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Foi essa reflexão que instrumentalizou os intelectuais católicos do Centro Dom Vital a realizarem, através da revista A Ordem, o trabalho de atualização do discurso político católico no Brasil da década de 1940. Constata-se efetivamente a ausência de originalidade nos textos vitalistas, pois são antes de tudo divulgadores da filosofia política de Maritain. Mas chama a atenção do historiador uma certa assimetria entre o

52 PAVAN, Antonio. “Maritain e il Pluralismo”. in Giancarlo Galeazzi (org.) Persona, Società, Educazione in Jacques Maritain. Antologia del pensiero filosofico e della critica. Milano: Massimo, 1979, p. 281. Para uma periodização do pensamento político de Maritain, ver CAMPANINI, Giorgio. “Introduzione”. in Jacques Maritain. Scritti e Manifesti Politici (1933-1939). Brescia: Morcelliana, 1978, pp. 9-15. Para uma abordagem articulada das obras políticas de Maritain, ver BARS, Henry La politique selon Jacques Maritain. Paris: Les Éditions Ouvrières, 1961.

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tempo do desenvolvimento do pensamento do mestre e sua leitura pelos seguidores. O que emerge é a especificidade assumida pela elaboração maritainiana – sendo inclusive, às vezes, omitida –– ao ser inserida no embate político tanto interno à Igreja quanto externo , ou seja, do Brasil daquela época.

O próprio caráter genérico e progressivo em relação à democracia liberal daquela formulação permitia aos vitalistas transitarem pelas obras do mestre, colocando em relevo uma obra e omitindo outra, ou realçando aspectos não centrais no ajuste à situação específica vivida. Assim, por exemplo, se em 1951, Maritain publica “Man and the State”, onde avalia a democracia norte-americana como a mais propensa a receber a refração dos princípios cristãos em suas instituições, vitalistas engajados na campanha contra o governo de Vargas, citam-na para denunciar a “praga do nacionalismo”. Outro elemento importante utilizado era o recurso à tradição, momento em que o articulista de

A Ordem, talvez irritado com as derrotas eleitorais sucessivas, faz o discurso se desprender – de modo aparente e fugaz – do contingente para proclamar o direito, o interesse superior da Igreja, como quando recorre a Tomás de Aquino para afirmar a indiferença de fundo da Igreja em face da monarquia, da aristocracia ou da democracia, desde que seus direitos fossem respeitados.

Assim, o nosso trabalho apresenta um duplo escopo: mostrar a presença no discurso maritainiano da atualização de elementos do sistema de representações forjado na tradição cristã, e como aquele discurso foi adaptado pelos vitalistas ao Brasil de meados do XX. Mas, se os tempos são assimétricos, se a filosofia política de Maritain é traduzida para a especificidade brasileira, algo atravessa por inteiro o projeto de atualização: a oscilação em relação ao outro.

Entendemos que a elaboração que possibilitou a atualização do discurso político católico no período aqui abordado possui como linhas mestras elementos que estão na própria raiz do cristianismo, especialmente na afirmação da “novidade cristã” pelos fundadores e pelos Padres. Acreditamos que há uma simetria entre os fundamentos da tradição exegética e a leitura que os maritainianos realizam da história, entre a atitude adotada pelos “apóstolos da boa nova para com os judeus” e a atitude que os adeptos da atualização assumiram em relação aos adversários internos; e uma terceira simetria entre a postura adotada por um Justino, por exemplo, em relação à filosofia pagã e a atitude adotada por Maritain em relação às ideologias que sustentavam as propostas laicas de sociedade. A unificar essas três simetrias, a dialética cristã, cujo cerne é um movimento que oscila entre a aproximação e o distanciamento.

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Um dos objetivos centrais deste trabalho é justamente o de precisar os momentos dessa oscilação do discurso político católico no Brasil, visando seu descomprometimento com concepções autoritárias e antiliberais da sociedade, e sua aproximação/apropriação de elementos da cultura moderna, aderindo à democracia e propugnando pela “substancial aceitação de uma sociedade pluralista e democrática, na qual os católicos deveriam mover-se autonomamente sobre o plano político.”53

É sob o forte impacto da obra de Jacques Maritain que os intelectuais católicos se empenham no trabalho de apropriação de valores liberais rearticulando-os no interior da doutrina católica, tarefa de adequar o cristianismo à democracia e à liberdade, subordinando a esta o princípio da autoridade, esforço empreendido para fazer com que a unidade acolhesse a diversidade.

