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2. CAPÍTULO I Alteridades de um gênero composicional A Música

2.1. Raios de abrangência da Música Incidental (Des)dobras e encaixes

2.1.2. Modos de articulação: segmentação rítmico-temporal nas Artes do

2.1.2.1. Vídeo: Messiah Game Game One: Baptism

Messiah Game. Game One: Baptism

Cie Felix Ruckert / Dusseldorff Tanzhaus NRW (2005)

<https://www.youtube.com/watch?v=pdnwZ0Rsytk>

Para se ter uma referência mais concreta da poética do movimento à qual estou fazendo referência no parágrafo anterior, convido ao leitor a observar o registro fílmico da obra MESSIAH GAME, do coreógrafo alemão Felix Ruckert (Dusseldorf, Tanshaus NRW, 2005), também responsável pela criação da peça ENGENHO (BTCA, 2009), utilizada para a sono-musicalização de DESFAS[c/z]ES. A poética que caracteriza à produção cênica do autor resulta do encadeamento de sequências kinéticas atreladas, especialmente, às técnicas de improvisação Post Modern Dance, as quais, pela sua vez, são contornadas através de roteiros Work in Progress (scores a serem reabitados). O segmento selecionado, intitulado Game One: Baptism, permite apreciar a complexa proliferação de princípios organizacionais do ritmo/duração, trazendo à tona a questão da captura e segmentação desses fluxos temporais como o nó do problema que está sendo discutido aqui. Com o fim de tornar mais evidente o conjunto de apreciações, sugiro observar as imagens sem volume no reprodutor de áudio.

< 00.27 / 01.37: a lógica que rege as movimentações dos dançarinos gira ao redor da suspensão/queda. Esta primeira forma de contraste rítmico se complementa com as operações correr-pular-manobrar-pausar. Ainda quando a proficiência dos improvisadores (composição em tempo-real) consegue demarcar com grande clareza as dobras articulantes do fluxo temporal – expresso no pontilhado das dobras corporais – e atingir um padrão de dinâmica estabilizado, observe-se que essas progressões ocorrem por fora de uma métrica baseada no pulso e suas sub/supra- divisões derivadas: uma lógica de impulsos, ênfases, intensidade energética ligada ao continuum orgânico.

< 05.00 / 05.52: a sequência se estrutura sob a alternância de dois momentos opostos: dois homens seguram, levantam e lançam na altura à dançarina; imediatamente, ela se debruça num improviso de alta densidade cronométrica (quantidade de incidências por unidade de tempo), estruturada numa lógica de micro-suspensões e posteriores estouros impulsivos. Vale a pena reparar no grau de aleatoriedade e descontorno que esse fluxo kinético apresenta à hora de ser mensurado. A ideia de fluidez, no campo da improvisação em dança, dista de ser

uma homogeneidade ondulante; ele pode se precipitar num sem-número de dinâmicas pluriarticuladas, as quais, não obstante, não se acomodam a moldes temporais métrico-regulares.

< 09.45 / 10.53: outro caso de alternância: duas mulheres manobram e deslocam no plano do chão ao dançarino, movimentando-o à maneira de uma marionete desde as suas extremidades. Um primeiro momento replica a qualidade dinâmica dos micro-impulsos (estiramentos, alavancas, trações) para ser compensada, imediatamente, por uma pausa grupal onde o trio se reúne numa matilha. Esta tipo- morfologia de progressão temporal – estreitamente ligada às formas de expansão espacial e modos de aplicação energética em/entre os corpos – é recorrente e, em boa medida, distintiva dos processos improvisatórios onde prevalecem as formas de encadeamento “orgânico”. Por serem propensos a uma auto-organização do ritmo/durações (modos do devir) cimentada em mecanismos reflexos, memórias adaptativas e instinto de supervivência ao meio (biogenética almejada nos padrões de coordenação motora), chamarei a este padrão espaço-temporal de “Princípio de Aglutinação/Dispersão” (ou vice-versa): uma espécie de “respiração” que molda as progressões temporais através de um sístole-diástole, e estrutura, intimamente, o plano de escolhas do coletivo de dançarinos improvisadores15.

Figura 2 - Frames da coreografia Messiah Game; Game One: Baptism. De Felix Ruckert, 2000.

Por ordem de apresentação, os frames do vídeo se correspondem com momentos de cada um dos itens citados.

