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3. O SISTEMA DE COTAS: UTOPIA OU POSSIBLILIDADE?

3.1. As medidas de ações afirmativas

3.1.2. As ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos

A contextualização histórica das ações afirmativas revela uma estrita relação dessas com a evolução dos direitos humanos pautados na inclusão social e luta emancipatória dos grupos e minorias excluídos.

A universalidade e a indivisibilidade foram aspectos agregados aos direitos humanos na seara internacional a partir da Declaração de 1948, aspectos que impulsionaram a criação de um sistema de normas internacionais de proteção desses direitos. Paralelamente a esse sistema global, surgiram normas regionais na Europa, América e África também buscando a internacionalização de tais direitos.

A primeira fase dessa tendência foi marcada pela proteção geral dos direitos humanos, principalmente no que tange o temor baseado na diferença – motor dos atos nazistas.

No entanto, a proteção genérica não se demonstrou suficiente para garantir os direitos humanos em situações específicas, de tal forma que a criação de proteções diferenciadas, em face da vulnerabilidade de certos grupos, tornou-se imprescindível.

A diferença não deveria mais ser considerada motivo para afastar direitos, mas sim para promover direitos.

Em tal contexto a concepção de igualdade recebeu diversas interpretações: 1) igualdade formal, previsão legal; 2) igualdade material, corresponde ao critério de justiça social distributiva e, ainda, à igualdade material voltada ao reconhecimento das identidades, ou seja, sexo, raça, cor, etnia, características físicas e biológicas, dentre outros critérios.95

94“Esses efeitos revelam na chamada ´discriminação estrutural’ calcada em abissais desigualdades

sociais entre grupos dominantes e os grupos minoritários ou marginalizados”. MELO, op. cit., p. 133.

95

“Nesse cenário, por exemplo, a população afro descendente, as mulheres, as crianças e demais grupos que devem ser vistos nas suas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge também, como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o direito à diferença e à diversidade”. PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos

A ideia de considerar a ciência jurídica como um conjunto de normas ajustáveis ao caso concreto pelo positivismo jurídico - amparador do discurso neoliberal, racional-tecnocrata - traduz o princípio da igualdade universal, ampla e formal é insuficiente para o alcance do bem comum.96

Ao contrário, a materialização da igualdade possui elementos específicos, que não envolvem somente a questão da redistribuição de direitos na mesma proporção e para todos (igualmente), mas envolvem também o reconhecimento do grupo pela sociedade.97

Trata-se do viés emancipatório da igualdade, o que exige um modelo em que coexistam concomitantemente o amplo e o particular, em que, por um lado, seja garantida a redistribuição universal ampla e, por outro, reconheça a diversidade e as peculiaridades:

A tarefa em parte é elaborar um conceito amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto às reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença. 98

A concretização da igualdade de direitos na sociedade não depende somente do afastamento das injustiças econômicas, mas também da aceitação da diversidade, de todos os grupos e respectivas peculiaridades - o que é um fator relacionado à questão cultural. Considerando-se essa abordagem da questão, “reconhecimento-redistribuição”, tomemos o seguinte exemplo: um cidadão, negro, executivo norte-americano, bem sucedido de Wall Street, que não consegue tomar

humanos. Cadernos de Pesquisa, Vol. 35, n. 124, jan/abr.2005, Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/v35n124/a0435124.pdf. Acesso em: 18 de mar. 2012.

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“ Na realidade, quem conferiu as armas para a recepção do discurso neoliberal no campo do Direito foi o positivismo jurídico. A ciência jurídica passou a ser considerada como um mero conjunto de normas ajustáveis ao caso concreto a partir de um processo de silogismo lógico. O enunciado formal da igualdade de todos perante a lei serviu de justificação deste discurso que, em verdade, ostentava uma crônica dificuldade de legitimação no que se refere a uma axiologia substancial. O princípio da igualdade, portanto, só encontra agasalho no Direito dentro de uma perspectiva puramente formal, completamente ajustada ao discurso racional-tecnocrata da modernidade, já que, substancialmente, as pessoas são diferentes entre si. Mutatis mutandi, diante de uma perspectiva substancial do Direito o discurso técnico-jurídico da modernidade – e seu postulado fundamental da igualdade de todos perante a lei – não se sustentaria em cotejo com a liberdade consensual e a afirmação do bem comum”. FERREIRA; FERREIRA, opus cit. Acesso em: 18 de fev. 2012.

97

“Justiça, hoje, requer tanto uma redistribuição quanto reconhecimento; nenhum deles sozinho é suficiente. A partir do momento em que se adota essa tese, entretanto, a questão de como combiná- los se torna urgente”. FRASER, opus cit. Acesso em: 18 de fev. 2012.

um simples táxi em razão do racismo social que prevaleceu durante determinada época no país. Ou seja, Se por um lado existe igualdade do ponto de vista econômico, ainda prevalece a cultura de segregação social.

