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O processo formação de concepções discriminatórias negativas: coitadinhos,

2. INCLUSÃO SOCIAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: COMO SÃO

2.1. O processo formação de concepções discriminatórias negativas: coitadinhos,

A deficiência é uma possibilidade presente durante todos os períodos da vida de todos seres humanos. Encontra-se na esfera do inesperado, porém pode ocorrer com qualquer pessoa. Ainda assim, o senso comum revela que é uma condição que assusta a humanidade, o que interfere em fatores éticos e morais na formação da identidade coletiva do grupo e em sua participação social. Nesse sentido:

O impacto que a deficiência gera na maioria das pessoas é um golpe na sua onipotência, como a incomoda sensação de saber que a Terra não é o centro do universo; é um planeta dentro de um sistema, de uma galáxia. A sensação de controle, de autonomia e de poder é relativizada e humanizada. Nesse sentido, o contato com a

deficiência revela também a nossa fragilidade, o que muitas vezes não queremos ver. 59

As constatações acima conduzem às seguintes perguntas: por que isso ocorre? O que leva a humanidade a rejeitar pessoas que compartilham das mesmas condições de seres humanos?

A busca das respostas deve se iniciar com o conceito de normalidade, pois, a partir daí, se desenvolve o conceito de anormalidade e a categorização das deficiências feita pela sociedade e reproduzida pelas normas jurídicas, conforme atentado no capítulo anterior. O problema, assim, não é resultado da deficiência em si, o problema reside na formação do conceito de normalidade.

A ideia de normalização é proveniente dos estudos estatísticos formulados por Adolphe Quetelet que criou a ideia do homem médio60, o homem padrão, que balizaria os padrões físicos e morais da sociedade. O desvio do dito padrão importa no desvio de normalidade, e este conseqüentemente está associado à transgressão social.

Assim, os próprios ambientes sociais estabelecem parâmetros e valores sobre a expectativa do normal. De acordo com Michel Foucault61, esse processo classificatório é formado pelo conjunto de práticas discursivas (concepções filosóficas, princípios religiosos, dentre outros) e práticas não discursivas (técnicas de controle corporal, regulamentos do tempo).

Diante da supremacia da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e o desafio da inclusão social do grupo, a compreensão das práticas discursivas e concepções da deficiência assumem papel relevante para efeitos de estratégias a serem adotadas pela sociedade também como forma de erradicar modelos segregativos e discriminatórios. Afinal, tirar o foco do preconceito e perceber as diferentes formas de como a deficiência é concebida, permitem

59 LIMA, Priscila Augusta (Org.). Educação Inclusiva e Igualdade Social. São Paulo: Avercamp, 2006.

p. 14.

60 SILVEIRA, Bruna Rocha. Por que estudar a representação das pessoas com deficiência na

teledramartugia brasileira? Trabalho apresentado pelo Grupo de Estudos de cultura e identidade do

IV SIPECOM: Seminário Internacional de Pesquisa em Comunicação e Estratégias Midiáticas. Disponível em: http://www.ufsm.br/sipecom/anais/artigos/culturaidentidade/SILVEIRA.pdf. Acesso em: 12 de jun. 2018.

61 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Disponível em: http://www.labgedus.com.br/docs/GEDUS-

enxergar as mudanças comportamentais necessárias para propiciar transformação da realidade.

Frente a esse cenário, as principais formas de ver a deficiência podem ser classificadas em seis matrizes, que funcionam como modelos de interpretação da realidade, “matrizes de interpretação da deficiência”, e que se resumem da seguinte forma: 1) A matriz da subsistência/sobrevivência; 2) A sociedade ideal e a função da pessoa; 3) A deficiência como fenômeno espiritual; 4) A normalidade como matriz de interpretação predominante; 5) A inclusão social como matriz de interpretação; 6) A técnica como matriz de interpretação dominante.62

A matriz da subsistência/sobrevivência foi utilizada durante o período pós Segunda Guerra Mundial, quando mudanças em relação às pessoas com deficiência ocorreram, porque a sociedade necessitava de mão de obra para o mercado de trabalho e os ex-combatentes apresentavam um nível cultural elevado. Estes passaram a ser reconhecidos como capazes de contribuir para a sociedade, apesar de suas deficiências. Cria-se, assim, a inserção das pessoas com deficiência condicionada à prova de que eram capazes.

Durante os séculos VI a.C e o ano 322 a.C, denominado Período Clássico, preponderou a idéia de que as pessoas que não atendiam aos requisitos de uma sociedade ideal deveriam ser eliminadas. Assim, a deficiência era compreendida como ausência de saúde e perfeição. Essa concepção de sociedade ideal e função instrumental da pessoa com deficiência também preponderou, no início do século XX, na Europa, nas discussões relativas à eugenia e justificou a morte de milhares de pessoas em função das práticas nazistas.

