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Artistas pesquisadores guiados-pela-prática: entre a Pesquisa Performática,

2. CAPÍTULO I Alteridades de um gênero composicional A Música

2.2. Abordagem teórico-metodológica Chaves para uma formulação

2.2.2. Artistas pesquisadores guiados-pela-prática: entre a Pesquisa Performática,

Para aproximarmos agora das ferramentas metodológicas voltadas à análise de processos criativos, circunscritos no âmbito da Música e Artes do Movimento/Dança, apresento seguidamente uma taxonomia de sub-áreas temáticas (domínios do estudo) que ofereçam uma maior visibilidade sobre o repertório de fontes utilizadas. Tal como foi indicado anteriormente, a pesquisa contempla uma abordagem

facetada, dentro da qual poderia se distinguir o: 1. Pós-análise (desconstrução retrospectiva) e mapeamento do processo criativo ligado à composição da obra

DESFAS[c/z]ES; 2. Textos e tratados técnicos relacionados ao ofício compositivo do

gênero Música Incidental, ou bem, ao estudo técnico-procedimental de aspectos envolvidos no fazer musical/dancístico (Objeto Sonoro schaefferiano, Laban

Movement Analysis, Dramaturgia do som/corpo, Gesto e performatividade); 3. Fontes

crítico-analíticas vinculadas ao histórico e precedentes artísticos do gênero, assim como Estética e Filosofia da Linguagem, Semiologia da Performance, Arte Multimídia. Com exceção desta última área (tópico 3.), direcionada a cimentar teórica e epistemologicamente a pesquisa desde o viés qualitativo (anteriormente exposto), as estratégias metodológicas que dialogam de perto com o objeto estudado estão voltadas à revisão e desmontagem estrutural dos vieses prático-composicionais ligados à Música Incidental – um Estudo de Caso com marcas autobiográficas. Estreitando as chaves metodológico-epistemológicas nessa direção, apresento seguidamente as abordagens empreendidas por pesquisadores acadêmicos da área artística que propõem modelos alternativos de pesquisa, em contraponto ou franca oposição à díade Quantitativa/Qualitativa, para deixar ver em um e outro caso a importância dada ao caráter processual, auto-referencial e genético-imagético desses processos de criação.

A- O pesquisador/orientador acadêmico Brad Haseman (2015) vem se debruçando sobre a dinâmica e importância dada às pesquisas guiadas-pela-prática, para que as mesmas sejam entendidas como uma estratégia de investigação dentro de um paradigma de pesquisa inteiramente novo: a Pesquisa Performativa.

Muitos pesquisadores guiados-pela-prática não iniciam o projeto de pesquisa com a consciência de ‘um problema’. Na verdade, eles podem ser levados por aquilo que é melhor descrito como ‘um entusiasmo da prática’: algo que é emocionante, algo que pode ser desregrado, ou, de fato, algo que somente pode tornar-se possível conforme novas tecnologias ou redes permitam (mas das quais eles não podem estar certos). [...] Eles tendem a ‘mergulhar’, começar a praticar para ver o que emerge. Eles reconhecem que o que emerge é individualista e idiossincrático. Isso não quer dizer que esses pesquisadores trabalham sem maiores agendas ou aspirações emancipatórias, mas eles evitam as limitações das correções de pequenos problemas e das exigências metodológicas rígidas no primeiro momento de um projeto. (HASEMAN, 2015, p. 44. Grifo nosso).

Impulsionando aos artistas-pesquisadores a idealizarem formatos de apresentação performáticos que vazem o tradicional texto/artigo (albumes,

encenações, objetos), lembra-lhes que quando “uma forma de apresentação é usada para relatar uma pesquisa, pode-se argumentar que ela é na verdade um ‘texto’ ” (idem, p. 46). Isso se compreende mais amplamente quando lembramos que o mapeamento de um andamento artístico – suas alteridades processuais – requer do apelo a formas de “prática reflexiva, observação participante, etnografia performativa, etnodrama, investigação biográfica/autobiográfica/narrativa, e o ciclo de investigação da pesquisa-ação” (idem, p. 49).

