessoas que estão no armário na frente da família dela: Eu sei que você é gay! E essas coisas você não faz! É difícil

também. Não é uma coisa da sexualidade, mas é uma coisa da pessoa. Então, é nesse sentido” (URSO 1).

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A suposta perda do “controle” e da organização ideal do corpo e dos comportamentos masculinos não é somente um problema de gênero, mas também é “um caso de polícia” (URSO 7). Assumir-se gay está também associado à marginalidade econômica e política das travestis. Ou seja, há um temor de que os filhos ao se assumirem só tenham a opção de adentrarem o mercado profissional de profissões “femininas” como cabeleireiros, isso sem falarmos no receio de se prostituírem na noite das avenidas praianas,

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“[...] a única referência que ela tinha de gays era dos amigos dela que são bastante afeminados, alguns eram cabeleireiros, eram coisas muito espalhafatosas. E eu acho que esse era o medo dela. Eu fui mostrando pra ela que eu não acho isso muito ruim, mas que não era minha praia. A minha era outra, apesar da minha afirmação que eu era gay. E aí ela foi vendo isso, o fato de eu ser filho dela também ajudou muito” (URSO 4);

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“A própria sociedade acaba fazendo chacota em cima desses casos, então, elas acham que todo mundo vai ser assim. Assim, não falando que todo travesti é marginal. Mas é porque infelizmente o que mais aparece é isso. Você não vai ver o travesti que é direito, que é honesto, o travesti por escolha. O que mais aparece é o homem que se traveste pra fazer programa, aquela coisa: ele faz isso porque é safado. Eu acho que minha família vê mais isso e tem medo de isso acontecer comigo” (URSO 5).

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Todos os participantes informaram que foi necessário um trabalho meticuloso de policiamento dos seus gestos para que afastassem os temores de se “travestirem”. Outra tática muito adotada foi a de apresentar os namorados e amigos gays que tenham um relacionamento estável na desconstrução da imagem de homossexual como promíscuo: “[...] na convivência, ela foi vendo que não é pelo fato de eu ser gay que você tem aquela imagem promíscua do gay dos anos 1970 e anos 1980. Tenho amigos em relações de longa data e caminho para isso também” (URSO 10). Não

entraremos nos méritos de décadas passadas, mas a imagem de homossexuais como promíscuos e efeminados ainda opera em nossa sociedade. Outro exemplo pode ser encontrado na “simulação” por parte de Urso 3 do processo de assumir sua homossexualidade para a família,

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“[...] eu sinto uma necessidade de assumir até porque eu entendo da seguinte forma. Se você gosta de uma pessoa... eu não gosto de ser rotulado homossexual. Homossexual traz ‘n’ definições e ‘n’ atributos ao rótulo. Então, se um dia eu for ... acho que isso vai acontecer... eu for dizer, for assumir aos meus pais, aos meus familiares ... Eu não quero assumir dessa forma: eu sou homossexual! Eu gosto de usar plumas e paetês e andar na rua de biquíni! Não. Eu diria da seguinte forma: ora, eu tenho um namorado, mas eu sou eu: o mesmo que joga bola, faz churrasco, joga videogame, vai na praia, conversa, enfim. Não mudou nada! A única diferença é que se você estiver esperando uma namorada, vai ser um cara. Então, eu sinto necessidade porque é uma coisa que a gente fica sufocado. Tem um... preconceito enorme em cima disso aí, a gente fica com medo e tal” (URSO 3).

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As táticas que o Urso 3 supostamente utilizaria são as de desconstruir a feminilidade ligada ao estatuto de homossexual em hegemonia ao lançar mão de gestos, comportamentos e usos do corpo “masculinos”. Assim como fora de casa, nas famílias as ficções de gênero também operam com toda força. O que leva a diferentes práticas terapêuticas, principalmente por parte das mães. Entre as reações mais comuns podemos situar as seguintes: a incitação para que os filhos iniciassem tratamento psicológico (URSOS 4 e 7); seguissem a vida religiosa (URSOS 10 e 19); abandonassem o lar (URSOS 4 e 14); algumas mães até chegaram a proibir o relacionamento com alguns amigos (URSOS 8 e 4).

