• Nenhum resultado encontrado

2.1 A estrutura do Estado Federativo Fiscal Brasileiro

2.1.3 As características do federalismo fiscal brasileiro

Com fundamento no Texto Constitucional de 1988, o federalismo político e fiscal brasileiro passou a ter o aspecto “cooperativo” e “solidário”, o qual determina a integração e a cooperação de políticas públicas entre as esferas governamentais no intuito de alcançar a equidade inter-regional. Isto porque a Carta Política vigente no seu artigo 3º, incisos I, II, III e IV, determina como objetivos fundamentais da República Federativa brasileira:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL. CF.1988)

A solidariedade, a justiça, a igualdade e o desenvolvimento regional devem nortear as decisões e as ações da Federação brasileira, inclusive, o federalismo político e fiscal brasileiro, isto é, o arranjo institucional que promove a distribuição de receitas e a atribuição de responsabilidades entre as entidades federativas.

Neste sentido, determina mais especificamente o art. 23 da Constituição Federal de 1988 o seguinte:

Art. 23. Lei Complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Conforme Baleeiro (2008, p. 588-589), a Constituição Federal vigente quis se referir “aos deveres de solidariedade e de confiança que devem nortear as entidades políticas em toda a Federação”. Todavia, o autor chama atenção que a Lei Complementar deverá respeitar as competências estabelecidas no Texto Constitucional, não podendo a título de cooperação recíproca entre os entes federativos redistribuir os encargos determinados constitucionalmente.

Segundo Bercovici (2003, p. 149-151), a Constituição Federal de 1988 deu ênfase na cooperação federal e na superação das desigualdades regionais, promovendo a restauração das estruturas federais do Brasil e caracterizando o federalismo como cooperativo. O autor ressalta que o termo “cooperação” que norteia o federalismo atual deve ser distinguido da noção de “coordenação”, dentro do complexo sistema de relações intergovernamentais, pois a coordenação consiste em um modo de atribuição e exercício conjunto de competências em que cada ente federativo possui um grau de participação diferenciado, a exemplo das competências concorrentes (art. 24, CF/88), ao passo que a cooperação propriamente dita implica que todos os entes federativos devam colaborar para executar determinada tarefa, não existindo supremacia de nenhuma esfera, partindo do pressuposto da estreita interdependência que existe entre as três esferas governamentais, em que a decisão deve ser conjunta, mas a execução pode ser

realizada por atribuições diferenciadas entre as esferas governamentais, a exemplo das competências comuns (art. 23, CF/88) e do procedimento de financiamento das políticas públicas.

Rovira (1986, p. 345-346; p. 362-364) esclarece que o termo “cooperação” que caracteriza o federalismo atual não pode ser compreendido na sua acepção clássica como a simples colaboração entre as entidades federativas ou trabalho em comum, pois nada acrescenta à ideia de federalismo, a qual implica um mínimo de colaboração entre as entidades federativas, desse modo, ressalta um sentido mais específico para as relações cooperativas federais que constitui como um regime de competência substantivo, como um modo de atribuição e exercício conjunto dos poderes estatais, em que as diversas entidades federativas gozam de um determinado grau de participação. Há uma passagem do “federalismo de justaposição”, característico do federalismo dual norte-americano que vigorou do segundo terço do século XIX até o New Deal, para o “federalismo de participação”, em que todas as esferas governamentais participam das matérias de interesse comum para formar uma vontade federal unitária, em que pese a execução seja diversificada.

Com base no exposto, entende-se que o federalismo cooperativo brasileiro consiste no dever de cooperação político e financeiro entre as esferas governamentais, mediante o planejamento conjunto de políticas públicas e distribuição adequada de recursos, no intuito de consagrar os objetivos fundamentais da República Federativa de solidariedade, justiça e igualdade.

Bercovici (2003, p. 157) reforça o entendimento ao expor, com base na obra “Les Aspects, Financeirs Du Fédéralisme” de Anastopoulos, que:

O grande objetivo do federalismo, na atualidade, é a busca da cooperação entre União e entes federados, equilibrando a descentralização federal com os imperativos da integração econômica nacional. Assim, o fundamento do federalismo cooperativo, em termos fiscais, é a cooperação financeira, que se desenvolve em virtude da necessidade de solidariedade federal por meio de políticas públicas conjuntas e de compensações das disparidades regionais.

