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No momento da atualização, todos os valores, ideias e princípios que se pretende apropriar são deshistoricizados. Ocorre uma reviravolta dos sentidos concomitantemente à fixação do verdadeiro, conforme bem demonstra a “visão do mundo” do conde Leinsdorf sobre “o verdadeiro socialismo” na admirável síntese de Musil.341 O léxico é revirado, reconfigurado e no vocabulário político instaura-se a

Babel, identificada pelo maritainiano Gladstone Chaves Melo:

340 CORÇÃO, G. “A técnica da palavra”. A Ordem, ago/set 1946, p. 101.

341 Musil foi preciso ao descrever o conde Leinsdorf : “Com educação religiosa e feudal, jamais lidando com burgueses que o questionassem, era bastante lido, mas, por efeito da pedagogia eclesiástica que protegera a sua juventude, ficara impedido, a vida toda, de ver num livro nada que não fosse absoluta confirmação, ou errôneo desvio, dos seus próprios princípios. Por isso, só conhecia a visão do mundo de seus contemporâneos pelas disputas no Parlamento ou na imprensa. E como soubesse o bastante para reconhecer as muitas superficialidades delas, fortalecia-se diariamente seu preconceito de que o verdadeiro mundo burguês, profundamente compreendido, não era senão aquilo que ele próprio pensava a respeito. Aliás, acrescentar ‘verdadeiro’ a tendências políticas era uma das armas de que se valia para ajeitar-se num mundo criado por Deus, mas que tantas vezes o renegava./ Estava firmemente convencido de que até o verdadeiro socialismo concordava com sua concepção; fora desde o começo idéia pessoal sua, que em parte escondia até de si próprio, fazer uma ponte através da qual os socialistas marchassem para o seu lado. É claro que ajudar aos pobres é uma missão de cavalheiro, e que para o verdadeiro nobre no fundo não há tanta diferença entre um empresário burguês e o seu operário; ‘bem no fundo somos todos socialistas’ era uma de suas frases preferidas, e significava mais ou menos que no outro mundo não haverá diferenças sociais. Mas, neste mundo, julgava-as necessárias, e esperava dos operários que, atendidas suas necessidades materiais, desistissem dos lemas insensatos que lhes tentavam impor, e reconhecessem a ordem natural do mundo, segundo a qual todos têm deveres e conseguem progredir no meio que lhes foi determinado. O verdadeiro nobre lhe parecia tão importante quanto o verdadeiro operário, e a solução das questões políticas e econômicas para ele estava numa visão harmoniosa que ele chamava Pátria.” MUSIL, Robert, O homem sem qualidades, trad. Lya Luft e Carlos Abbenseth, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 67.

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“Não há vocabulário mais movediço que o vocabulário político. Tonto fica o lexicógrafo quando pretende definir um termo de tonalidade política, porque o conceito varia segundo a mentalidade e a paixão de cada grupo sectário, de tal modo que, sob o mesmo nome, se designam coisas diametralmente opostas”.342

O adversário dos maritainianos, na palavra de Azeredo Santos, denuncia a manobra. “E é essa confusão de conceitos, de princípios, essa deturpação da própria perspectiva histórica, que vamos encontrar em certos fautores de novidades nos meios intelectuais católicos”.343

Há uma troca de registro na qual personagens, acontecimentos, termos, são resignificados. Os termos são cindidos e, por essa operação, instaura-sea ambigüidade – por ex.: “liberal”: espírito aberto; adepto da doutrina histórica – que incorpora a ambivalência das categorias bem e mal. Aquilo que remete à diferença, a sentidos diferentes, é moralizado, passa a carregar também valores contrastantes. O que é alicerce na construção do outro, base de sua visão de mundo e, portanto, afirmação de sua identidade, é desbastado, descartado como falso, para fazer vir à luz a parte de verdade que carrega, aquilo que nele se refere à verdadeira natureza das coisas. Todos os sistemas adversários são cindidos e esvaziados de sua medula, de sua filosofia, daquilo que os define, para serem apropriados no que têm de oportuno – “liberdade”, “justiça social” –, de “verdade cristã enlouquecida”. São submetidos a um exorcismo, e batizados; são mortos e devorados. O processo é esclarecido por Hargeaves, repetidor da filosofia política de Maritain n’A Ordem:

“Estamos no dever de pensar de novo em como derrubar o muro que separa a Igreja do mundo. Precisamos descobrir novos caminhos para entrar na intimidade do mundo. Afinal, esta é nossa única razão de ser. Ora, estes caminhos poderão ser vários e convém mesmo que eles sejam múltiplos. Certo, porém, nenhum deles poderá se distanciar das lições eternas das Escrituras – entre as quais destacaremos esta de São Pedro, quando do batismo de Cornélio, o Centurião; “Vós sabeis que coisa abominável é para um homem judeu, o ajuntar-se ou aproximar-se de um estrangeiro; mas Deus me mostrou que a nenhum homem eu chame de comum ou imundo. Pelo que, sem duvidar, vim logo que fui chamado”. (Atos – X. 28/29).

