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Maritain fornece uma inteligibilidade militante dos acontecimentos – na qual liberdade humana e obediência são indissociáveis – ao situar a guerra na culminância da crise de um mundo que não seria mais o mesmo, ou seja, de um mundo que, com o passar do tempo, se modificara: “se originara na antiga cristandade e [cujas] forças vitais mais profundas” eram frutos de uma longa semeadura das idéias da liberdade, do direito, do progresso humano, da “concepção da liberdade religiosa e a verdadeira confiança na razão e na grandeza do homem.”216

Mas todo “esse imenso capital histórico de energia e de verdade acumulado durante séculos” foi progressivamente prejudicado, diminuído, enfraquecido a partir do

215 Registro. “O Brasil em guerra”, A Ordem, out/1942, p. 350; p. 352.

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momento em que o homem moderno acreditou poder salvar-se sozinho e rejeitou a ação da Providência na história; em que dissociou a paz, a fraternidade e a liberdade do cristianismo, abraçando uma “liberdade que excluiu o domínio de si mesmo e da responsabilidade moral”; em que confiou demais no maquinismo o qual ele não soube controlar nem orientar retamente.

“O fato político mais significante dos tempos modernos, o conceito e a defesa dos direitos da pessoa humana e dos direitos do povo foi desviado pela perda do conceito e do senso da finalidade e pelo repúdio da ação do fermento evangélico sobre a história humana”.217

“Era normal em si mesmo” que ao longo dos séculos ocorresse a “autonomia” das realidades temporais em relação às espirituais. No entanto, o que deveria ser “um processo de distinção em vista de uma melhor união”, transformou-se em brutal separação, que afastou “progressivamente a civilização terrestre de toda inspiração cristã”.218

É recorrente no discurso católico a identificação do desvio com o mal,219 o que justificaria a intervenção da Igreja no século para a correção de seu rumo. Como o mal não cessa no mundo, o desvio seria algo recorrente na história humana e sua culminância corresponderia aos vários colapsos – Alceu identifica seis – da civilização ocidental. Existiria algo como uma “lei histórica” a justificar – e a afastar a pecha de oportunista – a tutela da Igreja sobre as várias civilizações, como se a condição mundana da espécie humana correspondesse à sua menoridade. Mesmo incompreendida, a Igreja educa e fecunda, domestica, sempre a velar a humanidade,

Mater et Magistra.

“Se percorrermos à vol d’oiseau, os 20 séculos de história do cristianismo no Ocidente – durante os quais um movimento irreversível de conquista da liberdade e de afirmação política democrática foi sempre a nota característica dessa longa e gloriosa história – veremos que a Igreja já enfrentou, educou e fecundou moralmente seis tipos de civilizações e prepara-se agora para domesticar o sétimo (...)

Não que o faça por oportunismo (...) Fá-lo por obediência à lei histórica que a vem guiando desde os seus primórdios (...). Sempre que surge uma civilização nova das ruínas de uma civilização passada, a Igreja está junto ao seu berço, para lhe ensinar o caminho da vida eterna, condição indispensável da vida terrena”.220

217 Idem, p. 9.

218 Idem., p. 15.

219 Na definição tomista, “o mal é o desvio na linha da operação, na linha que une o ente criado à perfeição para a qual ele existe.” LAGE, Alfredo, “Da Fundamental Distinção entre Indivíduo e Pessoa na Obra de Jacques Maritain”, A Ordem, mai/jun/1946, p. 51.

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Mas, o que impressiona, o que causa perplexidade, é que no discurso maritainiano o desvio vem acoplado a uma inversão acachapante, a uma apropriação da história secular221 que coloca o racionalismo contra a razão, que transforma o humanismo antropocêntrico em inumano, e faz da Igreja a campeã desde sempre da liberdade e da razão. Assim, o desvio, o “longo processo de secularização do cristão e da civilização cristã que caracteriza a idade moderna” foi agravado pela “mentalidade racionalista (por racionalismo eu [Maritain] entendo o enfraquecimento da razão humana, considerada como a única e suprema regra do ser e da verdade) e pelo que chamamos o ‘humanismo antropocêntrico’, isto é uma concepção antropocêntrica do homem e da cultura”.222

Portanto, foi a concepção cristã que foi secularizada e não as instituições do mundo ocidental. De outro modo, aqueles valores e ideais tidos como modernos, instrumentos da libertação do homem do jugo sobrenatural, são erigidos como de base cristã, como “sentimento cristão secularizado”.

