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Mapeamento crítico-genético e auto-etnográfico: um script performático.

4. CAPÍTULO III / Memorial (Pós)análise do processo criativo da obra

4.1.1. Mapeamento crítico-genético e auto-etnográfico: um script performático.

O uso da expressão “ (pós)análise” deve-se ao fato singular de que a revisitação de um processo composicional de própria autoria traz aparelhado, como paradoxo irredutível, empreender uma leitura analítica sobre um andamento criativo que teve, por sua vez, critérios de análise implicados. Trata-se, como pode se evidenciar no caso, de um procedimento de desmontagem, de disseção retrospectiva do conjunto de operações que foram instrumentalizadas ao longo de um plano de obra. Devido a que a singularidade que se coloca em jogo nessa revisitação consiste em um “voltar sobre as próprias pegas” – resgatando e reobservando, com certa vocação de voyeur, o leque de rascunhos, entornos gráficos, ferramentas operacionais, estratégias de sinalização, quadros taxonômicos (etc.) –, retorna dentro desta escrita o conjunto de abordagens metodológicas que foram enunciadas no item 2.2.2.; especialmente, àquela questão que consegue ser sintetizada nas preocupações dos pesquisadores acadêmicos que dirigem a sua atenção para os processos de criação artística guiados-

pela-prática. O conjunto de referidas abordagens acaba configurando formulações

epistemológicas alternativas dentro do âmbito das investigações acadêmicas, dando passo a nomenclaturas originais que permitem circunscrevê-las – associadas, pela sua vez, ao pronunciamento de novos paradigmas científico-artísticos. Em razão de que as mesmas já foram observadas na segunda parte do capítulo um, me limitarei aqui a lista-las sumariamente: A- Pesquisa Performativa, proposta pelo pesquisador e orientador australiano Brad Haseman (2015); B- Modelo PAC - Processos de

Articulações Criativas, da dançarina e pesquisadora inglesa Vida L. Midgelow (2015);

C- Pesquisa Auto-etnográfica, ideada pela norte-americana Silvie Fortyn (2016), uma postura epistemológica próxima da autobiografia, dos relatórios sobre si, das histórias de vida, dos relatos anedóticos; D- Os estudos da Crítica Genética, publicados no livro

Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística (1998), da pesquisadora brasileira

Cecília Almeida Salles. Cito novamente um fragmento do livro, dada a clareza que oferece para os fins das futuras análises:

A crítica genética é uma investigação que vê a obra de arte a partir da sua construção. Acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, o crítico genético preocupa-se com a melhor compreensão do processo de criação. É um pesquisador que comenta a história da produção de obras de natureza artística, seguindo as pegadas deixadas pelos criadores. Narrando a gênese da obra, ele pretende tornar o movimento legível e revelar alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz, com o

material que possui, a gênese da obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção. (ALMEIDA SALLES, 1998, p. 12 e 13)

A ideia de mapeamento ou de “relevamento cartográfico” dedicado a rastrear os suportes virtuais e físicos, ferramentas operacionais, tabelas ou guias de escrita utilizadas – “sistemas responsáveis pela geração da obra”, no dizer de Almeida Salles (1998, p.13) –, traz à tona a noção de “texto ampliado”, de écriture derrideana (item 2.2.2.), a qual, ao entrar em cruzamento com os processos composicionais roteirizados em Storyboards (Cohen, 1998, item 3.2.3.), assim como com a perspectiva de uma Música enquanto performance (Cook 2006, item 3.2.4.), nos conduz a redimensionar as funções convencionalmente atribuídas à “partitura” musical. Trata-se de advertir, dentro do presente contexto de (pós)análise, que o conjunto de dispositivos e plataformas virtuais utilizadas na edição da trilha sonora e posterior assemblage com as cenas do registro fílmico, constituem, todas elas, estratégias estendidas de escrita, e merecem ser pensadas como partituras, no sentido amplo da sua função: formas de script, superfícies onde vão sendo reinscritos os processos composicionais solicitados102.

Comentarei, seguidamente, um apanhado de dados históricos e contextuais vinculados à gênese da encenação coreográfica do balé Engenho, sendo este o referencial escolhido para a ideação do plano musical-sonoro da trilha

DESFAS[c/z]ES. Tal como foi riscado anteriormente, o mencionado balé foi fruto de

uma parceria que se estabeleceu entre o Balé Teatro Castro Alves – por então, sob a Direção Artística de Paulo Fonseca -, o Instituto Goethe/ICBA com sede em Salvador (BA) e o coreógrafo alemão Felix Ruckert, quem se dispôs a fazer uma residência nesta cidade junto ao elenco do balé. O processo composicional da obra Engenho demandou um trabalho intensivo de dois meses, e teve como mote inspirador o arcabouço de histórias e documentos etnográficos vinculados ao passado colonial dos engenhos de açúcar do recôncavo baiano – daí a razão do título do balé. Tal como pode ser advertido no leque de referenciais simbólicos e gestuais que atravessam a concepção cênica da obra, Ruckert apelou a um jogo de livre-interpretação desse arcabouço histórico, habilitando a emergência de um tecido imaginal que permitisse

102 Esta acepção do termo partitura perpassa a coletânea de suportes fílmicos e auditivos que foram

utilizados ao longo dos capítulos anteriores para as análises (postados em quadros coloridos). Coreografias, partituras analógicas, encenações do “Teatro Instrumental” kageliano, frames,

gravações (etc.) compõem, como conjunto, modalidades de registração escritural: scripts espalhados em diversos formatos físicos e virtuais.

resignificar aquele passado ancestral – suas marcas mnêmicas e afetivas, sua aura e impacto cultural – através de uma leitura elíptica, ubíqua103.