Sabemos todos que esta decisão de São Pedro foi tomada depois da visão de Joppe. E, desde então, como admiravelmente diz Fessard,344 a primeira brecha, por onde passara o

342 MELO, Gladstone Chaves de, “Maritain e a fé na Democracia”, A Ordem, mai/jun 1946, p. 134. 343 SANTOS, J. de Azeredo, “O rolo compressor totalitário e a responsabilidade dos católicos”, REB, dez/1950, pp. 789-817.

344 Gaston Fessard, jesuíta, influenciado por Hegel, pretendia construir uma teologia hegeliana, segundo Maritain. Era um dos quatro mosqueteiros junto com De Lubac, Montcheuil, D’Ouince, em Fourvière, convento que, ao lado da escola de Saulchoir, foram os alvos principais das condenações da “Humani Generis”, de 1950. FOUILLOUX, Étienne, Une Église em quête de liberte. La pensée catholique française entre modernisme et Vatican II. 1914-1962. Paris, Desclée de Brouwer, 1998

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Príncipe dos Apóstolos não cessou de alargar-se e Santo Agostinho ajuda-nos a compreender na sua amplitude total a visão de Joppe, mostrando-nos que os animais puros e impuros são os povos que a Igreja deve conquistar e os inimigos que ela deve converter.

“A Igreja, exclama Santo Agostinho, mata e come. Mata neles o que eles são e transforma-os naquilo que tu és... O que é afinal comer? É fazer passar o alimento para o corpo. Tudo o que nós comemos, efetivamente, fazemos passar para nosso corpo. É o que realiza a Igreja pelos seus santos: ela tem fome daqueles que ela quer ganhar, e aqueles que ela de alguma forma ganhou, ela, por assim dizer, os come. Pedro estava no lugar da Igreja, quando lhe foi mostrado o guardanapo cheio de todos os animais quadrúpedes, pássaros, répteis, cujas espécies diversas representavam todas as nações. O Senhor prefigurava assim a Igreja, que devia devorar todas as nações e convertê-las no seu corpo”. (Fessard).345

No momento da suspensão dos sentidos, aqueles termos que remetem a alianças, a compromissos, a atitudes que se quer rejeitar, por vezes, são objeto de tal contorcionismo de sentido, que gera espanto. A “tradição” torna-se passado presentificado, atualizado em suas verdades parciais, “passado verdadeiro”. A “contra- revolução”, figura da verdadeira revolução. A palavra é arrancada de seu tempo e arremetida para o futuro, de histórica ela torna-se profética do presente. O texto do historiador monarquista João Camilo de Oliveira Torres,346 demonstra com precisão esse procedimento contorcionista, inversor , (re)criador dos significados:

“Cinco verdades enlouquecidas, cinco palavras sonoras mal interpretadas, criaram um dos mais sérios casos de consciência da história: a tradição, a autoridade, a corporação, a propriedade e a contra-revolução. O fascismo defendendo estas verdades justas teria de atrair os católicos, como de fato atraiu, mas usou destas verdades deformando-as e transformando-as nos males correspondentes. Estudemos em série estas cinco verdades deformadas.

1) – A Igreja é depositária de uma Tradição viva da qual é a única intérprete autorizada. A idéia da tradição não é, em si, anti-democrática, pois, como disse Chesterton, é o direito

