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Solução de continuidade/critérios para criar coesão entre cenas díspares

A edição da filmagem original da obra Engenho (BTCA - 2009), transcrita numa sequência segmentada de doze cenas breves – ideada para enriquecer e extrapolar os procedimentos composicionais relacionados ao jogo de correspondências entre som/movimento –, trouxe aparelhada a questão da coesão como tópico a ser resolvido. Com ele tentou-se dar uma resposta formal (uma solução de continuidade) ao caráter eclético, díspar que a referida sequência apresentava. Isso não deve ser entendido, no entanto, como uma procura de unificação – unicismo logocentrado – do devir narrativo, mantendo sempre presente a vontade de explorar uma poética do diverso/híbrido.

Tratou-se, especificamente, do apelo a uma lógica das complementariedades/complexidades a ser estabelecida entre os materiais e fontes utilizadas, de maneira tal que as mesmas circulassem de acordo com a economia das suas reapresentações e criação de nexos interconectivos (Intances of Multimedia) a serem resolvidos por laços associativos: encadeamentos perceptuais pelo princípio de

síncrese109. Nessa linha de buscas poético-formais evidenciou-se a relevância dos

procedimentos Work in Progress (logica construtiva do Storyboard), onde a ligação entre cenas ou quadros apela à remissão/reapresentação de materiais antes citados, operando como marcas sígnicas e gestaltes com remissão mnêmico-emotiva110. Ao

serem transladados para o campo da produção de uma narrativa sonora, a estratégia- base ideada para dar coesão à diversidade de cenas centrou-se no estabelecimento de subgrupos de cenas que reunissem alguma similaridade, a serem vinculadas, no

109 Ver nota de rodapé n° 31. Michel Chion: The Audiovision (Audiovision, Barcelona: Paidós, 1993). 110 Ver comentários de Renato Cohen referidos ao uso do procedimento leitmotiv, aplicado aos

processos de montagem cênica Work in Progress. Item 3.2.3.; citação do autor do libro Work in

longo prazo da obra, através da reintrodução de materiais sonoros ouvidos anteriormente.

Desse modo, foram estabelecidos subgrupos de fontes sonoras, circunscritos no pré-plano de obra dentro da planilha-base da DAW Multipista, para que operassem segundo o princípio de leitmotiv. Correspondem serem distinguidos, dentre os critérios utilizados para o seu agrupamento:

. Componente espectral-tímbrico (tipo-morfologia da fonte).

. Grau de indicialidade da origem da fonte (denotação do contexto gerador do som). . Graus de remissão aos valores da fonte (contexto da linguagem/estilística schaefferiana); especialmente, as fontes instrumentais dos orgânicos “formais” (Solfejo dos Objetos Musicais111).

. Índice de “estranheza”, expresso no maior ou menor grau de artificialidade dos sons acusmáticos.

. Aspecto comportamental/gestual da fonte, conotado diversamente a contextos extra- diegéticos.

Posto, seguidamente, dois quadros desenhados durante as instâncias pré- composicionais, destinados à organização do plano-macro da obra. O primeiro deles esteve dedicado à observação das distribuições espaciais do elenco e traços

comportamentais com valor estruturante que se evidenciavam na encenação

coreográfica da obra Engenho (Felix Ruckert - BTCA, 2009); o segundo, ocupou-se de estabelecer os materiais/fontes sonoras – assim como certos rasgos

gestuais/performáticos – que iriam vincular umas cenas com as outras112. Nos

comentários que acompanham os quadros ao pé da imagem detalho os critérios que regem a sua concepção, assim como as variáveis selecionadas para o estabelecimento desses critérios:

111 Ver item 3.3.1., terceira tabela, seguindo a ordem de quadros postados no segmento.

112 No tocante à reconstrução genética do processo composicional da obra DESFAS[c/z]ES, parece-

me oportuno partilhar com o leitor que a referida etapa do trabalho, dedicada ao estabelecimento de critérios que permitissem subgrupar o conjunto dissímel de cenas, e atribuir a elas um repertório de materiais/fontes sonoras que proporcionassem graus de coesão (condutibilidade), demandou um tempo considerável. Ele deixou entrever, como aspecto desafiador atrelado ao planejamento de obra, que a questão da “ideação” do plano musical-sonoro para uma determinada encenação representa uma instância complexa: a perspectiva de um horizonte de buscas poéticas como tópico a ser

Figura 31 - Desfas[c/z]es: gráfico de distribuição das cenas da obra. Critérios de ordenamento espacial, temporal e grupal.