Um rasgo da concepção da obra que teve peculiar impacto sobre as plateias locais esteve dado pelo fato da encenação ter durado duas horas e meia. Nela se alternavam variados procedimentos Work in Progress, tais como deslocar a totalidade do elenco no setor da plateia para dialogar com os espectadores, ou bem, fazê-los entrar no palco e acompanha-los para exibir detalhes da logística. Outro tanto cabe ser indicado sobre uso de megafones de mão, acionados pelos próprios dançarinos, para estabelecer conversas, interrogatórios/enquetes ou serem pronunciadas ordens ao coletivo. Estas e outras estratégias voltadas à instauração de um pregnânte tempo-

real cênico (“estamos aqui e assim é o tempo que transcorre entre nós”) entende-se

melhor quando consideramos que Felix Ruckert, sendo membro da geração de coreógrafos alemães pós-tanztheater, teve vínculo artístico com a Tanztheater Wuppertal de Pina Bausch e continuou a experimentar/extrapolar essas chaves

estéticas ao longo das suas encenações104. Contudo, as provocações lançadas pela

obra Engenho não tiveram bom acolhimento na plateia soteropolitana, provavelmente porque ainda ela não houvesse adquirido familiaridade com tais chaves linguísticas, hoje muito mais afiançadas. A estreia da obra teve lugar na sede do Teatro Castro Alves (TCA - Sala Principal) e foi ali onde se fizeram os registros fílmicos que

103 Em ocasião de ter apresentado a obra/trilha sonora DESFAS[c/z]ES na Sala Walter da Silveira

(Biblioteca Pública, Barris - Salvador-BA) no dia 21-08-2019, sendo ela o fruto de um convênio interinstitucional entre o Balé Teatro Castro Alves (Projeto: “BTCA em Pesquisa”) e o Programa de Pós-graduação em Música (Mestrado Acadêmico-PPGMUS), tomei conhecimento de alguns detalhes mais precisos sobre o andamento da criação do balé Engenho, assim como do vínculo que o elenco do BTCA teve com o coreógrafo alemão. No bate-papo que sucedeu após a exibição do filme tive a oportunidade de trocar impressões com os membros do balé ali presentes, sendo eles, na sua maioria, os integrantes daquele mesmo elenco, reencontrando-se com o registro fílmico dez anos depois. Soube assim que o período de trabalho com Ruckert foi fundamentalmente colaborativo, mas, sujeito à intensidade de várias horas diárias dedicadas a uma composição de cunho

laboratorial/experimental. Lembraram-se desse período como de um significativo crescimento artístico, marcado pelas instigações e interrogações aguçadas sobre o material emergente. Soube também que, com posterioridade ao período de encenações, foi publicado um livro (diário de bitácora) que permitiu cartografar o processo de criação da obra através de fotografias, entrevistas, textos e um prólogo a cargo da pesquisadora cênica Ciane Fernandes. (Na seção correspondente ao Apêndice desta escrita aparecem postadas as fotos do evento).

104 No ano 2017 desenvolvi um período de residência universitária na Europa, correspondente ao

Programa Doutorado Sanduiche no Exterior (PDSE; CAPES-MEC), vinculado ao meu doutoramento no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, dedicado à pesquisa da linguagem da

improvisação em dança contemporânea. Durante uma estancia na cidade de Berlin tive conhecimento da figura de Felix Ruckert, muito apreciado como criador coreográfico e referente de novas linhas de experimentação em dança/corpo/sexualidade. Foi ali onde tomei conhecimento sobre o seu histórico artístico, para, uma ano e meio depois, vir saber sobre a sua parceria com o BTCA através do link da obra Engenho postada na rede informática.

aparecem postados na rede informática em forma de quatro links, possuindo cada um deles uma duração dentre 00.30/00.45min.

Tal como será pontuado mais adiante, a razão da escolha da filmagem do balé

Engenho (BTCA, 2009) centra-se nas chaves poéticas amarradas por Ruckert nas

suas encenações. No capítulo um tenho postado um vídeo, dedicado à análise crítica, que permite interiorizar o trabalho que Felix Ruckert desenvolve junto à sua companhia (1.1.2.1.: MESSIAH GAME. Game One: Baptism. Cie Felix Ruckert / Dusseldorff Tanzhaus NRW, 2005); tal como ali se indica, ele resulta do encadeamento de sequências kinéticas atreladas, especialmente, às técnicas de improvisação Post Modern Dance, as quais, por sua vez, são contornadas através de

Storyboards baseados numa sucessão de estruturas abertas a serem reabitadas pelos

dançarinos: scripts preenchidos por repertórios de opções kinéticas (físicas, espaciais, complementares) que os improvisadores conseguem recuperar.

4.1.2. Projeto composicional da obra. Estratégias-base para a edição