• Nenhum resultado encontrado

A abertura às vozes serenas e autorizadas da burguesia liberal sinaliza para algum entendimento, talvez quanto à liberdade e pluralidade dos “grupos”. Esses antiliberais que têm horror à hipertrofia do Estado, vislumbram no corporativismo italiano a viabilidade de sua concepção orgânica de sociedade. O elogio da criação do Conselho Nacional de Corporações, obra de Mussolini, é acompanhado por uma clara delimitação do papel do Estado.

“No corporativismo não lhe cabe [ao Estado] mais do que dar força de lei aos acordos assentados pelas várias classes tendo em vista o interesse coletivo. E deste modo, se restituirá ao governo dos povos o sentido cristão, pois que as várias classes, ou digamos, o povo pelas suas classes, desempenha aquela soberania que Deus conferiu a cada grupo social, e o Estado consagra os decretos dessa soberania na lei positiva, em vez de atentar contra ela como acontece no regime liberal e seus derivantes: socialismo, comunismo, etc..”119

O receio é do “monismo estatal”, um Estado hipertrofiado que anulasse a liberdade de movimento da Igreja, considerado uma afronta ao dualismo essencial do universo – natureza e graça – e do ser humano – corpo e alma. Esse dualismo, tão caro aos católicos tomistas do Centro Dom Vital, foi traduzido para a esfera política por San Tiago Dantas120, ao propor, em artigo de janeiro de 1931, uma compatibilidade

118 LIMA, A. A. Política. Rio de Janeiro:Livraria Católica, 1932, cap. VI. 119 Registro. “O corporativismo em Itália”. A Ordem, jan/1934, p. 78.

120 San Tiago Dantas “ainda estudante, vinculou-se no início de 1931 a um círculo de intelectuais cariocas que apoiava as idéias do escritor Plínio Salgado [...] Em março desse ano, Plínio redigiu o manifesto de fundação da Legião Revolucionária de São Paulo [...]. San Tiago Dantas participou [da] criação do núcleo carioca de divulgação do movimento, composto também por Hélio Viana, Lourival Fontes, Augusto Frederico Schmidt e Américo Jacobina Lacombe [todos colaboradores de A Ordem], entre outros”[...] fundou e se tornou um dos principais redatores do jornal A Razão, que defendia o aprofundamento do processo revolucionário iniciado em 1930, combatendo as crescentes reivindicações de reconstitucionalização do país. Passou a trabalhar no gabinete do ministro da Educação e Saúde, Francisco Campos, e no ano seguinte participou, no Rio, da criação da revista Hierarquia, também vinculada às idéias de Plínio Salgado.” Aderiu à AIB, no ano de seu lançamento, em 1932., no mesmo ano em que concluía o curso de direito. Tornou-se professor catedrático de legislação e de economia política na Escola de Belas Artes, sem prejuízo do alto cargo que ocupava no ministério da Educação, e

71

complementar entre catolicismo e fascismo. O catolicismo viria a suprir o caráter inacabado da filosofia fascista: a ausência da finalidade transcendente. A violência política fascista seria substituída pela força moral católica. No centro das preocupações de Dantas, o conflito de classes. É em relação a ele, no enfrentamento da questão social, que o articulista percebe uma proximidade entre o fascismo e a doutrina cristã, ausente nos demais sistemas sociais da época.

“[...] quem conhece na sua estrutura política e econômica, o estado corporativo, a disciplina jurídica sobre as relações coletivas de trabalho, o articulado organismo sindical, cujas extremidades radiculares mergulham nos menores centros do país, certamente reconhecerá nesse aparelho político, tudo o que os sociólogos cristãos têm reclamado para a sociedade. [...]”121

Reconhecendo que a intervenção estatal na vida das pessoas e dos grupos promovida pelo fascismo era maior do que a preconizada pela doutrina social cristã, justifica a violência política daquele regime por ele não contar

“com o fator moral, unificador e harmonizador, na medida em que contaria o estado cristão. E tem de compensar em violência política o que não está controlado pela força moral. Mas, tirando as relações de trabalho do terreno da luta natural em que as deixara o liberalismo, e onde sucessivamente as dominaram o capitalismo e o comunismo, para trata-las no terreno jurídico, condenando toda a violência e estabelecendo os meios judiciários de dirimir conflitos de trabalho, bem se pode dizer que o Fascismo fez obra cristã, – pelo menos de um ângulo todo objetivo em que podemos colocar a questão. E é o caso de relembrarmos aquela frase inicial de Toniolo, e de perguntarmos se o cristianismo não integraria toda a reforma social fascista, “a condition seulement d’en changer l’esprit animateur”. [...]122

