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2. CAPÍTULO I Alteridades de um gênero composicional A Música

3.1. Música Incidental como “ofício” compositivo / Área de Estudo I

3.1.2. Taxonomias e critérios de diferenciação na organização temporal das cadeias

3.1.2.2. Vídeo: A/Nônimo Impro-Ação

A/Nônimo

VIII Mostra de Performance / Galeria Cañizares / PPGAV-UFBA (Julho, 2018)

Impro-Ação a cargo de Leonardo Harispe [Leo Serrano]

Registro fílmico da performance: < https://youtu.be/y89j--KTHtg >

A escolha deste registro fílmico/sonoro deve-se ao fato de que ele exibe o caso da produção de uma “trilha sonora” (plano musical-sonoro de uma Música Incidental) gerada pelo próprio performer – neste caso, um dançarino improvisador. Dizer que se trata de sons com alto grau de referencialidade parece desnecessário aqui, desde o momento em que tudo o que se ouve (e corrobora na visão) procede dos manobramentos corporais do intérprete. Em tal sentido, estaríamos frente a um caso frequênte, mas, que cai fora da tipologia listada anteriormente (Saitta, 2012). Parece- me importante agrega-lo aqui para mostrar o caso de sons auto-referenciais (o som indica aquilo mesmo que está sendo visto), com a ressalva que agora os atributos tímbricos da fonte vazam a mera remissão sonora da fonte e adquirem relevância pela

impronta gestual, energética que os produz.

< 00.37 / 06.00: a primeira seção, intitulada Caxixi, deixa ver variados modos de anexar um caxixi à cabeça do performer, ao torço, às mãos (nesse caso, eu próprio executando). As incidências sonoras procedem de uma busca específica do timbre, atrelado ao golpe das sementes sobre os lados e base do caxixi – numa transposição musical do fenômeno dos otólitos que se deslocam e pousam sobre os lados dos condutos semicirculares do sistema límbico (ouvido médio).

< 06.18 / 08.44: na segunda seção, Mancuernas, as incidências sonoro-kinéticas procedem de uma busca diferenciada. Trata-se de extrair qualidades tímbricas das sapatilhas de malhação utilizadas (dispositivo móvel), quando estas são friccionadas ou percutidas sobre o chão. É o caso da chamada “Percussão Corporal”, mediada aqui pela interface dos aparelhos de malhar.

< 08.18 / 11.22: o último segmento, GuaraMix, retoma as buscas do primeiro, introduzindo dois chocalhos na meia que cobre o rosto (deixando-os fixos à cabeça). A singularidade desta exploração sonora está mais estritamente relacionada com as movimentações do segmento crânio-cervical, pudendo dar diversos direcionamentos

espaciais às sementes dentro dos vasos, mas, regulando tanto a intensidade que se deriva dos impactos quanto a gradação dos deslocamentos internos (efeito Pau de

Chuva).

Figura 7 - Registros fotográficos da Impro-Ação A/Nônimo (Galeria Cañizares, BA, 2018), por Leonardo Harispe.

Nas duas primeiras fotos, remanejamentos sonoros do caxixi (cabeça e mãos); nas duas seguintes, as mancuernas, utilizadas como suportes móveis para percussão; nas últimas, dois vasos de

GuaraMix com sementes (chocalhos) aderidos ao crânio.

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=2z83pAlSYQo&feature=youtu.be>

Para abordarmos a taxonomia que Saitta elabora no ensaio A Construção do

Tempo nas Artes Temporais (2011), relacionada às modulações de um tempo “virtual”

– lembrando-nos, ao passo, que nos meios audiovisuais, por serem de natureza polissêmica, as progressões temporais33 podem ser identificadas no devir das

múltiplas cadeias, ou bem, se condensar em algumas delas –, será oportuno visar, de maneira suscita, as três dimensões do tempo que o autor considera: o tempo físico ou

cronométrico; o tempo vivencial ou psicológico e o tempo virtual, dimensão na qual as

artes temporais encontram a sua especificidade narrativa.

33A noção de “progressões temporais”, frequentemente utilizada no corpus da escrita, deve ser entendida como um avanço temporal susceptível de acolher variados subtipos de evolução (padrões evolutivos), se distanciando das denotações a um tempo causal-vetorial. Do vocábulo latino

progressus e do verbo progredior: avançar, marchar (perfixo pro = ir adiante + raiz gradus: passo,

grado, gradil). Em soma, progressão como equivalente de devir, evoluir, avanço. No tocante à questão do tempo e sua forma substantivo-adjetivada “temporalidade”, na obra de autores como Justin London (The New Grove Dictionary of Music and Musicians; London: Mac Millan Publishers, 2001) ou Clemente Terni (Dizionario Della Musica e Del Musicist; Torino: UTET, 1984, p. 105 a 114) a referida noção aparece sinalizada como propulsora da apreensão perceptual do movimento musical (sentido do seu andamento, percurso), articulando a disposição/distribuição do eventos sonoros co- presentes na urdidura textural.