Desse modo, não há uma “hierarquização de níveis governamentais” no Estado Brasileiro, como muitos ainda compreendem, refletindo até mesmo em algumas disposições legislativas. O poder político da União não é superior ao dos

estados e estes não possuem poder político superior aos municípios, na verdade, cada esfera governamental tem suas atribuições políticas, administrativas e financeiras (DALLARI, 1986, p. 22; SOUZA, 2005, p. 174).

É importante destacar a faceta “fiscal” do federalismo cooperativo que implica, com arrimo nos princípios da solidariedade e da igualdade de condições de vida, a cooperação financeira, ou seja, a distribuição adequada de recursos entre as esferas governamentais de modo que possam arcar com as suas responsabilidades de promover serviços públicos equivalentes em toda a Federação e, ao mesmo tempo, contribuir na redução das desigualdades regionais existentes no país.

Portanto, o sistema tributário e financeiro deve estar orientado pelos primados da solidariedade, da igualdade e da justiça social para efetivar o federalismo fiscal cooperativo. Neste sentido, aduz Bercovici (2003, p. 159) que “o federalismo não está mais limitado a criar espaços financeiros e tributários estanques, mas busca o equilíbrio e a redistribuição da renda inter-regional”.

Isto quer dizer que o federalismo fiscal cooperativo brasileiro não pode ser compreendido como uma mera forma do governo federal estender recursos aos estados e municípios, visto que se requer também a garantia da autonomia das entidades subnacionais em administrar os seus gastos com recursos próprios e optar pelas políticas públicas que atendam as suas necessidades locais (SOUZA, 2005, p. 173).

Desse modo, o federalismo cooperativo é adequado à efetivação de um Estado Social e à necessidade de redução das desigualdades regionais, pois busca a cooperação de todas as entidades federativas para tomar as decisões em prol das condições igualitárias entre os cidadãos de uma mesma nação (BERCOVICI, 2003).

Como dito alhures, a Federação brasileira constitui-se em um Estado Democrático de Direito, sendo um paradigma indissociável da garantia e da implementação da democracia e dos direitos fundamentais, individuais, sociais, culturais, econômicos e difusos, como a liberdade, a igualdade, a solidariedade, entre outros. Para Hesse (1998, p. 170-171) os direitos fundamentais sociais consistem em “normas constitucionais que determinam obrigatoriamente tarefas e direção de atuação estatal, presente e futura”, logo, impõem uma conduta ativa ao Estado.

Conforme Streck (2004, p. 164-165), o Estado Democrático de Direito brasileiro aparece com o intuito de superar a ineficácia do Estado Social de Direito,

acrescentando um plus ao introduzir o termo “Democrático”, pois estabelece diversos instrumentos que oportunizam a implementação da democracia e dos direitos fundamentais. No mesmo sentido, Canotilho (2003), em simpósio realizado em 2002 nas cidades de Curitiba e São Luis do Purunã (Fazenda Cainã), afirmou que no Brasil é coerente que a centralidade do texto constitucional seja ainda do Estado Democrático de Direito, que vincula o Estado a diversas políticas públicas em prol dos direitos fundamentais sociais, como um incentivo à luta política, já que, ao contrário de países como Espanha e Portugal, o Estado Social de Direito brasileiro não foi efetivado.

Yamashita (2005, p. 54-56), fundamentado na doutrina de Klaus Vogel, define a expressão justiça social inerente ao Estado Democrático de Direito como uma “justiça reformadora” que exige atuações do Estado em prol de uma transformação social. No mesmo sentido, entende Streck (2004, p. 164-165) que o Estado Democrático de Direito possui uma “função transformadora”, consubstanciada na realização de uma estrutura socioeconômica que proporcione efetiva igualdade entre os cidadãos.

Portanto, o Estado brasileiro, com o advento da Constituição Federal de 1988, passou a assumir uma tarefa modificadora do status quo da sociedade, com o dever de consolidar os diversos direitos nela assegurados que consubstanciam a noção de justiça social. O papel reformador do Estado atual implica ações políticas e estatais no sentido de tornarem efetivos aos cidadãos os direitos fundamentais individuais e sociais que lhes asseguram a dignidade humana.