Tratava-se de garantir o caráter integral, imutável dos princípios e das regras do agir cristãos e, ao mesmo tempo, reconhecendo-se que os tempos são sempre outros, construir margens de maleabilidade de aplicação, através da ação política, daqueles princípios e daquelas regras, visando à atualização da Igreja, sua sobrevivência e sua interferência na esfera do público.

Operação delicada porque implicava em não afrontar a dogmática católica, em manter-se fiel ao magistério papal, em evitar qualquer suspeita de modernismo, de historicismo, bem como de capitulação diante do pensamento laico. Não obstante todo o cuidado, essas acusações não deixaram de ser desferidas por aqueles setores que internamente propugnavam pelo engajamento da Igreja no integralismo ou em um projeto militarista nacionalista católico, e que, externamente, tinham a Espanha de Franco como modelo ideal de Estado católico.

Além do mais, a mudança de sentido do discurso implicava também em uma revisão da doutrina da ordem visceralmente antiliberal, autoritária, antilaicista e nacionalista difundida pelo Centro Dom Vital em sua fase jacksoniana. Nessa revisão, a possível autocrítica foi transformada em ato de contrição, foi relativizada via a absolutização moral de toda a ação política – e repulsa indignada à realpolitik bismarckiana e ao realismo maquiavélico –, com o intuito de apagar qualquer traço do comprometimento com o Estado autoritário getulista. Invocou-se, então, a verdadeira

democracia, também os mal-entendidos, os equívocos, as incompreensões, a boa

vontade, na tentativa de preservar os direitos sacratíssimos da Igreja das vicissitudes

53 VERUCCI, Guido La Chiesa nella Società Contemporanea. Dal primo dopoguerra al Concilio Vaticano II. Bari: Laterza, 1988, pp. 133-139.

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contingentes e acidentais dos tempos, manobra discursiva esta sempre recolocada pela instituição na justificativa de sua perenidade.54

Elabora-se então uma concepção da história em que uma determinada idéia de progresso passa a ter um lugar privilegiado, em que a ambivalência do fato passa a ser central. “Nenhum acontecimento humano é absolutamente puro, nenhum acontecimento humano é absolutamente mau – desde que seja considerado na perspectiva do valor cultural e histórico.”55

Assim, todo fato é parcialmente positivado, encerra lições, gera necessidades, provê o senso de oportunidade, prepara a atualização. Também, se há ações que vêm “de um coração separado da graça e da caridade e que diretamente fazem crescer o montante do mal do mundo [...] há também ações [...] que são boas (na ordem natural, entenda-se) e que são cometidas por homens pecadores; não têm valor algum para a vida eterna, mas têm um valor para o mundo. [...] tais ações cooperam, de uma forma ou de outra, para o acréscimo do bem no mundo”.56 Abertura ao século, nenhum espaço

para a negação da história.

Outro ponto é que qualquer nova concepção católica da história não pode ser desvinculada do próprio existir da Igreja Católica Apostólica Romana que, por definição, é uma instituição que se pretende universal, cujo centro de decisões acerca das diretrizes pastorais reside na Cúria Romana. Portanto, buscamos estabelecer as conexões daquela reinvenção com os movimentos e reflexões do catolicismo mundial e com as orientações da Sé romana, bem como seu diálogo com os projetos laicos em disputa no Brasil, expresso pelo envolvimento de seus agentes nos acontecimentos do século, como, por exemplo, com o integralismo, com o Estado Novo e, posteriormente, com a UDN.

