2. CAPÍTULO I Alteridades de um gênero composicional A Música
2.4. Composicionalidade: uma propensão à invenção de mundos que
No segundo desdobramento dedicado a elucidar as problemáticas do composicional, no seu entrosamento com processos de criação artística relacionados à ideação de uma narrativa sonora, proponho tomar como ponto de partida a citação que deu encerramento ao item anterior, quando se alude às interseções disciplinares que são capazes de “reinventar mundos”. Circunscrito ao campo da composição musical – formas de articulação entre gesto criativo e métodos susceptíveis de direcioná-lo –, pretendo refletir agora sobre como o planejamento de uma trilha sonora acarreta, implicitamente, um ato de invenção de mundo: abre-se ao insuspeitado pela via da exploratória e experimentação de materiais sonoros e designs de novas
20 KASTRUP, Virginia. A Invenção de Si e do Mundo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, P. 204: “O
conceito de subjetividade é indissociável da ideia de produção. Produção de formas de sensibilidade, de pensamento, de desejo, de ação. Produção de modos de relação consigo mesmo e com o mundo. A subjetividade não é um dado, um ponto fixo, uma origem. O sujeito não explica nada enquanto não tiver sua constituição explicada com base num campo de produção de subjetividade”.
sintaxes imagéticas. Para isso, partirei da metáfora que alude à invenção de “outros- mundos possíveis”, para colocá-la em contato, pela sua vez, com a noção de “composicionalidade” e as abordagens metodológicas que precisam ser repensadas para esse fim.
No ensaio Modo pesquisa e Modo compor: aproximações e limites (Revista Paralaxe; Série 1: Pesquisa em Música e Diálogos com produção artística, ensino,
memórias e sociedade, 2016, p. 33 a 46) o compositor, pesquisador acadêmico e
escritor Paulo Costa Lima interroga as maneiras em que se equilibram as formas de produção de conhecimento filiadas à tradição da criação musical, com as premissas e problematizações críticas que distinguem à pesquisa cientifica moderna. Nessa ordem de interrogações, o autor se propõe diferenciar categorias que deem conta dos objetos/processos do compor, os quais passam a ser rotulados com o neologismo
composicionalidade:
A qualidade daquilo que é composto. Se compor é colocar coisas juntas para criar uma outra coisa, então como falar da qualidade desses todos que vão sendo juntados ao longo do processo? [...] Quais os critérios, instâncias ou vetores que sustentam a qualidade das coisas compostas? Sempre parto da ‘invenção de mundos’, que me parece o fundamento maior da criação, entrelaçando de forma inextricável causalidade e imaginação: a imaginação como causa (COSTA LIMA, 2014, p. 217 e 218) 21.
Tal como se adverte na citação anterior, o ato composicional se fundamenta num entendimento sobre a inventiva criadora, advinda do cruzamento: imaginação/causalidade. Ao longo do ensaio elaborado por Costa Lima (2016) adverte-se o esforço enveredado a reconhecer a tração intrínseca dessa díade para, imediatamente, transbordá-la na ideia superadora de criação de mundos emergentes, cimentados numa causalidade lógica. Listarei, seguidamente, as três primeiras categorias de objetos/processos que Costa Lima aponta no referido ensaio:
i) a invenção de mundos: com seu sabor heideggeriano – ‘a obra mundifica’ – e sua referência necessária à criação de universos de sentido e significação. ii) a criticidade: com seu acento de teoria crítica – uma vez inventado um determinado mundo, também fica criado um ponto de observação e interpretação de todo o resto. iii) a reciprocidade: a percepção de que o design cria o designer tanto quanto o designer cria o design. (COSTA LIMA, 2016, p. 35)
21Cabe ser indicado que a referida noção/neologismo de “composicionalidade” foi apresentada pelo Professor Paulo Costa Lima na publicação do artigo intitulado COMPOSICIONALIDADE: teoria e
prática do compor no horizonte da atualidade. O mesmo dá abertura à lista de artigos do livro
“TEORIA E PRÁTICA DO COMPOR I: Diálogos de invenção e ensino” (Ed. Edufba, Salvador: 2012, p. 12 a 35).
Para se aproximar à figura do ideal sonoro que deu impulso atávico à tradição compositiva de ocidente – “território experiencial, que também toca na questão da espetacularidade do compor” (idem, p. 36) –, o autor esboça duas categorias norteadoras que oscilam e se interpenetram dialeticamente no ato composicional: uma “imantação pelo novo” que alude à propensão imagética de mundos-novos, e uma “organicidade/profundidade” advinda da necessidade de alinhamento lógico-causal dos materiais sonoros. Chega-se assim à encruzilhada da problematização levantada por Costa Lima, quando o autor se pergunta pelo paradigma – considerado aqui no domínio do composicional – que resulta do encontro entre as categorias de “invenção de mundos” e “organicidade”: devaneio criador e causa conducente22.
O nó da questão adquire uma nova relevância – um pulo epistémico – quando a ordem de desafios artístico-composicionais (Modo Compor) ingressa na esfera do estudo-análise acadêmico (Modo Pesquisa). No entender do autor, no fluxo de uma pesquisa acadêmica, a relação dialógica entre inventiva/organicidade é incontornável: “ou haveria pesquisa e metodologia que dispensassem o alinhamento lógico de seus componentes? ” (Idem, p. 38). Frente a esta dificuldade metodológica teríamos, então, a chance estratégica (e criativa) de redirecionar o cripticismo dessa encruzilhada, abrindo um leque de perguntas sobre a “espécie de mundo” que uma determinada problematização inaugura. Seguindo Costa Lima (2016), o pronunciamento de uma ordem original de perguntas – como forma de resposta superadora – nos permitiria identificar a escolha dos problemas a serem rastreados, sendo esta uma possível via
regia para acessar, desvendar ou devanear outros-mundos-imaginados23.
22 COSTA LIMA, Paulo. Modo pesquisa e Modo compor: aproximações e limites. Revista Paralaxe,
Série 1: Pesquisa em Música e Diálogos com produção artística, ensino, memórias e Sociedade, 2016, p. 38: “O que acontece quando a ‘invenção de mundos’ encontra a sua organicidade? Ou seja, quando o desfio de mundificação tem diante de si o recurso do alinhamento lógico dos elementos e materiais? O que temos são, justamente, mundos criados com base nesse alinhamento lógico.
23 COSTA LIMA, Paulo. Teoria e Prática do Compor II: Diálogos de Invenção e Ensino. Salvador: Ed.
EDUFBA, 2014, p. 218: “O compor se define como tal a partir de um campo de escolhas, lugar onde todas as tramas se definem, onde todas as instâncias anteriores comparecem, e onde o fluxo e refluxo de teorias e práticas, princípios e combinatorialidades, estruturas e processos, formas, materiais e métodos, se tornam indissociáveis, projetando o que há de ser”.