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Carvalho e Roazzi (2002), a fim de compreender o que pensam repentistas sobre as suas produções, realizaram entrevistas semiestruturadas com doze (12) cantadores. Os autores concluíram que os poetas apresentavam três concepções distintas acerca da origem da sua habilidade poética e sobre o processo de produção: o primeiro grupo de entrevistados enunciava concepções inatistas; o segundo demonstrava uma perspectiva behaviorista; e o terceiro voltava-se para uma visão interacionista. Contudo, eles constataram que nessas representações havia uma prevalência da ideia de “dom” nos depoimentos dos repentistas entrevistados. De certo, essa noção de dom, enquanto uma capacidade inata restrita a poucos privilegiados, também esteve presente nas falas de muitos dos poetas que entrevistamos. Por isso, baseando-nos neste estudo realizado por Carvalho e Roazzi (2002), revelamos, adiante, as concepções que os poetas tinham a respeito do início da elaboração dos textos poéticos e o processo de produção dos cordéis. Todavia, não adotamos, neste trabalho, as classificações utilizadas por Carvalho e Roazzi (2002).

4.5.1 As concepções dos poetas acerca da origem da sua habilidade poética e da produção

Durante muito tempo, prevaleceu o mito, dentre vários outros, de que a escrita seria um dom. Essa perspectiva se manteve (e ainda permanece) intacta no imaginário de inúmeras pessoas e, até mesmo, de escritores experientes. Ao perguntarmos aos depoentes sobre os seus primeiros contatos com o cordel, identificamos que três deles (Paulo Pereira, Diosman Avelino e Jailton Pereira) apresentavam concepções semelhantes sobre a origem da sua habilidade poética. À guisa de exemplificação, listamos alguns desses depoimentos:

Paulo Pereira: Porque se você tiver o dom, você vai se adequando, sabendo como faz a rima e as colocações todas do cordel.

Paulo Pereira: Por que o dom não é de estudo, o dom é lá de cima. Eu participei de um festival internacional e quando eu desci do palco, aí um grupo de senhores me chamaram e perguntaram o meu grau de estudo. Eu digo: “É terceira série primária”. E ele disse: “E a sua idade?” Eu digo: “63 anos”. Aí ele disse: “E o que você tem nessa mente?” Eu disse: “Sabedoria”. Quando eu faço meus trabalhos nas escolas é o que o pessoal comenta logo. Dizem: “Olhe, a gente ensina isso e isso, mas o que o Paulo faz a gente não sabe fazer”. É porque não teve o dom.

Paulo Pereira: O cordel tem que ter o dom de fazer. Se não tiver, não faz não. Não faz não, porque você tem que saber colocar as rimas todinhas.

Jailton Pereira: Alguns poetas defendem que você pode ser poeta querendo, mas eu acho que só quando tem dom, porque eu fazia isso sem saber e ninguém me ensinou a fazer [...].

Jailton Pereira: Eu não sei como aprendi. Eu sei que tentei e fiz. Aí, eu acho que é do dom da pessoa [...].

Diosman Avelino: O que eu conheço é só a inspiração que Deus dá [...]. Diosman Avelino: [...] Acho que foi a coisa melhor que Deus me deu foi a de fazer poesia, porque às vezes você tá com raiva, aí faz um verso, faz um poema.

As justificativas para estes entrevistados terem se tornado poetas eram atribuídas ao dom e à inspiração divina. No entanto, é preciso reconhecer que só aprendemos a produzir textos quando produzimos, já que só passamos a dominar a escrita quando praticamos socialmente essa atividade. Por isso, Sautchuk (2009) mostra que esse discurso do dom revela-se insuficiente para descrever os aspectos que englobam a formação dos cantadores e, acrescentamos, de todos os poetas de modo geral. Todavia, segundo o autor, “não se pode recusá-lo como se fosse reles mistificação. Pois demandas e opiniões coletivas como a ideologia do dom têm papel constitutivo no campo no qual se definem as relações entre cantadores e ouvintes”39

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A maior parte dos poetas mencionou a questão do dom e alguns sinalizaram a experiência. Zé Guri, por exemplo, atribuía à observação a causa para o aprendizado: “Os cordéis, eu aprendi ouvindo os cordelistas logo primeiro”.

Salientamos, no entanto, que as perspectivas que estes entrevistados mantinham sobre como se tornaram cordelistas não necessariamente coincidiam com as concepções que apresentavam sobre o processo de produção. Paulo Pereira, ao ser perguntado sobre como aprendeu a fazer os cordéis, mencionou: “[...] Eu aprendi porque lia muito. Você lendo uma coisa muito, você vai aprender tudo”.

No tocante à aprendizagem do cordel, poetas como Paulo Pereira e J. Borges afirmavam que era “preciso ler muitos cordéis para se escrever bem o cordel”. Essa ideia, defendida por ambos os poetas, pressupunha que a leitura e a escrita estavam diretamente relacionadas, já que “ler muito” seria um pré-requisito para se “escrever bem”. Do mesmo modo, ressaltou Paulo Pereira:

Eu aprendi porque eu lia muito. Você lendo uma coisa muito você vai aprender tudo. Por que se você tiver o dom, você vai se adequando, sabendo como faz a rima e as colocações todas do cordel. Você vai aprendendo (Paulo Pereira).