345 HARGREAVES, H. J., “Iniciação à filosofia política de Maritain”, A Ordem, mai/jun 1946, pp. 183- 184.

346 João Camilo de Oliveira Torres, 1915-1973, estudou na então Universidade do Distrito Federal e foi professor da UFMG e da Universidade Católica de Minas; primeiro lecionou filosofia e, depois, história; fez parte do grupo maritainiano de “O Diário”, de Belo Horizonte, onde colaborou por trinta anos. “Escreveu nas revistas A Ordem e Vozes de Petrópolis. Os temas abordados em seus livros e artigos versam sobre História, Filosofia, Pedagogia, Política e Literatura. [...] Escreveu sobre a História brasileira, focalizando, principalmente, o seu aspecto político: Democracia Coroada, Formação do Federalismo no Brasil etc.; discorreu também sobre a história do pensamento: O Positivismo no Brasil e História das idéias religiosas no Brasil. O seu livro Teoria geral da História é mais uma obra de Teologia que de Filosofia”, onde ele afirma que o sentido último da história está para além da própria história. “E, política, era monarquista e conservador. Para ele, o diálogo entre o marxismo e o catolicismo “é algo completamente impensável”. A sua posição anti-revolucionária, sente-se nestas linhas: ‘Não me esqueço nunca desse meu estranho xará, Pe. Camilo Torres, que deixou o cálice e a patena, foi ser guerrilheiro nos Andes e morreu de armas nas mãos. Não seria isto o efeito de uma distorção? Não seria, afinal, uma forma de ateísmo? Não seria a descrença total na eficácia dos meios espirituais e o reconhecimento de que as questões sócio-econômicas são as principais?” MOURA, Odilão. As Idéias Católicas no Brasil. Direções do pensamento católico do Brasil no século XX. São Paulo: Convívio, 1978, pp. 180-181

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de voto estendido à margem mais numerosa e obscura do eleitorado, os mortos. Além disso, não devemos confundir tradição com conservadorismo, pois, é um movimento de ‘trazer’ para o presente as experiências do passado. [...] um tradicionalismo para ser aceitável deve ser construído sobre tradições reais e, tradição significa trazer para o presente as experiências do passado e não conservar o mesmo estado que agora nem volver ao mesmo estado que antes.

2) – A autoridade. A Igreja fala em nome de Deus e por isso é autoritária. Aliás, nada mais justo que o reconhecimento da existência de uma ordem, esta promanando de quem tenha o direito de falar. Tudo isso porém existe de um modo ético e não político. Só a autoridade legítima, construída pela razão e em nome da moral existe; o mais é tirania pura e simples. [...] a vontade soberana e poderosa do estado somente possui uma razão de ser: a justiça e o bem estar dos cidadãos. Esta vontade deve ser poderosa e soberana para impedir os grandes de esmagar os pequenos, os fortes aos fracos e os astutos aos honestos; é uma vontade moderadora das paixões, situada em plano superior, exterior e transcendente ao das realidades sociais e econômicas. O totalitarismo, porém, não contente com o ser ilegítimo (o que lhe tira toda a autoridade) procura aumentar a força do estado não em majestade e soberania mas em adiposidade adquirida à custa de invadir a seara alheia. A absorção do povo pelo estado não torna a este mais forte; torna- o mais pesado e moroso, rompe o equilíbrio e tira-lhe a sua maior força: o ser diferente do povo.

3) – A corporação. [...] não há nenhuma semelhança entre o ‘corporativismo’ fascista e o ‘corporacionismo’ sugerido nas Encíclicas. Este abuso da palavra corporação foi uma das armadilhas mais funestas e deselegantes que os fascistas armaram aos católicos; poucos escaparam dela... [...]

4) – A propriedade. A Igreja defende a propriedade e os reacionários também. Mas, se os fascistas e os capitalistas desconfiassem do verdadeiro conceito de propriedade segundo Santo Tomás de Aquino (Suma Teológica, 2a., 2a., quest. 66) [...]. Defende o Angélico a propriedade particular dos meios de produção; mas o que entende por isto é tão revolucionário que sempre que lemos a argumentação do Santo Doutor cuidamos ouvir o ruído da ordem vigente aluindo-se.

5) – A contra-revolução. A Igreja foi contra a Revolução Francesa e suas idéias, não por ser reacionária mas por não ser a revolução realmente revolucionária. A Igreja condenava o mundo burguês que nascia há muito tempo, não em nome do mundo feudal que morria, mas em nome de um mundo humano que poderá nascer algum dia. A Igreja já falava em nome do futuro, e não do passado.[...]347

Mas, frequentemente, os termos também são fixados em seu significado antes adotado, agora tido como “deturpado”, o que revela uma manobra para apagar, relegar ao esquecimento, a palavra antes empenhada. A palavra “corporação” – o mesmo com “nacionalismo” – é fixada, por Fábio Ribeiro, de modo inexorável na coisa que se quer repudiar: o Estado totalitário.