Segundo esse discurso católico, “o totalitarismo constitui a última etapa” daquele longo processo de secularização, de “descristianização”223, sendo o comunismo “a exasperação do humanismo antropocêntrico”, seu “último estágio”, por sonhar “com uma emancipação total e pretende(r) substituir o universalismo do cristianismo por seu universalismo terrestre”; ao passo que o nazismo seria o “resultado da reação contra toda espécie de humanismo e racionalidade dignos deste nome”, do “ressentimento oculto contra a razão e a dignidade humanas. Desmascarado o homem, aparece a figura do animal; a especificidade humana, que o racionalismo procurou reduzir a um puro espírito, agora se reduz à animalidade” e “um abismo mais profundo que a animalidade aparece nessa máscara do homem: as forças satânicas”. Enquanto o marxismo, “continuação agravada dos erros de Rousseau”, seria a expressão do “fanatismo racionalista e do otimismo confiante em face das possibilidades da natureza humana e da sua bondade intrínseca”, o racismo nazista, “anti-rousseauismo radical”, estaria

221 “Esta reviravolta é perfeitamente exprimida pelo Papa Paulo VI, quando de uma declaração pública: falando da Revolução Francesa, o Pontífice pode, contra tudo o que foi pensado e dito por seus predecessores, concluir tranqüilamente: ‘Assim, tudo isto era cristão, mas havia tomado um revestimento anticristão, laico, irreligioso.’ Leia-se: a essência do Homem estaria sempre presente na história escondida do Espírito Divino. Exemplo bastante estranho, onde fenômeno e essência divergiriam na raiz...” ROMANO, R. Brasil: Igreja contra Estado, p. 249. Parece-nos, apenas, que essa reviravolta inicia-se já na década de 1940.

222 MARITAIN, “A Crise da Civilização”, A Ordem, fev/1943, pp. 6; 8-9.

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fundado no “misticismo do instinto que odeia a razão e a inteligência e no pessimismo ressentido que procura desmascarar a maldade essencial do homem e das coisas.”224

A recusa total tanto da “heresia marxista” quanto do “reino do mal” é acompanhada por uma aproximação crítica do liberalismo, por este compartilhar, com o marxismo, “da mesma herança racionalista”, da mesma indiferença e desprezo pelas coisas da alma, do mesmo apego à ordem terrestre e confiança ilimitada na capacidade humana, como se “a ordem e a justiça sobre a terra pudessem ser instauradas por meios exclusivamente naturais”; “é a mesma teoria orgulhosa do progresso”. Mas, há uma diferença fundamental que motiva os católicos maritainianos a realizarem a aproximação a “essa democracia eivada de todos os erros, prenhe do mesmo orgulho que gera o totalitarismo, mas que tem, ao menos, essa virtude de ser indeterminada.”225

Aquilo que antes era motivo de inquietação e de desconforto por parte do católico dado seu apego à ordem, à constância, à estabilidade – o caráter imprevisível, instável, indeterminado da democracia liberal –, é agora, em um momento de crise profunda da civilização ocidental, quando um mundo parecia se acabar, erigido em virtual virtude. Isto porque essa virtual virtude colocava para o católico a possibilidade de “desviar o curso dos acontecimentos, ao passo que, do outro lado, eles [os totalitarismos] já possuem a inevitabilidade das conseqüências perfeitas (...), já inauguraram o Milênio [e esse] Milênio (...) não traz a nossa marca, a marca do Reino.” Não que haja conivência com “a máquina sinistra e anacrônica do liberalismo, [e com a] Ordem econômica burguesa, esse monstro pessoal e frio, que aliás, está provado à saciedade, prefere capitular diante do Moloch totalitário a abrir mão de um só de seus privilégios, da menor de suas regalias perante a massa de oprimidos que explora.”226

A aposta não é naquilo que a democracia liberal “tem de positivo, mas pelas virtualidades que ainda contenha”, por ser ainda possível sua “reconciliação com o cristianismo”. Para o maritainiano, ao contrário do totalitarismo – que já havia instituído o Um na história –, na democracia o destino do homem ainda permanecia em aberto, possível ainda fazê-lo voltar ao reto curso, sem o que, necessariamente, terminaria em alguma forma de totalitarismo. Ou seja, terminaria em um fim último, na vitória de uma parte, que não seria de Deus, mas “de uma classe, de uma raça ou de um partido (...) e