A mudança de sentido do discurso57 católico no Brasil teve forte repercussão na

54 “Nossa geração foi cúmplice dessa derrocada. Cúmplice, se a considerarmos sem boa vontade. Vítima, se levarmos em conta que a reação antiliberal foi muito além de nossas intenções e quando combatíamos a democracia liberal, não combatíamos senão a corrupção burguesa da democracia. E quando hoje defendemos a democracia verdadeira, estamos querendo preservá-la contra os abusos antiliberais, tanto do reacionarismo como do proletarismo.” “O mal-entendido se deu, como sempre, por erros recíprocos, por falsas tradições e falsas interpretações políticas dos princípios da vida eterna.” LIMA, Alceu Amoroso , “A Igreja e a Democracia”, A Ordem, jan/1947, p. 18; 28. É o caso de questionarmos, com R. Romano: “Parafraseando Merleau-Ponty, não se poderia dizer que os católicos sempre se dirão enganados no pretérito, infalíveis no presente e inocentes no futuro?” ROMANO, Roberto, Brasil: Igreja contra Estado. Crítica ao Populismo Católico. São Paulo, Kairós, 1979, pp. 147-148, nota 10.

55 MARITAIN, Jacques. Sobre a filosofia da história.Trad. Edgar de Godoi da Mata Machado. São Paulo: Herder, 1962, p. 139.

56 Idem, p. 142.

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práxis política e social da Igreja. Em seu esforço, os católicos reelaboraram alguns elementos fundantes daquele pensamento contra-revolucionário, absorveram outros predominantes no pensamento secular, conferindo um novo sentido ao discurso, ajustado às transformações nas forças sociais e nas relações entre elas. Acreditamos que foi em razão desse novo sentido e da mudança da atitude política católica que se constituiu, no Brasil da segunda metade do século XX, um tipo de católico progressista, encarnado nos intelectuais de A Ordem, forma nova de se adequar ao jogo democrático – de se enraizar no ordenamento burguês – e manter a Igreja integral. Possui a Igreja, segundo a cátedra de um papa integrista, a “virtude maravilhosa para acomodar-se às várias condições da sociedade civil, de modo que, salvas sempre a integridade e imutabilidade da fé e da moral, incólumes também seus direitos sacratíssimos, facilmente se sujeita às vicissitudes contingentes e acidentais dos tempos e às novas exigências da sociedade”.58

Aquele progressismo católico está vinculado tanto à noção da ambivalência que todo acontecimento humano carrega quanto à do aumento do montante do bem no mundo, mesmo se promovido por pecadores. Portanto, está ligado a uma percepção positiva da história, à “pressão das realidades”, aos sinais do tempo. A questão que se coloca é qual a relação desse progressismo com o posicionamento no mundo da política em geral, e mais particularmente da política partidária.

A simples resposta de que ser progressista é estar em sintonia com as forças do tempo não é satisfatória, já que na década de 1930, o ambiente de domínio é tanto ser reacionário quanto comunista. Mas se considerarmos que a pauta do debate – e portanto, a definição das posições – próprio à sociedade moderna foi determinada pela doutrina liberal, nesse sentido, o progressista é o adepto da confiança na intervenção da livre vontade humana na construção de um futuro para melhor, bem como dos valores universais da Revolução Francesa.

Assim, aqueles progressistas católicos aproximam-se dos liberais quando aderem à liberdade, à pluralidade da cidade, à democracia, mas a distância permanece irredutível quanto à concepção de progresso – mesmo omitindo a Providência ou considerando-a em sintonia com a livre vontade humana: entre um aumento do mesmo de cada idéia retrabalhada, reproduzida, reformada, recriada, e é a mudança de sentido assim instituída e instituinte do processo social que tem de estar na mira da arma da crítica.” FRANCO, Maria Sylvia C.. O Tempo das Ilusões. In: M. Chauí & Franco, M. S. de Carvalho. Ideologia e mobilização popular. São Paulo: Paz e Terra/Cedec, 1978, p. 209.

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montante do bem no mundo e uma esperança toda colocada fora da história, há uma distância intransponível.

Se a separação, proposta por Maritain, entre Igreja (integral, toda centrada na vida eterna) e cristandades (regimes temporais cujas estruturas levam em graus e modos diversos a marca cristã) sinalizou, por um lado, para uma recusa de conceber a Igreja plenamente concretizada em algum tempo histórico – portanto, concebendo-a como

trans-histórica –, por outro, acreditamos, “liberou” seus agentes a se posicionarem diversamente, em sintonia com a avaliação que faziam dos acontecimentos, flexibilizando seu campo de atuação.