“Lemos em ‘Criterio’ de 12/04/1945 as seguintes palavras da redação sobre o problema do nacionalismo: ‘El vocablo nacionalismo, como tantos otros, se ha prestado a lamentables equívocos [...]’

Como ‘Criterio’ observa, seria de esperar que de uma vez por todas se adotasse a palavra patriotismo em lugar de nacionalismo, reservando esta última para as formas condenadas ou simplesmente discutíveis do fenômeno. Há várias expressões que, ou foram deturpadas, como corporativismo, ou são empregadas quase sempre no sentido

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condenável, como socialismo, – tornando-se desse modo uma causa constante de equívocos. Seria preferível abandoná-las de vez ao sentido deturpado ou corrente que assumiram, inventando outras expressões para designar as novas realidades que os cristãos têm em vista”. 348

Já a “democracia” é desvinculada da burguesia e do liberalismo. É batizada por Maritain, que inverte as posições e acusa a burguesia de ter “esvaziado” o espírito cristão da democracia:

“Em seu princípio essencial, essa forma e esse ideal de vida comum, que chamamos democracia, provém da inspiração evangélica e sem ela não pode subsistir. [...] [A palavra democracia] designa de início e antes de tudo uma filosofia geral da vida humana e da vida política, bem como um estado de espírito[...]’ Esta conceituação de Democracia como ‘filosofia geral da vida humana’ é importantíssima, porque não faltaram no passado como não faltam no presente fariseus que quiseram e que querem valer-se do nome de certos acidentes da democracia, para, esvaziando-lhe o conteúdo, depurarem-na à sua imagem e semelhança. Foi o que fez ontem a Burguesia, que quis identificar a Democracia com a sua concepção de vida, e que agora quer arrastá-la na sua queda fragorosa e inevitável. ‘Esses erros, que correspondiam ao advento da classe e da ideologia burguesas, longe de participarem da essência da democracia, são destruidores da democracia[...]”

O cristianismo é o fundamento da verdadeira democracia, porque ele

“anunciou aos povos o reino de Deus e a vida do século futuro, ensinou-lhes a unidade do gênero humano, a igualdade de todos os homens, filhos do mesmo Deus e resgatados pelo mesmo Cristo, a inalienável dignidade de cada alma criada à imagem de Deus, a dignidade do trabalho e a dignidade dos pobres, a primazia dos valores interiores e da boa-vontade sobre os valores externos, a inviolabilidade das consciências, a exata vigilância da justiça e da providência de Deus sobre os grandes e os pequenos, a obrigação imposta aos que comandam e aos que possuem o poder – de comandar segundo a justiça como ministros de Deus, e gerir os bens que lhes são confiados para a vantagem comum, como intendentes de Deus, a submissão de todos à lei do trabalho e o apelo a todos para partilharem da liberdade dos filhos de Deus, a santidade da Verdade e o poder do Espírito, a Comunhão dos Santos, a divina supremacia do amor redentor e da misericórdia, e a lei do amor fraternal que a todos se estende, mesmo aos que são nossos inimigos, porque todos os homens, qualquer que seja o grupo social, a raça, a nação, a classe a que pertençam são membros da família de Deus e irmãos adotivos do Filho de Deus.”.349

Alfredo Lage cinde o liberalismo: de um lado, a autonomia do Estado e da razão de qualquer subordinação ao transcendente é caracterizada como de molde fascista. De outro, os direitos do homem são cristianizados, tornam-se direitos da pessoa e, por essa via, subordinam o Estado, a justiça, as consciências, a igualdade à “natureza moral do bem comum”

348 RIBEIRO, Fábio A., “Os católicos e o momento nacional”, A Ordem, set/1945, p. 45n.

349 Maritain, em Cristianismo e democracia, citado por MELO, Gladstone Chaves de, “Maritain e a fé na Democracia”, A Ordem, mai/jun 1946, pp. 134-143.