passou a colaborar no recém-fundado semanário integralista A Ofensiva. Embora tenha conspirado para a tentativa de tomada de poder contra Getúlio em 1938, com o fracasso do primeiro levante retira-se do movimento. Catedrático de direito civil e comercial da Faculdade de Ciências Econômicas e de direito civil da Faculdade de Direito, ambas vinculadas à Universidade do Brasil, ensinou economia política na Escola do Estado-Maior do Exército e exerceu a direção da Faculdade Nacional de Filosofia, entre 1941- 1945. Representou o Brasil em vários seminários internacionais e na missão Abbink. Atou como assessor pessoal de Vargas, entre 1951 e 1954, em questões como da criação da Rede Ferroviária Federal e da criação da Petrobrás. Retornou à política em 1951, se filiando ao PTB. Eleito deputado federal por MG, em 1958. Ministro das Relações Exteriores durante o período de Tancredo Neves como Primeiro- Ministro, reatou as relações diplomáticas com a URSS e defendeu uma política externa independente; foi Ministro da Fazenda do governo João Goulart, forçado a renunciar pelo insucesso da política de estabilização econômica e pela radicalização política vivenciada pelo país. Faleceu em setembro de 1964. KELLER, Vilma, “San Tiago Dantas” in Abreu, Beloch, Lattman-Weltman & Lamarão (coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Pós-1930. 2a. ed. Rio de janeiro: FGV/CPDOC, 2001, vol. II, pp. 1792-1793. Alceu A. Lima, Sobral Pinto, Leonel Franca eram também colaboradores do jornal A Razão e da revista Hierarquia. TRINDADE, Hélgio. Integralismo. O fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel/Porto Alegre/URGS, 1974, pp. 108-109.

121 DANTAS, San Tiago, “Catolicismo e Fascismo (ensaio para um estudo sobre a doutrina fascista e a questão social)”, A Ordem jan/1931, p. 40.

72

Ora, o espírito animador, a finalidade em mira, no fascismo, ao promover a cooperação de classes, é a nação. Portanto, cumpre verificar se esse fim não contrasta qualquer princípio cristão. Ponderando o caráter “relativo”, “efêmero”, da fórmula fascista – o indivíduo existe para a nação – em relação ao “absoluto” da fórmula cristã – o indivíduo existe para a sociedade, a sociedade para a pessoa, a pessoa para Deus –, busca San Tiago Dantas demonstrar que o regime fascista cumpre o primeiro termo e encaminha o segundo. Mas, ao argumentar como o fascismo, além do fim nacional, promove o segundo termo – “aperfeiçoamento espiritual” –, significativamente usa a expressão “invade praticamente o segundo”, e cita dois exemplos também significativos daquela invasão: o controle, pelo Estado fascista, da formação das consciências através das organizações juvenis fascistas – a Balilla, que lidava com os jovens de 8 a 14 anos – e da instituição do Dopolavoro, que organizava as atividades recreativas e culturais dos trabalhadores.

“Encontramos assim, nesse finalismo nacional, o fundamento doutrinário do fascismo. Mas nele está talvez o que há de efêmero, de contemporâneo, na sua filosofia social. E ainda mais se sente a relatividade, que ainda encerra essa fórmula, diante do absoluto, da fórmula cristã: “O indivíduo existe para a sociedade, a sociedade para a pessoa, e a pessoa para Deus”.

Ora, se tivermos de diferenciar desde já o finalismo nacional fascista do finalismo sobrenatural cristão, podemos dizer que a fórmula fascista abrange o primeiro destes três termos, e invade praticamente o segundo, fazendo inteira abstração do termo final. E digo que invade o segundo, porque em toda a legislação fascista, mesmo econômica, não é difícil descobrir, além do fim nacional, um aperfeiçoamento espiritual do homem, que eu mostraria, por exemplo, nas leis de restrição ética da propriedade privada, e mesmo, de um certo modo, nas obras como a “balilla” e o “dopo lavoro”, embora exista para elas um fim próximo nacional.

E é aqui, nessa dilatação da fórmula finalista, que eu vejo para a sociologia cristã o processo fácil de integrar o fascismo.[...] o fascismo restaura no seu primeiro termo a fórmula cristã, e encaminha o segundo, o que permite dizer dele, que é o mais cristão dos sistemas políticos modernos. Para a sociologia católica todo o trabalho será de exceder o finalismo fascista incorporando-lhe os demais elementos da sua própria fórmula. O que certamente, ao mesmo tempo que a faz integrar os princípios políticos fascistas, lhe dá alça para atingir mais longe na intervenção social.