Assim, torna-se relevante lembrarmos que essa noção estendida de “texto”, voltado para múltiplas formas de écriture18, faz com que essa motivação guiada-pela-prática

considere estratégias tais como “entrevistas, técnicas de diálogo reflexivo, jornais, métodos de observação, trilhas da prática, experiência pessoal e métodos de peritos e de revisão por pares para complementar e enriquecer as suas práticas baseadas no trabalho” (idem 49).

Pretendo extrair da perspectiva aportada por Haseman (2015) a valorização que o autor dá à multiplicidade de corpus escriturais, voltados para os mais variados formatos de apresentação. Isso tem dentro da presente pesquisa uma marcada relevância, permitindo fundamentar, por essa via, que a natureza hiper-textual com que foi desenhada a sua apresentação coloque num mesmo patamar de valoração: a produção da escrita; o material audiovisual que documenta a produção de

DESFAS[c/z]ES (sistema de input/output balizado nas marcas cronométricas do

vídeo); os links da rede informática que são sugeridos ao leitor para contextualizar os temas discutidos. Em outras palavras, a própria pesquisa é e se materializa nesse

corpus integrado e interativo, sendo umas e outras fases aspectos coadjuvantes da

“coisa pesquisada”. Levo a atenção, seguidamente, para a tabela ideada por Haseman (2015), com o fim de oferecer uma perspectiva comparada entre modelos de pesquisa, onde cabe destacar que a performatividade dessa nova forma de escrita considera

18 A noção de texto ampliado traz à tona a discussão linguística sobre a ideia de “escritura”. Tal como

chega até nós através da obra do linguista e filosofo francês Jaques Derrida (No escribo sin luz

artificial, Barcelona: Cuatro

Ediciones, 1999), a mesma foi reformulada pelo autor, quem a distingue semanticamente da corriqueira noção de “escrita” (em francês: écriture/écrit): “Neste ponto podemos voltar para àquilo que vincula a desconstrução com a escritura: à sua espacialidade, ao pensamento de um caminho, a essa abertura de uma trilha que vai inscrevendo seus rastos sem saber para onde será levada. Assim compreendido, pode se afirmar que abrir um caminho é uma escritura. Vive-se na escritura, pois escrever é um modo de habitar. [...] Gostaria de relembrar a Heidegger, sobre tudo em 'A Origem da Obra de Arte', onde se faz referência ao Riß (ou Riss: traço, fenda) que deve ser considerado, independentemente, como plano, planta, alçado, rascunho. Em arquitetura há uma imitação desse Riß na gravura, na ação de fender. Isso há que associá-lo com a escritura. (DERRIDA, 1999, p. 137 e 138)

como válidas “formas materiais de prática, de imagens fixas e em movimento, de música e do som, de ação ao vivo e código digital” (idem. p. 47).

Figura 4 - Tipologias de pesquisa acadêmica.

Fonte: HASSEMAN, Brad (2015, p. 44).

B- Em correspondência com a perspectiva de Haseman, a dançarina/orientadora acadêmica Vida L. Midgelow (2015) propõe o modelo “PAC - Processos de Articulações Criativas”, o qual permite acompanhar o desenvolvimento de uma práxis artística com o fim de dar voz às alteridades desse andamento. Esta inquietação-base da autora, ecoa sob aspectos nodais a serem observados nesta pesquisa; por um lado a permissão e pulso criativo para encontrar a “própria voz” que dê conta das descrições e desmontagens do processo criativo pessoal, mas, para habilitar o modus loqutio que se corporiza em criadores e compositores/coreógrafos interessados em desvendar e transmitir os aspectos envolvidos no seu ofício.