O novo paradigma constitucional deve ser observado em todas as atuações estatais, inclusive, no âmbito do federalismo fiscal, no intuito de garantir o valor justiça social nas relações entre o Estado e os cidadãos. Assim, todo arranjo institucional (normas, procedimentos, costumes e instrumentos) que norteia o sistema tributário e financeiro brasileiro deve ser direcionado à concretização dos direitos e objetivos fundamentais da República Federativa brasileira.

Conti (2001) corrobora o exposto ao afirmar que um dos aspectos fundamentais do federalismo é a função de promover a equidade inter-regional, no intuito de proporcionar a igualdade entre os cidadãos brasileiros, pois entende o autor que o princípio da igualdade deve ser aplicado à organização do Estado na forma federativa para que possa proporcionar condições igualitárias entre os seus cidadãos.

Neste passo, o federalismo fiscal tradicional foi superado com o advento da atual Carta Política em favor de um federalismo financeiro cooperativo, haja vista os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro com o bem-estar social, a redução das desigualdades sociais e econômicas entre pessoas, grupos e regiões e a necessidade de planejamento integrado e harmonioso (BALEEIRO, 2008).

Todavia, em que pese a Carta Política de 1988 determinar o enfoque cooperativo ao federalismo fiscal, as lacunas institucionais permitem uma prática competitiva entre as entidades federativas, a exemplo da guerra fiscal entre os estados e entre os municípios, tão frequentes no Brasil. A disputa por chamar a atenção do mercado mediante incentivos fiscais vêm gerando desequilíbrios entre as entidades subnacionais. Logo, o modelo institucional do federalismo fiscal brasileiro é chamado por alguns, tais como Bachur (2005, p. 388), de “quase-cooperação”.

Vale lembrar que o Estado brasileiro historicamente oscilou entre períodos de forte centralização e outros de tendência à descentralização político-fiscal. Assim, segundo Bachur (2005), o federalismo fiscal brasileiro caracterizou-se por dual entre 1891 a 1930, onde não havia nenhuma cooperação entre a União e os governos subnacionais e forte centralização fiscal da União;no período de 1946 a 1964 houve uma tendência à descentralização fiscal; e depois retornou à forte centralização fiscal da União no período de 1964 a 1988; e mesmo após a Carta Política de 1988, cujo delineamento do pacto federativo obteve aspectos cooperativos e descentralizadores, este ainda está em fase de consolidação, haja vista a tentativa da União de manter a centralização do poder político-fiscal e a prática da guerra fiscal entre as entidades federativas (em especial a disputa do ICMS entre os estados e do ISS entre os municípios), as quais necessitam de maior debate, regulamentação e fiscalização para que seja sanada.

A Carta Política de 1988 manteve no atual federalismo um sistema fiscal (tributário e financeiro) misto, visto que possui mecanismos de repartição das fontes da receita e de repartição do produto da arrecadação, caracterizando-o por uma “discriminação rígida de rendas” (CONTI, 2001, p. 36-38).

A repartição das fontes da receita consiste nas regras que determinam as competências legislativas para criar tributos próprios às entidades descentralizadas (arts. 153 a 156, CF/88), ao passo que a discriminação pelo produto ocorre pela participação das entidades federativas na arrecadação de determinado tributo,

mediante transferências intergovernamentais ou fundos constitucionais (arts. 157 a 159, CF/88), as quais empregam um aspecto cooperativo ao pacto federativo.

Levando em conta a perspectiva do federalismo cooperativo no atual Estado Democrático de Direito brasileiro, os tributos e as transferências intergovernamentais passaram a ter na ordem jurídica vigente uma função social, tornando-se instrumentos para a concretização dos direitos e objetivos fundamentais da República Federativa, tais como, promover a igualdade, a solidariedade, o desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades regionais.

Assim, os tributos e as transferências intergovernamentais passam a ser compreendidos não apenas como veículos “técnico-contábeis”, mas como instrumentos para concretizar o valor constitucional da justiça social e, por conseguinte, para reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento no Estado brasileiro (BERCOVICI, 2003; PAMPLONA, 2007; 2008; 2010).