No esquema gráfico podem der distinguidas três referências básicas: A- Grupo de cenas estruturadas a partir de distribuições espaciais que se utilizaram do elenco inteiro ou subgrupos numerosos

(identificadas no setor central do quadro na cor verde escuro/claro) e cenas executadas por um solista ou duo (setor periférico, coloreado em lilás/violeta). B- Rótulos escritos em letra de forma para

identificar, dentro de cada retângulo, a tipologia que rege o caráter-comportamento/fluxo

energético/padrão rítmico/fraseado/uso da voz. C- Números arábicos para identificar as cenas, sendo que em algumas delas se dá o caso de aparecerem diferenciadas em A/B; isso deve-se ao fato de que possuem uma estrutura interna contrastada, de modo tal que uma parte pode se ajustar às tipo- morfologias de um subgrupo e a seguinte a outro.

As variáveis utilizadas para estabelecer os conjuntos nem sempre são privativas do subgrupo; elas permeiam os caracteres presentes também em outras categorias. Por esse motivo, as escolhas composicionais admitiram uma certa flexibilidade no remanejamento de signos sonoro-visuais que operaram como leitmotiv diferenciador. Assim mesmo, cabe ser indicado que dentro de conjuntos comuns (ex.: Estruturas Grupais) apresentam-se caracteres comportamentais contrapostos – tal o caso entre as variadas cenas que retomam a dinâmica do caótico-instável, e aquelas que frisam o estatismo (tempo morto) ou o uníssono demorado.

Figura 32 - Desfas[c/z]es: gráfico de distribuição das cenas da obra. Critérios de ordenamento tímbrico, fraseológico e gestual.

Dessa vez, as cenas aparecem alienadas numa pauta horizontal (círculos celestes numerados), vinculadas entre si por arcos que podem ter dentre dois e quatro braços. Tal como foi indicado anteriormente, tratou-se de estabelecer critérios que distribuíssem as fontes/materiais sonoros destinados a cada subgrupo. Isso permitiu amarrar rasgos tipo-morfológicos dentre o repertório de amostras pré-selecionadas (sample) –configuradas logo na estrutura da planilha-base da DAW –, poupando usos redundantes ou possíveis graus de ambiguação narrativa não desejados. Observe-se que em alguns subgrupos rege uma variável operacional relacionada à dinâmica (Movimento/Pausa: fraseado lírico; “Caos”); em outros, uma remissão aos valores do orgânico instrumental (revezamento: canto + piano/piano + contrabaixo/contabaixo; Guitarra com slide); em outros, ao gesto-design sonoro (Glissandi ascendente/descendente; Voz em Off + oitavador; Harpa de boca + Respiração); e em outros, ao padrão rítmico-mensural (Loop + desfase micro-temporal).

Ocorre novamente aqui que as cenas que apresentavam uma estrutura interna desdobrada foram abordadas através de um planejamento musical-sonoro também desdobrado – daí que, em alguns círculos, observa-se uma dupla entrada. Pretendo ainda levar a atenção para a composição mista de fontes, co-presentes na maioria dos subgrupos; tal como é recorrente nos processos de edição sonora numa DAW Multipista (mosaico de faixas superpostas), a maioria dos eventos destinados a sonorizar algum ambiente extramusical se compõe de imbricações, fundidos, mascaramentos (e outros procedimentos) que envolvem mais de uma fonte – devendo considerar-se, inclusive, a necessária introdução de um “ruído de fundo” que suplemente o barulho ambiente, normalmente desapercebido. Assim, o envelope textural previsto para cada evento resultou de uma composição híbrida (muitas vezes díspar), a qual solicitou, oportunamente, de sons “harmônico-instrumentais”, sons acusmáticos “clean”, fontes noise, amostras processadas e distorcidas (pedal, phaser, plugins), retalhos de gravação descontextualizados.

E- Construção de tabelas (grelhas de dupla entrada) para estruturar as