Ainda há poucos dias, Mussolini, falando à Câmara dos deputados sobre a crise econômica mundial dava ao problema suas cores verdadeiras, e mostrava a impotência do próprio “Fascio” para o resolver. Uma crise destas estaria liquidada na história, se da economia da produção a que o liberalismo nos conduziu, passássemos a uma economia do consumo, que conduziria naturalmente ao justo-preço, e reajustaria as forças produtoras mundiais. Mas uma reforma destas só moralmente se poderia começar. E é aí que o fascismo pára. E aí também que o Cristianismo poderia começar, para continuar”.123

123 DANTAS, San Tiago. “Catolicismo e Fascismo (ensaio para um estudo sobre a doutrina fascista e a questão social)”. A Ordem, jan/1931, pp. 42-43.

73

A esperança depositada no fascismo italiano e a simpatia explícita ao Duce sofrem um abalo quando da publicação da encíclica Non abbiamo bisogno (jun/1931), onde Pio XI denunciava a perseguição fascista às organizações católicas italianas, defendia a Ação Católica das acusações de ser a nova cara do Partito Popolare – cuja extinção foi uma das exigências de Mussolini na concordata de 1929 –, condenava a “estadolatria” e o juramento fascista.

Mas, cauteloso, não incitava os católicos à oposição ao regime; pelo contrário, reafirmava o respeito da Igreja à autoridade legítima do governo e reconhecia os serviços prestados por Mussolini à causa católica – o acordo de Latrão, a eliminação dos comunistas e da maçonaria na Itália. Em editorial de agosto de 1931, comentando a encíclica, A Ordem reverberava as palavras do papa. Atacava o absolutismo do Estado preconizado pelo fascismo, explícito na fórmula fascista, denunciava sua incompatibilidade com a fórmula cristã, ao mesmo tempo em que reconhecia os serviços prestados pelo regime italiano. Em aberto, a possibilidade dele cumprir sua missão histórica, Estado salvador político da Igreja. Há claramente uma admiração e atração pelos regimes de força de direita, mas até o limite deles não se tornarem totalitários, ou seja, interditar à Igreja o acesso à formação da pessoa.

“Para este [Gentile], a única realidade social é o Estado. Nem o indivíduo nem a Igreja possuem existência senão integradas ao tronco do Estado. [...]

E se a pessoa humana, para Gentile, não tem existência substancial, separada da sociedade, também a Igreja não tem liberdade senão concedida pelo Estado. [...] Para o filósofo oficial do Fascismo, portanto, o Estado tem uma “soberania ilimitada” e a Igreja só pode existir como dependência e órgão do Estado. [...]

Eis aí claramente expresso o conceito de absolutismo do Estado tal como o compreende o Fascismo, para o qual o indivíduo só existe como “criação do Estado” e a Igreja só tem liberdade “dentro do Estado”! Esses princípios contradizem categoricamente toda a doutrina filosófica do catolicismo, para o qual o ser humano tem uma existência substancial, uma finalidade independente da do Estado, e a Igreja tem direitos naturais e sobrenaturais invioláveis.

Em face de tal concepção filosófica, era realmente difícil que mais cedo ou mais tarde não rompesse conflito. [...]

Pois, neste momento em que devemos condenar asperamente a traição do fascismo à sua missão social, e em que devemos mostrar a lógica inevitável de suas falsas bases filosóficas e denunciar os atentados que praticou contra a Igreja, como se fosse qualquer fanatismo russo ou mexicano, – não devemos esquecer também os grandes serviços que prestou e ainda pode prestar à Itália e à civilização moderna, como expressamente o reconhece, nesse mesmo admirável documento, o grande pontífice que a Providência em boa hora colocou à frente da Cristandade universal. [...]

Esse dissídio mortal entre a benemérita missão histórica do fascismo e a desastrosa concepção doutrinária de sua filosofia política, é dos problemas mais graves de hoje em dia, na cooperação necessária das duas grandes forças da sociedade – a Igreja e o Estado. Se o fascismo fosse fiel à sua missão histórica, o que infelizmente se torna dia a dia mais duvidoso, poderia figurar na história como o salvador político da civilização

74

cristã. Mas ao contrário, – como tudo desgraçadamente faz crer, – se prosseguir na lógica diabólica dos seus falsos postulados filosóficos, passará em breve para a categoria de mais um napoleonismo efêmero, que Deus nos preserve de se converter apenas em um trágico episódio sangrento do suicídio da civilização burguesa”.124