224 MARITAIN, J. “A Crise da Civilização”, A Ordem, fev/1943, passim.

225 LAGE, Alfredo, “O Sentido Apocalíptico da História”, A Ordem, jun/1942, pp. 17-18. 226 Idem, p. 18.

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como [essa] parte não contém de si um princípio de integração só lhe resta devorar, destruir tudo o mais”.227

Talvez a esperança do católico, por paradoxal que pareça, resida justamente no fato de a democracia estar instaurada sob o signo da divisão e, portanto, do conflito,228 em correspondência com a natureza humana, também colocada sob o signo da divisão, do conflito, da corrupção e da morte; mas não só, há como que, na concepção maritainiana, uma perfectibilidade em potencial embutida na natureza humana , campo fértil para a atuação do “fermento evangélico”. “Só em união com Deus pode o homem manter-se uno.” Imperfeito, mas perfectível.229

Em oposição a Lutero, que depreciou a natureza humana ao situar o surgimento do conflito com a queda – e a derivar daí sua visão trágica e pessimista de uma vontade que sempre se dobra aos instintos, natureza condenada ao pecado –, aqui o conflito é inerente à natureza humana, anterior à queda. Há uma tensão mesmo antes da queda. Este conflito interno torna-se a fonte de todos os conflitos; há um deslocamento da origem do conflito da sociedade para o interior humano, para a

“tensão que o habita, [que] não se explicaria sem uma duplicidade de princípios que afete a própria substância de que é feito, embora não lhe destrua a unidade. É aí que se inscreve a origem de todos os conflitos. [...]

trata-se não mais, apenas, de refletir sobre o mundo e de conhecê-lo, mas de agir sobre ele e de transformá-lo. Assim, o eixo do conflito, se assim nos podemos exprimir, desloca-se para fora do homem, e, de princípio interior de sua dinâmica passa a exercer- se, em última análise entre o homem e o mundo exterior, termo supremo de sua atividade e motor principal de seu desenvolvimento através das sucessivas etapas da história”.230

Moralizada a origem de todos os conflitos, cria-se um campo aberto para o ultimato: o apaziguamento social só é factível a partir da conversão de todos, da turba transformada em peregrina, e, enquanto peregrina, marcada pelo signo da discórdia, do conflito, só que com uma “capacidade” maior de resistência ao mal e de mais caminhar em direção à perfectibilidade, de desenvolver suas potencialidades para o bem. Nesse sentido, a posição de Maritain diante da questão sobre qual atitude adotar frente aos

227 Idem, pp. 17-18;25.

228 Ver LEFORT, Claude. “A Questão da Democracia” em Pensando o Político. Ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Trad. Eliana M. Souza. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1991, pp. 23-36. 229 Há uma hierarquia, uma ordem, nos três caminhos que se abrem a todos: uma vida para Deus (que corresponde ao santo), uma vida para o mundo (herói) e uma vida para si mesmo (sibarita). O fascínio pelo heroísmo, pela coragem em se sacrificar é explícito, mas não sem deixar demarcada a diferença: “são bandos de verdades sem rumo”. Registro. “As responsabilidades do cristianismo”. A Ordem, out/1942. 230 LAGE, Alfredo. “O conflito entre o espírito e a vida”. A Ordem, dez/1941, p. 40. Aqui o maritainiano se ancora em Berdiaeff , Thibon e Rougemont.

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comunistas – nem perseguição nem aliança, mas de convertê-los –, não é retórica, mas profundamente coerente.

“É necessário que, a despeito da queda, tenham-lhe restado intactas suficientes potencialidades para o bem para que a graça de Deus possa encontrar um campo propício de aplicação neste mundo, para que o sangue de Cristo não tenha caído em vão sobre a terra; é preciso que o conflito mesmo, a luta entre o bem e o mal se possa tornar fecunda. Cristo prevê que sua vinda determinaria uma agravação das formas temporais do conflito [...] “Pensais que vim trazer paz à terra? Não eu vô-lo digo, mas divisão” (Lucas, 12, 51). Assim fala Jesus para a turba. Mas com seus discípulos, a hora da despedida, sua linguagem é bem diversa: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (João, 14, 27). Que essas palavras se cumpram também em nossos corações”.231

Talvez essa seja uma das possibilidades para compreender a afirmação de Alceu Amoroso Lima sobre a “verdadeira democracia”.

