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Processos de Criação Colaborativos: convergências e divergências de um

2. CAPÍTULO I Alteridades de um gênero composicional A Música

2.3. Processos de Criação Colaborativos: convergências e divergências de um

Nos dois itens que dão encerramento a este primeiro capítulo pretendo afunilar o leque de abordagens e perspectivas voltadas ao mapeamento de produções artísticas com caráter processual, para focar essa ordem de questões metodológico- epistemológicas (além de estéticas) no âmbito do propriamente composicional. Trata- se, primeiramente, de cercar as problemáticas que advém da posta em contato entre um compositor (ou sonorizador) musical e um coreógrafo/encenador, toda vez que

esses processos composicionais comungam no campo das produções artísticas locadas na inter-área música/dança: formatações mistas da linguagem; plataformas de criação estendidas; dispositivos e interfaces multimídia. Sendo este o caso de estudo a ser mapeado no Memorial da presente pesquisa (Capítulo III), observarei seguidamente os desafios atrelados aos processos composicionais rotulados de “Criações Colaborativas”.

Para contextualizá-los de maneira genérica cabe ser indicado que os mesmos devêm do interesse ou afeição pelo estabelecimento de andamentos partilhados entre compositores de domínios linguísticos divergentes (co-criações autorais). Porém, a construção de tais parcerias só consegue ser instrumentalizada quando se vê precedida por certa disponibilidade entre as partes (gesto fundador para que tal andamento aconteça). Voltados às problemáticas que se cernem ao redor do “plano de colaboração” que se estabelece entre a labor de um compositor e um coreógrafo (formas dramatúrgicas emergentes), levarei a atenção para o ensaio que os pesquisadores brasilienses João Paulo Lucas e Lucas Lignelli desenvolvem em

Música e Dramaturgia: plano de colaboração e dispositivo dramatúrgico (UnB,

Brasília/DF; In: Revista brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre: v. 7, n. 1, p. 19-44, jan./abr. 2017):

Aceitando que qualquer processo composicional é intrinsecamente transformador (independentemente de ser, ou não, integrado num processo colaborativo), o enriquecimento dos campos de produção de intersubjetividade latentes em cada processo de colaboração poderá redundar, num contexto intensivo de colaboração [...] elementos imprevisíveis e provocadores, imanentes à própria colaboração e excêntricos ao âmbito estrito do seu labor criativo individual. Essa potência transformadora será, certamente, tão mais efetiva quanto mais intensa e fluida se revelar a dialogia de colaboração. A experiência de colaboração será, nessa hipótese, uma potência preciosa da criação artística, com dupla incidência no desempenho individual e na eloquência da obra. (LUCAS; LIGNELLI, 2017, p. 21)

Do parágrafo citando extraio um apanhado de conceitos que me parecem esclarecedores quando se trata de mapear os desafios atrelados às formas co-

partilhadas de criação artística: A- a labor resultante pode deparar aos autores – e se

manifestar na obra emergida – um conjunto de achados insuspeitados e provocadores frente ao arcabouço de dados habituais; B- o potencial transformador do produto encontra correspondência na fluidez e intensidade dialógica da parceria; C- a incidência do andamento colaborativo repercute numa dupla consequência, a da obra e a do desempenho individual. No entender dos autores, esse entremeado dialógico

precisa se articular internamente – autenticar tal ordem de desafios –, levando em consideração que aquilo que concorre na construção de um processo de colaboração possuirá sempre o pulso de uma duplicidade: campos disciplinares que acionam desde a proficiência de suas áreas de especialização, mais uma “terceira natureza emergente”, advinda do cruzamento entre elas, que pode se tornar reveladora e transformadora. Nessa linha de ideias, Lucas-Lignelli (2017) sublinham que o ato do compor se distingue pelo seu “esforço”: o trato com as formas, estruturas, movimentos, vocabulários e, em última instância, com a técnica, a qual fende a sua resistência numa certa materialidade expressiva, criando um objeto que espelha os padrões neurais e a qualidade das habilidades composicionais. Sendo assim, a construção dialógica implicada numa colaboração artística (música/dança) pode se compreender como um plano que “antecede” à própria composição (estratégia proto-

composicional), mas, que abriga a sua existência virtual. A noção de plano de colaboração deve se entender, deste modo, como uma “arquitetura instável” entre as

partes intervenientes. Algo movente, implicado nos futuros devires19.