Durante a Idade Média e início da Renascença, a forma de interpretar a deficiência baseava-se em critérios metafísicos, no castigo divino, ou, senão, tornava-se uma forma de desenvolver a bondade humana através de ações de caridade. Essa interpretação da deficiência fundada no fenômeno espiritual propiciou três tipos de ações sociais, quais sejam, “a intolerância que associa a deficiência à

62 Maria Nivalda de Carvalho-Freitas e Antonio Luiz Marques se referem a cinco matrizes, são elas: 1)

a matriz da subsistência/sobrevivência; 2) A sociedade ideal e a função da pessoa; 3) A deficiência como fenômeno espiritual; 4) A normalidade como matriz de interpretação predominante; 5) A inclusão social como matriz de interpretação; 6) A técnica como matriz de interpretação dominante. Concepções de Deficiência: As formas de ver a deficiência e suas consequências no trabalho. In: CARVALHO-FREITAS, Maria Nivalda; MARQUES, Antonio Luiz (Orgs.). O Trabalho da Pessoa com

revelação do pecado; a defesa da existência de instituições que cuidem dessas pessoas; e o incentivo à difusão de donativos e às ações de caridade”.

Observa-se, ainda, que essa matriz da deficiência é notada na atualidade, sendo comum considerar abençoadas as pessoas que realizam trabalhos ou possuem parentesco com pessoas com deficiência. Sem contar que a deficiência ainda é exposta para fins de ações de caridade motivadas pela compaixão e piedade.

Outra concepção de deficiência surge com a transição do feudalismo para o capitalismo, quando a forma de enxergar a deficiência tinha em vista o modelo de homem normal, de forma que se tenta reabilitá-la para enquadrá-la dentro dos padrões sociais considerados normais. Essa matriz da deficiência que é denominada “normalidade como matriz preponderante” ainda pode ser verificada em empresas que alocam a mão de obra das pessoas, nessa condição, somente para determinadas atividades e não utilizam o potencial de trabalho da pessoa. Em parte mais avançada do presente trabalho, realiza-r-se-á crítica a respeito da possibilidade de instituir o mapeamento de função, já que seu fundamento está atrelado a esta antiquada matriz de normalidade.

A inclusão social, como matriz da interpretação da deficiência, é o novo modelo foi adotado nos últimos documentos normativos, conforme mencionado no item anterior. Essa concepção não foca a incapacidade e, sim, a capacidade do indivíduo, além de respeitar a diversidade social.

Por fim, a matriz da técnica como interpretação dominante leva em conta que “a deficiência, é um problema técnico a ser gerenciado como um recurso dentro das organizações de trabalho”.

Além das diversas formas de concepção da deficiência, as condições e práticas de trabalhos também devem ser objetos de análise como forma de garantir a igualdade de oportunidade. Essas questões passam a ser objeto da Sociologia que pondera a respeito da relação entre a deficiência e os espaços sociais. Nesse sentido:

[...] é que questões de saúde, doença ou deficiência passa a ser considerada como um estado social e a autoridade médica como um sistema de controle social [...] a sociedade, para ter um funcionamento apropriado, todos os seus membros devem desempenhar seus papéis adequadamente. A saúde é definida como um estado estável, normal, associado a uma capacidade ótima. Ao

contrário, a doença e a deficiência são consideradas como estados “anormais”, que tornam os indivíduos improdutivos e dependentes, enfim, formas similares ao desvio social. A profissão médica é considerada como tendo uma função crucial no controle social da doença e um papel importante para a sociedade [...] 63

Considerando a visão da Sociologia, podemos afirmar que existem três modelos de deficiência, criados a partir da categoria espaço no processo de inclusão e discriminação das pessoas com deficiência. São eles: modelo caritativo, modelo médico e modelo social.64

O modelo caritativo considera que a pessoa com deficiência é vítima de um

déficit e que não seria capaz de levar uma vida independente e, por isso, destina-

lhes espaços especiais, serviços especiais e instituições diferentes.

O modelo médico considera que a pessoa com deficiência apresenta problemas físicos que precisam ser curados, busca a normalidade delas e baseia-se na ideia de que ela precisa ser mudada para se adequar à sociedade onde vive. Por isso, para normalizá-la, o modelo médico pressupõe que é essencial tratá-la, destinar serviços especiais, educação especiais, dentre outras providências, no mesmo sentido.

O modelo social se fundamenta na ideia de que a deficiência é resultado do modo como a sociedade se organiza. Assim, a pessoa com deficiência é discriminada, caso a sociedade esteja mal organizada e, portanto, nela persistirão a existência de barreiras de acessibilidade, institucionais e atitudinais.

As normas internacionais vigentes, mormente a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, se amparam no modelo social, pois protegem a igualdade de oportunidades. Do mesmo modo, o Estado brasileiro, conforme já se comentou, deve se orientar pela matriz da inclusão social, em que pesem os inúmeros impasses e resistências, para que haja o cumprimento da extensa legislação brasileira destinada à proteção dos direitos das pessoas com deficiência.

No item seguinte analisaremos as consequências advindas das diversas formas de concepções da deficiência que, indubitavelmente, ensejam a exclusão

63 Idem, ibidem, p. 253.

64 Versão Revista do Manual que foi i

ntegrante do projeto “Documento de Estratégia para Redução da Pobreza e Deficiência”, iniciado por Judy Heumann, Disability Advisor of the World Bank, com apoio

do fundo alemão. Disponivel em: http://www.making-prsp-

social da minoria. Por isso, paralelamente, discorrer-se-á a respeito do tratamento jurídico estabelecido para coibir e prevenir a violação de direitos do grupo.