“Esse regime político não é privilégio nem de um povo nem de uma época. Não nasceu no século XVIII ocidental, nem no século V antes de Cristo, nem na China imemorial nem com os primitivos. Nasceu com a própria natureza humana”.232

Efetivamente, ocorre uma mudança na concepção da natureza humana como

dominada pelo pecado, preponderantemente perversa e corrompida, base da concepção

integrista e pessimista da história como reino progressivo do mal – correlata ao projeto político de um Estado forte, disciplinador. Mas, também, a história não passa a ser concebida como reino progressivo do bem até sua plena realização na parusia. A nova concepção da história – e de progresso – que se esboça não é evolucionista, não crê que o mundo caminhe sempre para o melhor. Por estar a história sujeita à ação da Providência, o homem não tem o controle de seu destino, que não é resultado de sua autonomia, nem de leis históricas inexoráveis. Daí a irritação do maritainiano com o “otimismo burguês, manifestação de orgulho, de auto-suficiência”,233 e com “essa idéia

231 Idem, pp. 57-58. A radicalidade em Lucas – a boa nova acirra os conflitos, tensiona ao máximo a divisão – não contradiz, antes complementa João e remete à intolerância de Mateus, do quem não é comigo é contra mim, radicalidade que é também explicitada em Mateus (10, 34-38): “Não julgueis que vim trazer a paz à terra;não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho do seu pai, e a filha de sua mãe, e a nora da sua sogra. E os inimigos do homem (serão) os seus próprios domésticos. O que ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim; e o que ama o filho ou a filha mais do que a mim, não é digno de mim. E o que não toma a sua cruz e (não) me segue, não é digno de mim.” Nas palavras de Maritain, “o mundo não pode ser neutro em relação ao Reino de Deus. Ou aspira por ele e por ele é vivificado, ou o combate. Em outras palavras, a relação do mundo para com o universo da graça ou é uma relação de união e de inclusão, ou é uma relação de separação e de conflito. Sobre a Filosofia da História. Trad. Edgar de G. da Mata Machado. São Paulo: Herder, 1962, p. 136.

232 LIMA, Alceu A., A Igreja e a Democracia, A Ordem, jan/1947, pp. 16-17. 233 LAGE, Alfredo, “O Sentido Apocalíptico da História”, A Ordem, jun/1942, p. 11.

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de controlar os acontecimentos (que) é a causa mais anti-apocalíptica do mundo porque contra a esperança cristã”.234

No tempo, a humanidade caminha, e progride, no bem e no mal, mas

“se pensarmos na verdade oculta, e no que dura e vale além do momento, é o aspecto positivo e fecundo da história que mais há de reter nossa atenção, e teremos confiança nos esforços dos homens, não por ingenuidade, mas porque pensaremos no que Deus faz por eles apesar deles. E a realidade, tal como vai aparecer mais tarde, justificará esta confiança”.235

O católico é antes de tudo aquele que espera, confia e que carrega a esperança da bem-aventurança eterna, e em um Deus que é pai. Mas não só. Ele age, como um soldado, como um apóstolo, movido pela caridade, pois é aquele que tem a incumbência de anunciar a boa nova, que deve ser dirigida a todos, sem distinções. A humanidade caminha, sofrendo e esperando, angustiada por aquele encontro: esse o drama humano. Mas, nesse caminhar, a vontade humana também conta. A Providência age, interfere no mundo, porém sem que isso signifique a supressão do livre-arbítrio, atributo natural do homem, obra do Criador.

“Seria lamentável erro supor que o ‘tempo’ só contasse para aperfeiçoar o homem no mal, e não, no bem. E, na verdade, esta é a visão estreita de muitos acerca da história humana do mundo. Através destas lentes, não podem ver que, de fato, a era do humanismo inumano, a era do antropocentrismo, como a era do “sacro imperium” medieval, desempenharam um papel importantíssimo na evolução homogênea da cristandade. E só como tais, tanto uma como a outra nos pode merecer atenção, no momento presente.