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“O fascismo é concreta e politicamente o liberalismo.[...]Enquanto o senso comum e com ele a filosofia tradicional afirmam que a razão é a medida e a regra dos atos humanos, o racionalismo pretende também que ela seja a medida e a regra de si mesma. [...] Desligando-a entretanto da Suprema Inteligência, os racionalistas forçavam-se a proclamá-la suprema na sua própria ordem humana. [...] Ora, todo deus exige um culto e como repugna à maioria dos homens, mesmo prenhes de uma Razão divina, como Júpiter de Minerva, assentar-se sobre um altar, e como os homens vivem em sociedade, e como todo culto tende a tornar-se público, é bem fácil imaginar com que presteza se formou a religião da ‘Opinião Pública’, e quão facilmente a ‘Razão de Estado’ substituiu a Deusa Razão. Eis em curtas palavras o que é o liberalismo. Politicamente é a tirania – tirania da massa orgânica (por si mesma como partido ou facção sediciosa ou por intermédio do chefe inspirado que a encarne) segundo a doutrina que estabelece a coincidência infalível da Opinião Pública com a Verdade e da Vontade Comum com o Bem Comum – tirania do Estado, concebido como transcendente à sociedade à maneira de um fim último e separado ao qual a pessoa humana e seus direitos estejam subordinados como ao princípio mesmo que os origina – esses dois aspectos concorrem para configurar a imagem disforme do totalitarismo, presente hoje em dia no horror de tantas consciências violentadas. Condenando o liberalismo a Igreja visa antes de tudo salvaguardar os direitos essenciais e inalienáveis do homem, colocado como pessoa acima da sociedade, dotado como ente espiritual e livre de uma dignidade superior à do Estado – esses mesmos direitos que a seu nível e na esfera do direito positivo as instituições democráticas querem explicar e garantir politicamente: o respeito às consciências, a igualdade de todos perante a lei, a subordinação do Estado mesmo a Justiça e a natureza moral do bem comum.” 350

A crítica que fazem ao trecho do artigo do conde Della Torre no Osservatore

Romano, revela o método do esvaziamento. Quando da conveniência os termos são cravados na história e, portanto, impregnados de sua substância, de seu sentido pleno, filosófico, histórico. A observação que fazem à afirmativa do conde, ter “abstraído” o comunismo de sua filosofia, é o procedimento que fazem com os valores da Revolução Francesa, abstraídos da revolução e da democracia burguesas, abstraídos do liberalismo351 para serem convertidos em verdadeiros, em cristãos. Os valores modernos

são espiritualizados, derivados todos da referência humana ao sobrenatural.

“Só uma observação faríamos a estas grandes palavras do Conde Della Torre: seria preferível que ele precisasse melhor seus conceitos referentes ao Comunismo. Quando ele fala em Comunismo despojado de sua filosofia atéia e só como sistema econômico – realmente está fazendo uma abstração, porque o Comunismo, historicamente considerado, é necessariamente ateu, é totalitário, tem o homem apenas como uma engrenagem ou uma roda da grande máquina da produção. De modo que, falando em Comunismo histórico, russo, século XX –, pensamos em ateísmo e desumanismo como uma impregnação íntima e não como superestrutura ou incrustação. [...] De qualquer modo, é da mais alta importância o artigo do diretor do órgão oficioso do Vaticano,

350 LAGE, Alfredo, “O liberalismo fascista”, A Ordem, out/nov 1945, pp. 162-168. Transcrito do “Diário de Notícias” 04/11/45.

351 Também há o verdadeiro: “O medo do liberalismo que suscitou tantos erros e acarretou tantos males ao mundo não nos deverá impedir de reivindicar o verdadeiro liberalismo, o da verdade.” FREI BOAVENTURA, OP. Registro. “Renovação litúrgica e Ação Católica”, A Ordem, ago/1943, p. 86. Transcrito de “O Diário” de 14/07/43.

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porque é de molde a fazer calar os que acusam a Igreja de cúmplice do Capitalismo, e os católicos que gostariam que ela fosse”. 352

Entre comunismo verdadeiro – sua parte de verdade é cristã –353 e cristianismo verdadeiro, até ordem em contrário, nenhuma possibilidade de diálogo. Mas, a pessoa do comunista... é cristã.

A operação implica em um esvaziamento, ou um esfacelamento do outro, separando o que é aproveitável do que não é, nitidamente revelado pela metáfora fisiológica na citação de Santo Agostinho: “A Igreja mata e come”. O outro é devorado, demonstra o próprio Alceu, ou seja, só é reconhecido como projeção do eu.

“Dá-se com a Revolução Russa o mesmo que com a Revolução Francesa. Nela se combinaram elementos radicalmente falsos e perniciosos, frutos da extrema decomposição da Cristandade com elementos moral e socialmente que se achavam dentro da mensagem evangélica e que a Cristandade, pela culpa dos cristãos, ou por ser ainda prematura a sua eclosão, não havia ainda realizado”.354