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1.2 ARTE, ESTÉTICA E CRIATIVIDADE NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO

1.2.2 Arte, Atividade Criadora e Produção de Novas Realidades

Ao entendermos a atividade humana na perspectiva histórico-cultural como transformadora do contexto social, num movimento dialético em que ao mesmo tempo que transforma o mundo transforma quem a empreende, constituindo-o enquanto sujeito num processo sem fim, verificamos que, através da ação criadora, transformamos e conhecemos o mundo e essa atividade criadora encontra-se diretamente vinculada à variedade de nossa experiência humana.

A criação é desta forma apontada como o extrato mais profundo e originário da arte, uma vez que do ponto de vista verdadeiramente estético a obra de arte é, antes de qualquer coisa, uma criação do homem, que vive graças a essa potência8 criadora “por si mesma, como uma realidade própria, na qual se integra o que nela expressa ou reflete”. Nela, o sujeito se expressa, exterioriza-se e reconhece a si mesmo (VÁZQUEZ, 1978, p. 46).

As pesquisas referentes à gênese da capacidade criadora, desenvolvidas por Vygotski (1998), possibilitam compreender a relação intrinsecamente existente entre criação e realidade. Para ele, só um milagre poderia criar algo do nada, uma vez que se constrói sempre com materiais tomados do mundo real.

8 Potência nesta perspectiva não é vista como algo dado a priori, como característico de uma

Conectada à vida cotidiana, a atividade criativa, na concepção histórico-cultural, não é uma atividade independente, é uma maneira de olhar e de fazer que se vincula às atividades humanas, artística, científica e técnica, estando diretamente relacionada com a riqueza e a variedade dessa experiência de forma real ou imaginária, uma vez que ela é o material com que o homem “ergue seus edifícios da fantasia”, aponta-nos Vygotski (1998).

Para ele (1998, p. 11) a criação está presente nos momentos “onde o ser humano imagina, combina, modifica e cria algo novo”, por mais insignificante que essa novidade pareça ao comparar-se com as grandes invenções. Segundo o autor, grande parte do que foi criado corresponde à criação anônima coletiva de inventores anônimos, não sendo exclusividade de uns poucos nomes de grandes inventores considerados gênios. E, se formos verificar o que cabe à parte da criação pessoal do autor, veremos que a ele cabe a escolha de alguns elementos da experiência artística acumulada à qual se apropria, organizando-os, transferindo-os para outros sistemas, combinando-os, de formas diferenciadas até a formação do novo. (VYGOTSKI, 1999, p. 16).

Na vida diária encontram-se, portanto, todas as premissas para a criação e tudo o que traz uma pequena partícula de novidade tem sua origem no processo criador. Desta forma, tudo o que existe no mundo da cultura, produzido pelo homem, é produto da imaginação e da criação humana, sendo que esta se assenta nos elementos recortados da realidade.

Ao converter-se em meio de ampliar a experiência humana, a imaginação adquire uma função de extrema importância na conduta e no desenvolvimento humano, constituindo-se numa condição vitalmente necessária para quase toda a função cerebral, afirma Vygotski. A vinculação existente entre fantasia e realidade na conduta humana permite-nos um melhor entendimento do mecanismo psicológico da imaginação e da atividade criadora a ela relacionada.

Segundo o autor, o processo de imaginação criadora pode ser expresso por um círculo composto por quatro formas básicas de vinculação entre a fantasia e a realidade, originando-se no momento em que o ser humano toma os elementos da realidade, os quais sofrem complexa reelaboração pelo sujeito, tornando-se produto de sua imaginação para enfim materializar-se, voltando à realidade e transformando-a. (VYGOTSKI, 1988).

Esta análise psicológica da atividade criadora põe em destaque sua complexidade que vai se expressando à medida em que se desenvolve. No curso da criação a partir da experiência, empreende-se um amplo processo de dissociação e associação das impressões percebidas. Observamos que o fator intelectual e emocional são inseparáveis e igualmente necessários ao ato criador. Nas palavras de Vygotski (1998, p. 25): “Sentimento e pensamento movem a criação humana”, e através da imaginação artística mais facilmente nos convencemos deste fato. As obras de arte frutos da imaginação partem da realidade e influem diretamente sobre ela, a partir de dentro, do mundo interior das idéias, pensamentos, conceitos e sentimentos humanos. Muitas obras têm força pela verdade que apresentam, ajudando a explicitar complexas relações práticas, iluminando com suas imagens problemas vitais.9 A partir de sua lógica interna as obras de arte exercem verdadeiro influxo sobre a consciência social.

É, portanto, na inter-relação existente entre o produto da atividade criadora e as novas e ilimitadas significações que este gerará - tanto para o autor/criador quanto para o público/leitor - que se afirma o caráter social de toda e qualquer criação humana.

Vygotski (1998, p. 35-36) tomando como base de toda ação criadora “a inadaptação, fonte de necessidades, sonhos e desejos”, que põe em movimento o processo imaginativo, que por sua vez depende da ação de diversos fatores: experiência, necessidade, interesses, capacidade combinativa, conhecimentos técnicos, etc, destaca o meio ambiente que nos rodeia como um dos fatores mais importantes desse processo. À primeira vista pode parecer que o processo imaginativo independa das condições externas, mas este não só depende destas condições, quanto estas condições determinam o material que deve trabalhar a imaginação, salienta o autor. Toda obra criadora é produto da sua época e seu ambiente, apóia-se “sobre formas existentes e em necessidades historicamente produzidas” (ZANELLA et al, 2000, p. 543) e por mais individual que pareça, contém sempre em si um coeficiente social. “Nesse sentido não há invenções individuais no sentido restrito da palavra, em todos há sempre alguma colaboração anônima”, complementa Vygotski (1998, p. 38).

9 É o caso, por exemplo, da obra de Victor Meirelles Primeira Missa no Brasil, que condensa o

É nesse sentido que Vygotski (1999) afirma que “a arte é o social em nós”, pois as condições sociais determinam a natureza e o efeito da obra de arte, mas os determinam indiretamente. Citando a pintura egípcia como confirmação de que os próprios sentimentos da obra de arte são socialmente condicionados, enfatiza que é a forma, neste caso particular, a estilização da figura, que tem a nítida função de comunicar um sentimento social que está ausente no próprio objeto representado e lhe é conferido pela arte.

Segundo Vygotski, (1999, p. 309) “Devemos ver que a arte parte de determinados sentimentos vitais, mas realiza certa elaboração desses sentimentos [...] essa elaboração consiste na catarse, na transformação desses sentimentos em sentimentos opostos, nas suas soluções”. Isso porque, mesmo consistindo num “dispêndio tempestuoso e explosivo de forças, num dispêndio da psique, numa descarga de energia” (VYGOTSKI, 1999, p. 314) que se concretiza com um objeto de arte, ainda assim este estrutura e ordena esses nossos dispêndios psíquicos, os nossos sentimentos, uma vez que, por seu intermédio, o homem se objetiva e ao mesmo tempo se subjetiva. A reincorporação das emoções fora de nós realiza- se através do sentimento que foi objetivado, que foi levado para fora de nós e fixado nos objetos artísticos, os quais passam a ser instrumentos sociais que incorporam os aspectos mais íntimos do nosso ser. Dessa forma, na medida em que vivenciamos uma obra de arte, o sentimento torna-se pessoal e é reincorporado dentro de nós, sem com isso deixar de ser social. Por isso, Vygotski (1999) afirma que “a arte é o social em nós”, pois mesmo que seu efeito se processe num indivíduo isolado, suas raízes e essência são sociais.