Com isso, evidentemente, não queremos condicionar o progresso social- temporal à necessidade dos erros. Mas queremos afirmar, e, de fato, afirmamos que, mesmo sem estes erros possuírem a consciência de sua destinação, no plano providencial de Deus, eles se entrosam, se articulam e, sobretudo, servem aos desígnios de Deus. D’outra forma, teríamos que negar a Deus a capacidade que só Ele possui, de tirar o bem do mal”.236

234 “Tanto o otimismo burguês como o otimismo imanente que há no finalismo evolucionista, tudo isso se cristaliza, sob formulações diferentes, no pensamento e na pessoa do comunista, dando-lhe uma euforia muito singular. O comunista é intelectualmente, o homem que possui a chave e a solução dos problemas econômicos, sociais e políticos. A solução de nenhum problema lhe será vedada; pode, provisoriamente, ignorar a solução ou a explicação de determinado episódio, mas isso, unicamente, porque não fez incidir sobre o episódio a luz da dialética ternária do materialismo histórico. (...) O católico entretanto não tem, pelo fato de ser católico, a chave dos problemas naturais. Pode e deve estudá-los com toda a objetividade.” CARNEIRO, J. Fernando, “Os Católicos em Face dos Comunistas e dos Integralistas”, A Ordem, abr/mai/1944, pp. 70-71.

235 MARITAIN, Jacques, “A liberdade do cristão”, Vozes de Petrópolis, mai/1939, p. 284.

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O progresso como evolução homogênea, périplo humano que não tem fim no mundo – “em que somos viajantes e não habitantes” –,237 onde a humanidade238 por vezes toma o caminho da perfectibilidade ou dele se afasta; assim, a vontade humana influencia a história, há a possibilidade de escolha, só que em um plano diferente –

sem...consciência da destinação – do plano providencial Daquele que tudo conhece.239 Nessa concepção, a ambivalência do fato passa a ser central. “Nenhum acontecimento humano é absolutamente puro, nenhum acontecimento humano é absolutamente mau – desde que seja considerado na perspectiva do valor cultural e histórico.”240

Assim, todo fato é parcialmente positivado, encerra lições, gera necessidades, provê o senso de oportunidade, prepara a atualização. Também, se há ações que vêm “de um coração separado da graça e da caridade e que diretamente fazem crescer o montante do mal do mundo [...] há também ações [...] que são boas (na ordem natural, entenda-se) e que são cometidas por homens pecadores; não têm valor algum para a vida eterna, mas têm um valor para o mundo. [...] tais ações cooperam, de uma forma ou de outra, para o acréscimo do bem no mundo”.241 Abertura ao mundo, nenhum espaço para a negação da história.

Portanto, todo acontecimento pode potencialmente ser apropriado pelo católico e transformado em argumento/força, em arma política, ao ser traduzido como expressão da ação do sobrenatural na história. Uma catástrofe como a guerra, pode, por exemplo,

237 LIMA, Alceu A.“Novo Mundo e Mundo Novo” A Ordem, out/1942, p. 35.

238 A universalidade católica é claramente expressa nos “princípios gerais” para a realização do Congresso da Democracia Cristã na América, decididos em reunião realizado em abril de 1947, em Montevidéu, com a participação de representantes do Uruguai, Chile, Argentina e Brasil (Alceu). “Organizar a humanidade, sem prejuízo dos Estados particulares, em uma comunidade internacional de direito que sem reservas consagre a tutela internacional dos direitos da pessoa humana, que estabeleça a igualdade jurídica dos Estados, por meio de um poder judiciário, de jurisdição incondicional e universal, e que realize o bem comum da paz.” Entrevista de ATHAYDE, Tristão de ao “Diário de Notícias”, A Ordem, jul/ago/set/1947, p. 190.

239 Segundo Tomás de Aquino, “a diferença de plano entre os dois termos [ infalibilidade da presciência divina e liberdade humana] não implica nenhuma necessidade de um sobre o outro: ver alguém sentar-se não é obrigá-lo a se sentar. Desse modo, Deus não pode se enganar em sua ciência que vê todas as coisas no presente de sua eternidade, e o homem é livre em sua atividade de criatura temporalmente situada.” O Aquinate identifica quatro “causas que desembocam no ato livre (...) : a razão como causa formal, as paixões do apetite sensível a influir sobre a maneira pela qual o objeto se apresenta à vontade, a vontade que se move por si mesma em função do fim que persegue, enfim, o próprio Deus.” Tomás também possui “toda uma doutrina do livre-arbítrio diante do acaso, da ordem do universo, e finalmente uma