Para cercar as chaves do primeiro caso, o autor observa que “cada ponto é um

ictus34 temporal que estabelece o começo para a medição de uma duração, cujo

número dependerá do ictus final. É assim como a consciência do transcorrer estará afetada a um acontecimento e, desde esse ponto de vista, a existência de cada ser humano constitui uma duração como tal (delimitada pelo ictus inicial e o ictus final)” (idem, p. 339). Já o tempo psicológico “pode ser considerado como a relativização da experiência temporal; a duração de um determinado evento, condicionado pelas funções psíquicas – isso é, pela atividade mental, objeto da consciência” (idem, p. 340. Grifo nosso). Dentro dessa visão, os prazeres estéticos, resultantes da significância dos objetos sensíveis, assim como o valor simbólico-expressivo e jogo de sentimentos que eles produzem, envolvem, não apenas, à percepção – reação global do organismo a um complexo de excitações simultâneas e sucessivas –, mas, às reações de uma personalidade que tem suas memórias, seus hábitos, sua orientação intelectual e afetiva, tanto momentânea quanto duradoura. Chegamos assim ao caso do tempo virtual, pois a natureza temporal da obra artística não seria outra coisa que isso: ela não pertence ao mundo “real” ou ao mundo das “ideias”; portanto, seu tempo-espaço também será virtual35. E essas virtualidades, no entender de Saitta (2011), se

constroem a partir dos princípios composicionais que cada disciplina artística instrumentaliza.

No texto Seis Passeios pelos Bosques da Narrativa (Barcelona: Lumen, 1996), do ensaísta e semiólogo italiano Umberto Eco, se propõe que toda história tem dois níveis de estrutura, o da Fábulae o da Trama: o que-é-contado e o como-se-conta. Partindo dessa distinção, Saitta (2011) adverte que alguns desses níveis podem adquirir maior importância, a depender do remanejamento dos materiais que cada disciplina manifeste. Porém, em casos como o da música, estes níveis poderiam se homologar, chegando a ser a mesma coisa (auto-referencialidade do significante). Poderia, por essa via, se superar o nível da Fábula – aquilo que lhe é contado ao

34 Ictus ou icto (do latim ictus, us, golpe, marcação do compasso, pulsação) 1. [Filologia] A maior

intensidade do som para destacar uma sílaba das que constituem o vocábulo ou a frase. 2. [Fonética] Tom que se coloca, na pronuncia, sobre aquela das sílabas de uma palavra em que a voz se apoia com mais intensidade. = ACENTO TÔNICO 3. [Música] Tempo forte. 4. [Patologia] Ataque, choque, crise ou outra afecção ou manifestação súbita e intensa. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/icto>

35 LANGER, Susane. Os problemas da Arte. Bs. As.: Ediciones Infinito, 1966, p. 128: “Tudo aquilo que

existe, apenas, para a percepção e não desempenha um papel cotidiano, passivo na natureza, tal como ocorre com os objetos comuns, constitui uma entidade virtual. Não é algo irreal; aí onde ele nos confronta é onde realmente o percebemos, não o sonham ou imaginam percebê-lo. A imagem no espelho é uma imagem virtual”.

receptor – para que ele aceda ao nível da Trama – desvendar os critérios construtivos ou morfogênicos que se põem em jogo na composição. Será nesse nível onde a construção do tempo virtual terá lugar, pois é justamente nele onde os procedimentos rítmico-formais – ou sequenciais-temporais – adquirem a sua legítima explicitação.

Considerando este apanhado de distinções, reproduzirei seguidamente uma lista de dez e sete casos, inspirada numa diversidade de filmes de cinema de autor dentro dos quais podem ser mapeados os conceitos anteriormente apontados (todos eles relacionados à abordagem de uma temporalidade “virtual”). Corresponde esclarecer que eles não operam como categorias de análise ou parâmetros composicionais; antes bem, atuam como princípios/procedimentos aplicados à “modelagem” do tempo: um remanejamento artesanal e empírico no plano das durações-devires que incide sobre os modos em que as mesmas são percebidas. Trata-se de um conjunto de estratégias de tensionamento das relações temporais, vinculadas sempre à posta em relação entre dois (ou mais) níveis discursivos – uma lógica das progressões temporais onde uma matriz rítmica afeta ou traciona à outra. O ensaio A Construção do Tempo nas Artes Temporais (SAITTA, 2011), como se vê, não problematiza as nuances relacionadas à construção de um plano musical-sonoro e sua incidência sobre as cadeias linguísticas de uma mídia (ofício do sonorizador); antes bem, foca-se nas operações que alteram e reconfiguram o contorno virtual dos variados subtipos de evolução temporal: formas de conectividade que afetam às relações rítmico-mensuráveis no domínio das Artes Temporais (dança, teatro, música, cinema e outras).

Apresento a lista ideada por Saitta no referido ensaio (2011, p. 345 e 346)36:

1. Determinação da duração virtual: independentemente da remissão ao tempo- real (Amarcord. Dir: Federico Fellini - 1973).