O incômodo era com a “invasão”, ou absorção, de uma esfera que se queria separada e de domínio pleno da Igreja, a pessoa – delimitada, no dizer de San Tiago Dantas, pelo ponto em que o fascismo pararia e o cristianismo começaria –, terreno de uma luta acirrada pelo domínio das consciências. Significativamente, o atrito originara- se do fato de o Estado italiano chamar para si o controle da formação da juventude italiana – “a juventude é nossa”, dirá Mussolini, e o movimento escoteiro católico foi uma das vítimas desta sentença; também problemática, a separação entre o primeiro e o segundo termos, entre indivíduo e pessoa; e a justificativa de Mussolini para os ataques à Ação Católica Italiana incidia precisamente sobre o primeiro termo, ou seja,a Igreja rompera o acordo da separação dos planos, invadira um território que era monopólio do Estado – a esfera da política –, aqueleda promoção das necessidades do indivíduo.125

Não obstante os atritos, a atração desses católicos é forte neste momento, a ponto de Alceu Amoroso Lima considerar a Igreja tronco do Estado uma situação superior ao laicismo liberal exemplificado pela República Espanhola; e o fascismo um mal menor por reconhecer e conceder o espaço do público à religião, mesmo esta sendo entendida como órgão do Estado.

“Mais realista, mais moderno, mais humano e inteligente, o fascismo não repudia o poder espiritual, mas, segundo a sua concepção totalitária do Estado, considera-o como uma das funções do Estado, incluindo a Igreja entre as repartições públicas e o clero entre os funcionários do Poder.

Essa falsa concepção doutrinária, transparente através de todos os “acordos”, vem enfraquecer, de modo desastroso, os eminentes serviços históricos que o “fascismo” prestou e está prestando à Civilização cristã.

Pior do que essa forma fascista de anticlericalismo, porém, é a forma demagógica, de que a Espanha nos está dando um modelo inexcedível [...] puramente destruidor e ambíguo, que corrompe o corpo da nação com ares de quem o conserva, e em breve será apenas o resíduo de um passado ridículo.

A República Espanhola, não pretende, como o Estado Fascista, servir-se da Igreja como de um instrumento político e não chegou a esse estágio superior de compreensão realista dos fatos. Imbuída de toda a retórica racionalista da Revolução francesa e da sua neta

124 Editorial. “Igreja e Estado. Catolicismo e fascismo”. A Ordem, ago/1931, pp. 67-71.

125 A cisão indivíduo/pessoa, preparando o caminho para o monismo, é creditada ao dualismo cartesiano. “Esse falso dualismo, que separava radicalmente os dois princípios (pensée e étendue), dando-lhes uma união acidental no ente humano, preparou o terreno para o monismo que pouco a pouco foi conquistando todos os domínios e no século XIX veio a formar as duas grandes correntes filosóficas do século, a do monismo idealista partindo dos filósofos românticos alemães Fichte, Hegel, Schelling, Schleiemacher, e a do monismo naturalista de Feuerbach, na Alemanha, de Comte em França, de Spencer na Inglaterra e hoje em dia de toda a civilização anticristã e antiespiritual dos nossos dias.” Idem, p. 67.

75

[3a. República] não olha para os fatos [...] e sim para as idéias soltas da sua fantasia subjetiva. E para estas, a Igreja ainda é a reação, o obscurantismo”.126

Na consciência destes católicos a tarefa era precisamente deter a evolução lógica da história e reagir a um processo que tudo indicava levaria ao socialismo e ao comunismo. Essa a grande missão histórica do fascismo: deter a evolução para o socialismo, mostrar que ela não era inexorável, reagir. A aversão ao liberalismo também se embasava na percepção de que ele aplainava o caminho para essa evolução natural. Neste momento, este o sentido pleno do termo pelo qual os católicos de A Ordem tanto se orgulhavam: reacionário. Internamente, o termo casava-se perfeitamente com outro, também orgulhosamente ostentado: ultramontano.127 Reacionário na ordem da política, ultramontano na esfera do espírito. A visita de Mussolini ao papa dá esperança na viabilidade deste convívio, simbolicamente representada pela “reconciliação entre os dois estados”.

“A visita do Chefe do Governo italiano e a acolhida que recebeu no Vaticano, são fatos da mais alta significação não somente para os católicos da Itália como para os do mundo inteiro.

Antes de tudo esta visita significa que já se acham aplainadas todas as dificuldades surgidas depois do Pacto de Latrão. E tem de ser ainda interpretada como uma prova de confiança do Santo Padre na lealdade e no cavalheirismo de Mussolini, na honestidade dos seus esforços para manter estreitamente unidas as relações entre a Itália e o Vaticano.

É evidente que para os destinos da Igreja tem valor capital a natureza das relações que mantiver com o Governo italiano. E assim sendo, nós católicos de todas as paragens só temos razão para nos alegrarmos com a notícia da reconciliação entre os dois estados, a que a visita de Mussolini veio dar um caráter solene e uma repercussão mundial”.128