O PAC envolve um processo de trabalhar pela clareza da linguagem, e dentro do modelo há um compromisso implícito com a articulação de diversos tipos. Nesses processos, estamos interessados em assegurar que cada pessoa, em cada momento, encontre as palavras ‘certas’, palavras ‘boas’. Encontrar tais palavras é difícil tarefa. As palavras são, no entanto, importantes para nos ajudar a nos tornar mais lúcidos – mais reflexivos em nossas práticas. Vir à linguagem é um processo significativo através do qual formas experienciais, materiais e emergentes de conhecimento podem ser trazidas ao primeiro plano, processadas e partilhadas. Como diria a escritora/poeta Lyn Hejinian, “a linguagem dá estrutura à consciência” (2000, p. 345). [...] Isso é muito diferente da interpretação e procura evitar o julgamento como um processo de avaliação da importância de algo em relação a uma força externa. (MIDGELOW, 2015, p. 60 e 61).

Para instrumentalizá-lo através de um escalonamento sequencial, a autora segmenta o método PAC em seis faces, a partir das quais resulta possível escavar, recortar e ir sedimentando os achados que emergem na construção de um tema de pesquisa em arte (MIDGELOW, 2015): 1. Abrir: se tomar o tempo e “notar” o senso sentido que surge no meu corpo em um determinado momento, ou em resposta a um conjunto específico de circunstâncias. 2. Situar: habilitar o chamado a notar e anotar a situação; esse processo auxilia o reconhecimento de todas as coisas que se têm à mão, aquilo que você traz com você, e talvez o como você chegou até aqui. 3. Escavar: tomar um fôlego, uma pausa, um momento, deixar de lado as perguntas e processos de pensamento voltados para o futuro; se confiar que achados acontecem mesmo você os escolha ou não. 4. Elevar: se dar tempo e espaço para mais representação e articulação; aqui começamos a olhar para aquilo que descobrimos a partir de várias empreitadas. 4. Anatomizar: criar maneiras em que seja possível praticar um estiramento, descobrindo e elaborando, sem se preocupar com tratar o que é gerado como coisa fixa ou completa. 5. Externalizar: voltar a atenção para a conclusão de um momento, uma fase de trabalho ou de uma performance; estar pronto para compartilhar ou mostrar algo que, finalmente, se possui.

C- Focada nos casos que tem à própria obra/prática artística como tema de estudo, a dançarina e pesquisadora Silvie Fortyn (2016) tem idealizado uma abordagem que se entrosa imediatamente às anteriores, intitulada de “Pesquisa Auto- etnográfica”: uma postura epistemológica próxima da autobiografia, dos relatórios sobre si, das histórias de vida, dos relatos anedóticos. “Uma escrita do ‘eu’ que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si” (FORTYN, p. 83, 2016). A autora destaca que tal abordagem dista da mera representação de fatos auto-referenciados; pelo contrário, estes evocam e definem a resiliência de um empowerment que pode oferecer uma narratividade com base na experiência sensível e na singularidade do processo evocado. Dentre as nuances que essa pesquisa adquire, Fortyn (2016) resgata a ocorrência das chamadas “bricolagens metodológicas”, toda vez que o artista entrouxa as referências sobre si com a obra de ouros artistas.

Eu aproveito a ocasião para definir que, mesmo quando o pesquisador efetua uma coleta de dados sobre a prática de outros artistas, é a partir da sua posição que ele o faz, e isso pinta o processo da coleta e da análise. Assim, talvez, isso nos permitirá em alguns anos, fazer um balanço dos estudos realizados pelos artistas, com outros artistas, para melhor compreender os

processos colocados na obra da pesquisa em prática artística. (FORTYN, 2016, p. 85)

Nos depoimentos do ensaio Contribuições possíveis da Etnografia e da Auto-

etnografia para a pesquisa na prática artística (Porto Alegre: Revista Cena 7, v.7, p.

78 a 86, 2016) a autora retoma a questão das incertezas – incompletudes, instabilidades epistémicas – que caracterizam à emergência dos fatos cadastrados neste tipo de investigação. Ainda admitindo que as ferramentas de análise não são suficientemente balizadas e a pesquisa na práxis artística ser recente, Fotyn (2016) impulsiona este encaminhamento metodológico, indicando que o estabelecimento de analogias entre a manipulação criativa dos materiais de produção artística e a manipulação não menos criativa dos materiais de produção textual pode se tornar uma pista fecunda para a elaboração de uma Dissertação/Tese acadêmica.