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Apesar das violências iniciais, as mães foram, conforme 17 dos 19 participantes, os agentes fundamentais na promoção de conforto, bem-estar e suporte nas práticas dos filhos: “minha mãe era muito preconceituosa, mas depois que eu me assumi mudou muito. Hoje minha mãe defende gays. Ela não deixa falar mal, sabe? Porque o maior medo da mãe é que o filho vire travesti (risos)” (URSO 11). “Se minha mãe já sabe e aceita, não tenho que ficar tão grilado assim com os outros” (URSO 6).

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Esta brevíssima homenagem a todas as mães também não esgota a discussão aqui apresentada. Estamos lidando com sujeitos oprimidos por múltiplas redes de poder, nas quais a ficção organizadora de gênero está articulada não somente quando o tema é a sexualidade, mas também a família, o trabalho.

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“[...] se você ver militares, policiais, as pessoas não entendem que um cara do exército possa ser gay. Porque aquela figura ali historicamente é de um homem hetero. É de um cara casado, de família, que carrega foto da mulherzinha dentro do capacete. Então, isso é um legado, né, cara” (URSO 3).

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O corpo do homem seria um corpo disciplinado, posto a utilidades da nação e da segurança familiar nas diversas instituições “tradicionais” que garantiriam seu estatuto. Além disso, a ficção de gênero (BUTLER, 2010) é acionada e alimentada na religiosidade pastoral, quase sempre articulada nos conceitos de “família” e de “casamento”: “às vezes minha mãe fala: que futuro você vai ter? Você não vai ter uma família” (URSO 5). Outro exemplo:

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“Deus criou Adão e Eva. Não criou Adão e Evo. Eu acho um absurdo, não sei o quê... E nessa época ninguém na minha sala sabia de mim. Foi quando eu me assumi pra sala (risos). Peguei e levantei pra sala ... o professor: ‘fala, mas com calma’. ‘Eu sou homossexual e não aceito que ninguém fale que homossexual não possa adotar uma criança. Eu vou ser bem melhor pai do que muito heterossexual por aí’. Na hora, eu saí da sala revoltadíssimo, não sei o quê e tal. E depois, no final da aula, esse colega veio e passou o resto do semestre tentando me convencer a mudar de opção: ‘olha, não é assim, vamos lá na igreja, constitua uma família de verdade’. ‘Não!!! Sabe? Some da minha vida!!!’ Eu acho que foi o único caso de discriminação que passei até hoje. Foi, assim, o mais forte” (URSO 17).

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As dificuldades acionadas por estas “opções” estão também no uso de termos que biologicamente, religiosamente e “humanamente”, estão articulados em práticas heterossexuais, principalmente quando se referem a relacionamentos afetivos. Entre os principais termos que levam a dificuldades de enunciação estão: namorado, noivo,

marido, que usualmente são convertidos em companheiros, amigos, ou amigos sérios (URSOS 1 e 4):

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“Na verdade, eu acho que a relação homossexual é diferente da heterossexual. Então, tomo certos cuidados pra não usar certos termos que são exclusivos para heterossexuais. Por exemplo... casamento. Casamento não, noivado (risos). O noivado acontece quando existe uma preparação até que meio religiosa pra se chegar ao casamento. Então, quando um casal gay está noivo, eu não consigo entender muito bem. Até porque essa coisa do casamento gay está aprovada recentemente. Talvez agora dê pra brincar com essa coisa de noivo. Até uns meses atrás eu não engolia muito isso” (URSO 1).

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É neste sentido que Butler (2010) nos chama atenção para a perda da força descritiva das normas ficcionais quando o campo de corpos começa a se desorganizar, pois revela as práticas e os conceitos que compõe a inteligibilidade das construções heteronormativas que não se encontram presentes somente na família e nos contextos que envolvem religião, mas também no trabalho, como debateremos no próximo tópico.

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