Da mesma forma, quando se supõe que um jovem, com especialização profissional, é dispensado da empresa em razão de uma fusão corporativa especulatória, a redistribuição e os aspectos econômicos são fatores que influenciam no princípio da igualdade99.

O reconhecimento e a igualdade, assim, são relacionados e dependentes. Contudo, o alcance do reconhecimento deve ser bidimensional, reconhecimento- distribuição, direito de ser igual quando a igualdade inferioriza e direito de ser diferente quando a igualdade descaracteriza o grupo. Somente assim tem-se a igualdade material.100

O aperfeiçoamento dos critérios de isonomia influenciou o teor da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial101, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1965, que nega e proíbe qualquer tratamento que embase doutrina de superioridade de raças, e assinala a necessidade de adotar medidas para afastar toda e qualquer tipo de discriminação racial.102

A ideia de eliminação da discriminação que passou a ser alvo do sistema internacional de normas é a de que devemos ser tratados como iguais, porém

99 Exemplo referido por Nancy Fraser para fundamentar de modo prático a questão do

“reconhecimento-redistribuição”. FRASER, Nancy. Redistribución, reconocimento y participación: hacia um concepto integrado de la justicia. In: Organización de Las Naciones Unidas para la

Educación, La ciencia y la cultura. Informe mundial sobre la cultura: 2000-2001. Montevideo: Centro

Unesco. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/56928514/Unesco-Informe-mundial-sobre-la-cultura- 2000-2001. Acesso em: 19 de jun. 2012.

100 SANTOS, Boaventura Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista

Crítica de Ciências Sociais, n. 48, 1997. Disponível em:

http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_RC CS48.PDF. Acesso em: 05 de abr. 2012.

101 Decreto nº 65.810 - de 8 de dezembro de 1969, aprovado pelo decreto legislativo n. 23, de 21

junho de 1967, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas Discriminação Racial, que foi aberta à assinatura em Nova York e pelo Brasil 7 de março de 1966;

102 Art. I da Convenção para eliminação de todas as formas de discriminação: 1. Nesta Convenção, a

expressão "discriminação racial" significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anula ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida. 2. Esta Convenção não se aplicará às distinções, exclusões, restrições e preferências feitas por um Estado Parte nesta Convenção entre cidadãos.3. Nada nesta Convenção poderá ser interpretado como afetando as disposições legais dos Estados Partes, relativas a nacionalidade, cidadania e naturalização, desde que tais disposições não discriminem contra qualquer nacionalidade particular.

estamos em situações diferentes, e também aquela de que somos tratados de forma diferente, porém, de fato, somos todos iguais.103

A partir daí, passou-se discutir a respeito de medidas de ação afirmativa que deveriam ser tomadas para eliminar qualquer forma de discriminação. Nesse sentido:

No âmbito do Direito Internacional Humano, destacam-se duas estratégias:

a) repressiva punitiva (que tem por objetivo, punir, proibir e eliminar a discriminação),

b) promocional (que tem por objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade). 104

A proibição da discriminação e sua respectiva punição pelo ordenamento jurídico não foi suficiente para eliminar o comportamento discriminatório, ainda que relevante como meio emergencial de bani-lo. Por isso, houve necessidade de intensificar esse processo de medidas antidiscriminatórias destinadas à reinclusão105 social dos grupos vulneráveis.

As ações afirmativas surgem revestidas justamente dessa função, ou seja, são políticas compensatórias e temporárias destinadas a aliviar um passado discriminatório e moldar a sociedade nos princípios da diversidade e pluralidade.

A análise da aplicabilidade e efeitos das ações afirmativas também deve levar em consideração as causas radicais da exclusão, que decorrem do sistema econômico, para que não se tornem soluções meramente paliativas, mas sim instrumento de mudança social. Essa abordagem foi realizada no Capítulo 2.

103 A Convenção para eliminação de todas as formas de discriminação esclarece que o

estabelecimento de medidas para inclusão de grupos discriminados não são considerados práticas discriminatórias. Consta essa previsão no item 4 do art.I. “4. Não serão consideradas discriminações racial as medidas especiais tomadas como o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em conseqüência , á manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos”. O texto fundamenta a adoção de ações afirmativas, também denominadas medidas de discriminação positiva como meio legal de erradicar a discriminação históricas de grupos.

104 PIOVESAN, opus cit. Acesso em: 18 de mar. 2012.

105 Conforme comentado no Capítulo 2, o sistema exclui para, posteriormente incluir, o que parece

bastante contraditório, porém se defende que as ações afirmativas consistem no mecanismo jurídico inibitório de práticas discriminatórias.

A possibilidade de mudança social mensurável é o que justifica a adoção das ações afirmativas, sua hermenêutica deve ser libertadora porque se constituem uma denúncia aos efeitos perversos do sistema. 106

Não diferente da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência também definiu discriminação: qualquer tipo de distinção, exclusão ou restrição relacionadas à deficiência, que tenha por efeito ou objetivo impedir ou obstar o exercício pleno de direitos.107

O conceito utilizado pela convenção reforça a necessidade de incorporação da perspectiva de gênero para promover o pleno desfrute dos direitos humanos e liberdades fundamentais, conforme consta na alínea “s” do Preâmbulo108 do referido documento.