D- Ao tocarmos no tópico da revisitação/remontagem de trajetórias artísticas inscritas no andamento das criações próprias (auto-etno-biografias), as ferramentas procedentes destas abordagens metodológicas se transpõem, naturalmente, para a (pós)análise e desmontagem que terá lugar no capítulo três, quando a obra

DESFAS[c/z]ES seja discutida sob o formato de um Memorial. Numa zona adjacente

de estudo, locada agora no campo dos Estudos da Crítica Genética, corresponde anexar o caso da Abordagem para o Movimento Criador, desenvolvido pela pesquisadora Cecília Almeida Salles no livro Gesto Inacabado: Processo de Criação

Artística (SP: FAPESB – Annablume, 1998). Focada na presença de gestos

(inacabados) e viesses perceptuais, formas de apreensão e conhecimento emergentes do processo criador, a autora destaca:

A crítica genética é uma investigação que vê a obra de arte a partir da sua construção. Acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, o crítico genético preocupa-se com a melhor compreensão do processo de criação. É um pesquisador que comenta a história da produção de obras de natureza artística, seguindo as pegadas deixadas pelos criadores. Narrando a gênese da obra, ele pretende tornar o movimento legível e revelar alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a gênese da obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção. (ALMEIDA SALLES, 1998, p. 12 e 13)

Rastreando as pegadas, documentos e rascunhos deixados pelos artistas, o desvendamento dessa genética encriptada se aproxima da escavação de casos/dados de estudo como se tratando de legítimos arte-factos, feituras artesanais que se revelam ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes. A perspectiva da Crítica Genética utiliza-se do percurso da criação para

desmontá-lo e, imediatamente, colocá-lo em ação: “Essa arqueologia da criação tira esses materiais das gavetas e dos arquivos e os põe em movimento, reativando a vida neles guardada” (idem, p. 13). Pretendo extrair, dentre o leque de tópicos ligados a essa vocação voyeur do crítico genético (um olhar que vai além da mera observação curiosa) o segmento do livro intitulado Rastos; a insistência no recupero dos vestígios e rascunhos que vertebram, secretamente, a formatação de um processo criador – no caso presente, a elaboração de uma trilha sonora –, habilita no pesquisador um jogo de retrospecções instigante: um voltar sobre as próprias pegas, valorizando aqueles descartes, retalhos e provisoriedades, esse acúmulo de dados indiciais que houvessem sido desconsiderados a posteriori.

Entrevistas, depoimentos e ensaios reflexivos são documentos públicos que oferecem, também, dados importantes para os estudiosos do processo criador; têm, no entanto, um caráter retrospectivo que os coloca fora do momento da criação, ou seja, não acompanham o movimento da produção das obras. Os vestígios deixados por artistas oferecem meios para captar fragmentos do funcionamento do pensamento criativo. Uma sequência de gestos advindos da mão criadora e experienciados, de forma concreta, pelo crítico. Gestos se repetem e deixam aflorar teorias sobre o fazer. [...] O movimento do olhar nasce no estabelecimento de nexos entre os vestígios. O interesse não está em cada forma, mas na transformação de uma forma em outra. [...] Cada índice, se for observado de modo isolado, perde seu poder heurístico: deixa de apontar para descobertas sobre criações em processo. É necessário seguir a coreografia das mãos do artista, tentar compreender os passos e recolocá-los em seu ritmo original. (ALMEIDA SALLES, 1998, p. 19 e 20)

Figura 5 - Tabela das abordagens metodológicas citadas no item 2.2.2.

Abordagens metodológicas citadas anteriormente, observadas a partir de uma perspectiva

comparada. Umas e outras se complementam e permeiam em função da rotação do Objeto de Estudo (estratégia de um olhar poliédrico).

2.3. Processos de Criação Colaborativos: convergências e divergências