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=pdnwZ0Rsytk>

15 No artigo Tempus Ex Machina: reflexões de um compositor sobre o tempo musical (Paris: Revista Entretemps, nº 8, 1989, p. 83 a 119; In: Centro de Estudios Electroacústicos - Facultad de Artes y

Ciencias Musicales. Tradução: Nora García; Bs. As.: Universidad Católica Argentina, 2012) o compositor francês Gérard Grisey discorre sobre as complexidades aderidas ao tempo musical, submetido à torção das suas relações internas, conduzindo ao ouvinte a focar o ângulo da sua percepção no processo de leitura/apreensão das durações. A perspectiva do autor ecoa a incidência de movimentos orgânicos, fisiológicos, embutidos no diálogo: “No tempo complexo da obra musical, verdadeiro tecido de correlações submetido a todas as deformações, [...] devemos finalmente correlacionar outro tempo muito mais complexo, o tempo do homem que percebe. É, certamente, o ouvinte quem seleciona, quem cria o ângulo em movimento da percepção, quem irá remodelar sem cessar, aperfeiçoar e, às vezes, destruir a forma musical sonhada pelo compositor. O tempo deste ouvinte está correlacionado com os tempos múltiplos de sua língua materna, seu grupo social, sua cultura e sua civilização” (GRISEY, 2012, p. 17).

2.1.3. (Pós)produção de uma trilha sonora para o registro fílmico de uma encenação coreográfica (BTCA, Engenho, 2009)

O terceiro recorte do Objeto de Estudo se circunscreve à observação retrospectiva do processo criativo que deu origem à obra DESFAS[c/z]ES: a composição musical de uma trilha sonora cuja edição final se configura em formato audiovisual (uma montagem sincrônica que permite apreciar o correlato entre o registro fílmico original e o plano musical-sonoro criado). Em tal sentido, a questão a ser pesquisada se localiza agora na esfera das criações artísticas de própria autoria, adquirindo tanto as nuances do “Estudo de Caso” a ser abordado metodologicamente, quanto as marcas distintivas da “Pesquisa Autobiográfica”. Trata-se, por um lado, da revisão/revisitação dos procedimentos técnico-composicionais transbordados na criação da trilha sonora – sendo estes o resultado da coletânea de variáveis e tipo- morfologias reunidas nas análises críticas anteriores – e, por outro lado, do mapeamento das motivações e procuras estéticas atreladas a esse processo compositivo, para o qual haverá que recorrer às ferramentas procedentes da Crítica Genética e Auto-etnografia. Considerando este progressivo recorte do Objeto de Estudo, cabe indicar que a referida (pós)análise do processo criativo de

DESFAS[c/z]ES terá lugar, especificamente, no terceiro capítulo da escrita, onde será

abordado sob a forma de um “Memorial”.

Para referenciar os caracteres que singularizam a produção desta obra musical/audiovisual, parece-me necessário frisar alguns aspectos que fazem dela um caso peculiar. O ponto de partida não consistiu, dessa vez, na composição de uma trilha sonora para ser encenada posteriormente, nem tampouco a sua fatura foi resolvida através de um processo colaborativo com os dançarinos ou o coreógrafo para que a mesma resultasse de um laboratório de experimentações partilhado. Com o propósito de poder afinar os desafios contidos no inter-diálogo movimento/som ideei a estratégia de utilizar um registro fílmico de balé que reunisse um viés poético- composicional onde as evoluções temporais e modos de organização rítmica habilitassem um contraponto instigante com o plano musical-sonoro a ser editado. Assim, DESFAS[c/z]ES originou-se na coarctada de “zerar” a trilha sonora original, para montar outra no seu lugar, dentro da qual as movimentações corporais à vista (design, dinâmicas, distribuições espaciais) adquirissem uma conotação diferenciada. A poética da obra deve se entender, portanto, como um exercício experimental tendente a testar formas de engajamento entre movimento/som, centralizada na

questão da articulariedade que rege as progressões temporais entre ambas cadeias linguísticas. Mais exatamente: a elaboração de uma hipótese sobre as maneiras em que as trilhas sonoras podem ser concebidas, de forma tal que a po(i)ética que se configure a partir desse entendimento adquira uma relevância diferenciada.