Essa mesma convenção foi inspirada na necessidade do Estado promover e assegurar o exercício de direitos humanos às pessoas com deficiência, pela implementação de medidas legislativas e administrativas. Introduziu o conceito de

reasonable accommodation, ou seja, o dever do Estado de adotar ajustes e

adaptações para o exercício dos direitos humanos pelas pessoas com deficiência.109

106

“Toda medida de discriminação positiva, além disto, deve resultar na possibilidade de acarretar uma mudança social, ainda que não relevante, mas mensurável objetivamente. Vale dizer, para evitar o abstracionismo e a banalização do instituto, é necessário que as medidas, ainda que concretamente atinjam um único indivíduo, possam representar alguma possibilidade de transformação social, o que equivale à problematização elevada à consciência pública. Toda hermenêutica das discriminações positivas deve ser libertadora e, nesta medida, constituir-se em uma denúncia dos perversos efeitos do sistema social”. FERREIRA; FERREIRA, opus cit. Alexandre Mendes Cruz. Hermenêutica Afirmativa e horizontes ontológicos da discriminação positiva. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6054/hermeneutica-afirmativa-e-horizontes-ontologicos-da- discriminacao-positiva. Acesso em: 18 de mar. 2012.

107 A Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência se utilizou do mesmo

conceito de discriminação adotado pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1965, conforme artigo 2º. "Discriminação por motivo de deficiência" significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável”.

108 Alínea s do Preambulo: Ressaltando a necessidade de incorporar a perspectiva de gênero aos

esforços para promover o pleno desfrute dos direitos humanos e liberdades fundamentais.

109 "Ajustamento razoável" significa a modificação necessária e adequada e os ajustes que não

acarretem um ônus desproporcional ou indevido, quando necessários em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam desfrutar ou exercitar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; (art. 2º).

A violação do reasonable accommodation, ou ajustamento razoável é uma violação aos direitos humanos.110

O reasonable accommodation é antidiscriminatório e sua adoção não viola a isonomia, especialmente quando se leva em consideração sua importância no ambiente de trabalho. Isto porque, para que o empregador cumpra as medidas de discriminação positiva para inclusão baseada no critério de gênero e raça, basta que trate todos igualmente. No entanto, a contratação da pessoa com deficiência gera questionamento quanto aos custos, seja em relação à dúvida quanto à produtividade do grupo, seja àqueles referentes às adaptações físicas do ambiente. Diante disso, a ruptura das barreiras físicas no ambiente de trabalho importam no bom desempenho da pessoa com deficiência contratada e, consequentemente, na percepção do empregador dos seus resultados.

Desse modo, é adequado que as medidas de discriminação positiva para inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho compreendam também o reasonable accommodation. Não há que se falar em ofensa ao princípio da isonomia, porque trata de adoção de medida especialmente necessária para a inclusão desse grupo. 111

As finalidades das ações afirmativas são essencialmente sociais e, juntamente com o respaldo jurídico, assumem papel fundamental na inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, porém, antes de enfocar essa

110

“O propósito da Convenção é promover, proteger e assegurar o pleno exercício dos direitos humanos das pessoas com deficiência, demandando dos Estados-partes medidas legislativas, administrativas e de outra natureza para a implementação dos direitos nela previstos. Introduz a Convenção o conceito de ‘reasonable accommodation’, apontando ao dever do Estado de adotar ajustes, adaptações, ou modificações razoáveis e apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o exercício dos direitos humanos em igualdade de condições com os demais. Violar o ‘reasonable accommodation’ é uma forma de discriminação nas esferas pública e privada”. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 291-2.

111 “Although the ADA itself addresses the potential relevance of an individual.s disability to his

employment by limiting statutory protection to .qualified individual[s] with a disability,. some still cannot shake the sense that disability is relevant in the ideal meritocratic employment scheme in a way that raceand gender are not.26 In sum, while civil rights laws commanding employers to ignore race or gender in their employment decisions seem calculated to direct employer attention away from irrelevant information, some see the ADA as limiting an employer.s ability to act on information believed to be relevant. Thus, those who are convinced of the (at least potential) materiality of disability to job performance . and thus the fairness of taking disability into account . may perceive this limitation as a granting of .special rights to persons with disabilities”. CROSSLEY, Mary A. Reasonable

Accomodation as Part and Parcel of Antidiscrimination Project. FSU College of Law, Public Law

Reasearch, n. 90, University of Pittsburgh, Law School, set. 2003. Disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=447680. Acesso em: 18 de jun. 2012.

questão, cumpre analisar quais os mecanismos de ação afirmativa utilizados pelo Estado.