Se a dialogia da colaboração se engendra na porosidade de séries “divergentes” entre compositor e coreógrafo, o esforço da labor compositiva se configura, temporariamente, num certo recolhimento de cada parte (momento focado no desenvolvimento de procedimentos/técnicas específicas da área). Balizando esta ocorrência, cabe citar o comentário (alheio a qualquer eufemismo) do compositor grego-francês Iannis Xenakis, numaentrevista concedida a Bálint Varga (1996, In: In.: LUCAS, João Paulo; LIGNELLI, César, 2017, p. 31): “[...] quando se tenta escrever algo, é necessário sentir-se absolutamente sozinho, como uma centelha na escuridão do universo. Isso é tudo. Você está completamente por sua própria conta”. Coreógrafo e compositor, munidos de suas técnicas de composição específicas, dividem a dinâmica da sua recíproca participação num andamento que integra a dialogia colaborativa com a solitude.

19 No livro intitulado No escribo sin luz artificial (Barcelona: Cuatro Ediciones, 1999) o linguista e

filósofo Jaques Derrida comenta, ao longo de uma série de entrevistas documentadas por André Rollin, suas apreciações sobre o trabalho colaborativo realizado junto ao arquiteto Peter Heisenman no ano 1980. Sob a direção de Bernard Tschumi, o projeto teve por objetivo desenhar em equipe o

Espaço Jardim do Parc de La Villette, situado na periferia de Paris: “Fui convidado a pensar e

desenhar o projeto arquitetônico que Heisenman tinha imaginado. [...] Um dos motivos principais na criação do ‘Espaço-Jardim’ é que os visitantes não só conheçam um lugar de passeio senão que eles possam cruza-lo, ter uma experiência do lugar: uma participação, uma intervenção por parte do leitor- visitante-colaborador. Portanto, trata-se de pensar no passo, no passeio do visitante: por onde vai passar? O que o convida a fazer? O que lhe dá liberdade para fazer?” (DERRIDA, 1999, p. 145 e 146).

Os momentos de realização composicional produzem uma torção disruptiva que bifurca o plano de colaboração em dois esforços, momentaneamente divergentes, em saltos quânticos que originam duas qualidades distintas de matéria, matéria dançada e matéria musical (que se irão justapor ou sobrepor, fundir ou confundir nas imanências heterogêneas do plano de composição da obra coreográfica e musical). (LUCAS; LIGNELLI, 2017, p. 25)

A potência do conceito de plano de colaboração – a qualidade dialógica que marca a identidade dos processos criativos ‒ parece não residir tanto na mera adjacência ou somatória dos materiais compositivos postos em contato. Para o caso que nos ocupa, a formatação de uma poética que devenha do entrosamento entre um

Objeto Sonoro + Objeto Kinético se concretizará na processualidade de uma “terceira

via emergente” que saiba negociar o caráter proximal, mas divergente, que se evidencia entre as competências composicionais do músico e do coreógrafo: um dispositivo dramatúrgico consensuado. Em correspondência com a heurística dos autores citados, esse paradoxal diálogo entre linguagens artísticas afins/divergentes, reclama um trânsito flexível que seja capaz de “surfar” o tensionamento que lhe é intrínseco: jogo de prestações, contaminações e negociações recíprocas. Um

território-outro nascido “na fronteira que desenham entre si, no território que, ao

mesmo tempo, une e separa as representações, nesse movimento fugaz que reinventao mundo” (LUCAS; LIGNELLI, 2017, p. 27).20

2.4. Composicionalidade: uma propensão à invenção de mundos que