2. Reticências: isto é, quebra de tempo de qualquer magnitude.

3. Analepsis e prolepsis: a alteração da linearidade; retorno temporário para qualquer momento do passado ou indo para qualquer momento do futuro. (O

Padrinho III - Francis Ford Coppola - 1990).

4. Transformação de simultânea para sucessiva (Trafic - Dir. Jacques Tati - 1971).

36 Para ampliar e ter uma perspectiva teórica mais precisa dos termos postados na lista – alguns

deles infrequentes –, pode se consultar a publicação do ensaio, cadastrado na rede informática. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/190757248/Construccion-Tiempo-Artes-Temporales-

5. O atraso ou compressão da duração com base nas necessidades de ação dramática (Carlitos Way - Dir: Brian Di Palma – 1993. A esfera - Dir: Barry Levinson - 1998).

6. Aumento ou diminuição de uma unidade de significado narrativa (Dia da

Marmota - Dir: Sam Raimi - 1993).

7. Simultaneidade de diferentes durações: modificação de qualquer das cadeias acima mencionadas (Vertigem- Dir: Alfred Hitchcock - 1958)

8. Não-correspondência entre o verbal, visual e sonoro: som off, off field (A

Tempestade - Dir: Peter Greenaway, 1991).

9. Reversibilidade: possibilidade de passar por uma duração à direção oposta, ou também de ser um racconto, isto é, estar no presente e ir ao passado para explorá-lo (O livro negro - Dir: Paul Verhoeven - 2006; Irreversível - Dir: Gaspar Noe - 2002).

10. Ambiguidade temporária através do uso do tempo imperfeito no texto: a inclusão de sonhos, pesadelos, etc., ou devido ao design do enredo (O espelho - Dir: Andrey Tarkovski - 1975).

11. Adiamento do tempo narrativo através da inclusão de uma cena secundária (Shark Dir: Steven Spielberg - 1975).

12. Suspensão do tempo narrativo (congelamento da imagem, imagens interiores (Nostalghia - Andrey Tarkovski - 1983).

13. Aceleração ou desaceleração através de procedimentos ópticos na

filmagem ou na pós-produção (câmera lenta, movimento rápido) (Gatica, el Mono - Dir: Leonardo Favio - 1993).

14. Diacronismo ou deslocamento entre som/imagem em função da tensão (Zona de Risco - Dir. Fernando Spiner - 1993).

15. Repetição textual (ou não) em suas diferentes formas (A zona - Dir: Andrey Tarkovski – 1979; Rashomon Dir: Akira Kurosawa – 1950; Corre Lola, corre - Dir: Tom Tykwer - 1998).

16. Montagem paralela e montagem alternada: A- pudendo se corresponder em momentos simultâneos ou não (analepsis, memórias, etc.); B- pudendo se reunir ou não em um determinado momento (Estado da Graça - Dir: Phil Joanou - 1990).

17. A apresentação de vários eventos simultâneos (diacrônicos ou sincrônicos)

por meio de superimposição ou divisão da tela (A tempestade - Dir: Peter

Greenaway - 1991).

18. Narração em tempo real (Antes do pôr do sol - Dir: Richard Linklater - 2004).

Tendo presente a enumeração de procedimentos postados na lista anterior, consistente num eclético repertório de estratégias direcionadas a regular/modelar o jogo de tensionamentos rítmicos implicados nas progressões das Artes Temporais (mensura das durações-devires; Saitta, 2011), proponho, seguidamente, um conjunto mínimo de quatro procedimentos-base que permita reunir e simplificar a variedade de exemplos citados. Em cada um desses conjuntos anexos os números correspondentes aos casos da lista que se ajustam a essa categoria:

< Torção/metamorfose da linearidade temporal: 1, 2, 3, 7, 9, 12, 17.

< Transições e modos de compressão/estiramento do tempo: 4, 5, 13, 14, 17. < Alterações sígnico-semióticas das unidades mínimas de significância: 6, 10, 11. < Afetação da lógica de correspondência entre as cadeias linguísticas do complexo multimídia (suas temporalidades): 8, 13, 15, 16.

Este ordenamento taxonômico tem por finalidade, tal como foi apontado anteriormente, a instrumentalização de variáveis operacionais que se apliquem com praticidade e eminente combinatória tanto no planejamento de trilhas sonoras destinadas às mídias (cênicas ou virtuais), assim como à (pós)análise que me proponho desenvolver no último capítulo. No encerramento desta Área de Estudo – assim como nas duas seguintes – ofereço ao leitor uma síntese ampliada que condensa o leque de tópicos tratados na seção. Esta estratégia se propõe cartografar, num sentido vasto, o apanhado total de critérios que vão sendo levantados ao longo do estudo crítico-analítico. A reunião geral desses quadros (apresentados na cor verde) tem por objetivo de fundo desenhar um mapa conceitual global da pesquisa, pudendo, por essa via, colocá-los em cruzamento e dimensionar os alcances compreendidos na práxis compositiva associada à produção de trilhas sonoras (Música Incidental para a cena de dança).