A escolha do referencial fílmico a ser utilizado recaiu na obra coreográfica que o encenador alemão Felix Ruckert desenvolveu com o Balé Teatro Castro Alves no ano 2009. ENGENHO foi o resultado de um processo imersivo de dois meses que o coreógrafo viveu junto ao elenco, tendo por figura inspiradora os engenhos de açúcar do recôncavo baiano. Na peça aprecia-se uma espécie de devaneio imagético que circunvaga traços daquela história, pincelada com aspectos da baianidade que empolgaram ao autor nesse período de residência. Importa aqui resgatar que esse registro fílmico – ocorrido na sede do Teatro Casto Alves – reapresenta os caracteres linguísticos da poética que distingue a obra de Felix Ruckert (Cia. Tanshaus Neu,

Dusseldorf), localizada na encruzilhada das técnicas de improvisação e qualidades

release do movimento (Post Modern Dance), as quais imprimem no corpo dos

dançarinos um tipo de progressão/evolução temporal fluente: uma perspectiva da dança que sublinha, inicialmente, a abordagem do movimento como um “objeto kinético” livrado às suas próprias condições generativas. Contudo, é preciso acrescentar que essa linguagem, quando transbordada numa mise em cene (eclética; complexificada em diversas camadas discursivas) recebe formas de encaminhamento através de procedimentos Work in Progress: estruturas/molduras espaço-temporais que contém e “tematizam” o material de movimento, sempre vinculado à exploração improvisatória. Reunindo ambos aspectos, o que se torna instigante na poética cênica de Ruckert é essa afeição pelo uso de “Estruturas Abertas” que contornam, mas, liberam fluxos improvisacionais.

Em razão desta ordem de procuras linguísticas (temporalidades, modos articulantes), corresponde indicar que a linha de trabalho empreendida na composição de DESFAS[c/z]ES enquadra-se nas produções locadas numa inter-área artística; portanto, a mesma participa do campo de problematizações em arte vinculadas à interdisciplinaridade, Artes Mistas e Comparadas e, mais especificamente, à Arte Multimídia. Tal como se descreve na apresentação desta escrita, a edição da trilha sonora – e sua montagem, em correlato com as imagens do filme – foi resolvida numa Plataforma Digital de Edição Multipista (DAW), dentro da qual se remanejaram procedimentos vinculados ao design do áudio que incluíram: gravações, segmentação

e processamento de tracks de discos, assim como a reutilização de fragmentos da trilha sonora original.

O andamento do processo criativo da obra, na medida em que foi estabilizando e refinando os procedimentos técnico-composicionais relacionados ao construto global, foi contornando gradativamente a emergência de uma “poética do sonoro- kinético”; mais exatamente, desvendando os princípios organizacionais advindos das soluções rítmico-temporais que iam sendo instrumentalizadas. Trata-se, na sua acepção mais ampla, das relações de complementariedade e complexidade que se estabelecem no entrosamento sincrônico/diacrônico dos substratos de um mosaico multimídia: um construto pluri-linguístico que coloca em diálogo às narrativas do movimento/som. Nesse processo de esclarecimento sobre o viés poético contido na confecção da obra – regido por instâncias de sedimentação e recorrência de princípios organizacionais – a questão da “fase” tornou-se um tópico central a ser levado em consideração. A mesma advém dos modos em que uma e outra cadeia linguística resolvem a sua recíproca correspondência, pudendo se articular em sincronia/por

diferimento. Expresso de maneira sucinta, tanto o sistema de “pontuação” rítmica, a

extensão dos períodos, a gestalt do envelope (etc.) podia reforçar e replicar o tipo de evolução temporal contido em cada moldura rítmica, ou bem, podiam experimentar formas de deslocamento: entrar ou sair de fase entre elas. Assim, a noção de “des- fase” condensa o âmago do traço poético que atravessa ao conjunto de procedimentos técnico-compositivos da obra. Teremos, desse modo, (des)fases que se estabelecem entre as camadas de movimento corporal/plano sonoro, mas, teremos também formas de micro-diferimento que se estabelecem entre os próprios materiais sonoros da trilha: da ordem do rítmico, do comprimento da onda/senoide, do comportamento gestual da fonte sonora.

Figura 3 - Representação gráfica dos três desdobramentos do Objeto de Estudo.

Representação dos três desdobramentos através dos quais a pesquisa discute o Objeto de Estudo

MÚSICA INCIDENTAL: ideação de um plano musical-sonoro para a cena de dança.

2.2. Abordagem teórico-metodológica. Chaves para uma formulação