Entretanto, é preciso considerar que a relação entre leitura e escrita, leitor e escritor não ocorre de maneira mecânica, embora a leitura constitua, de fato, uma fonte importante sobre “o que dizer” e “como dizer”: uma pessoa que lê muito não significa que, automaticamente, ela escreve bem. A fala de Borges nos ajuda a balizar tal afirmação:

[...] Em 2012 teve um movimento da Rede Globo chamado Travessia e lá na FENEART a Rede Globo fez um estande. Acho que dava uns três tamanhos dessa sala e tinha até elevador pra subir. Aí, me chamaram pra lá: “Olhe, o senhor vai lá pra exposição de cordel? Tem uns poetas por lá e mandaram lhe convidar pro senhor ver lá como é o movimento”. Aí, quando eu cheguei lá tinha um elevadorzinho. Eu subi. Era um negócio monstruoso, muito grande, muito organizado. Veio uma mulher toda “society” e disse: “Olhe, esse aqui é presidente, diretor, colaborador, escritor, poeta, cordelista... (e mais num sei o quê, num sei o quê)”. Aí ele: “Olhe um cordel meu aqui”. Eu li o primeiro verso e tinha a rima PENSAMENTO, com ALIMENTO e última rima era TEMPO. Eu disse: “Meu amigo, você acha que TEMPO rima com PENSAMENTO?” Ele disse: “Não rima não?” Eu disse: “Rima não, senhor. Pra melhor, eu tenho até nojo de ler uma escrita de cordel errada”. O cara tinha mais poder do que o Presidente da República. Aí, li o outro e disse: “Esse ainda está pior. Me diga, você sabe o que é uma rima positiva?” Ele disse: “Não!” Eu disse: “Então, por que você se mete a escrever? Você sabe o que é rima comparativa?” Ele disse: “Não!” “E a rima negativa?” Ele disse: “Também não”. Eu disse: “Você não sabe é de nada e seu cordel eu não leio, pode me pagar que eu não leio, porque eu me sinto ofendido quando eu pego um cordel todo errado como o que você escreve”. Aí, outro veio com um papel e disse: “Eu também sou cordelista”. Mas veio com o papel com uma linha desse tamanho e outra com outro tamanho. Eu disse: “Que abacaxi é esse aqui?” Eu disse: “O senhor sabe quantas sílabas tem um verso de cordel?” Ele disse: “Não”. Eu digo: “Não se meta a se escrever não que você não sabe de nada, rapaz”. É sete sílabas o verso positivo, mas de acordo com a frase, quando a frase é boa e a gente não quer perder, a gente escreve com oito e quando vai ler engole uma sílaba. “PARA”, tem canto que você pode escrever “PARA” isso e isso, mas tem canto que a pessoa não pode escrever “PARA”, aí bota “PRA” que aí morre, mata mais a sílaba. Tudo isso são pormenores do cordel: a rima comparativa, a rima positiva, a rima negativa. A rima negativa é a que não rima com nada. Por que tem gente que escreve e só obedece ao verso, a estrofe assim (seis linhas), mas não tem nenhuma rima. Essa rima comparativa é essa rima de CÉU e CHAPÉU, quer dizer essa é rima positiva, mas CORDEL é rima comparativa. Ela se compara com essa. Essa rima comparativa não é permitida no cordel. Até que os emboladores, violeiros, eles cantam porque é uma coisa que o vento leva e ninguém nem marca aquilo, mas escrevendo tem que se obedecer. Olhe, CEU, CHAPEU, REU, TETEU tudo é rima positiva. CORDEL, MENESTREL, SAMUEL, MEL tudo isso... CAPITAL, SENSACIONAL e PAU é também rima comparativa. Ela se compara, mas escrita está errada. Então, eu estive dizendo isso aí e a

mulher disse: “Tá vendo”. Eu disse: “Olhe moço, me perdoe, me desculpe, mas eu sou muito rigoroso. Eu não aceito o cordel errado não. Você lê muito cordel? Você não lê cordel para escrever”. Ele disse: “Não”. Eu disse: “Então é aí onde está o problema”. Você pode se formar, ser o maior poliglota do mundo, mas em cordel você tem que ler bem o cordel para ver como é escrito (J. Borges).

Entretanto, é importante considerarmos o movimento inverso (um bom escritor lê muito). O domínio de um gênero não garante o domínio de todos, porque cada gênero possui características que lhe são próprias. O acúmulo de conhecimentos, advindos das leituras ou através de outras experiências, facilita a aprendizagem, porém não elimina a necessidade de se conhecer as características do gênero que se deseja produzir.

5 ANÁLISE DOS RESULTADOS: OS CONHECIMENTOS DOS POETAS SOBRE O GÊNERO DISCURSIVO CORDEL

Abordar as características do cordel como gênero discursivo é uma tarefa complexa, pois envolve um considerável número de aspectos difíceis de distinguir, definir e classificar. Por isso mesmo, nosso propósito não é, e nem poderia ser, o de exaurir em poucas páginas toda a complexidade que envolve o cordel, visto que, ao que tudo indica, nem sempre a identificação de um gênero é clara ou facilmente delimitável, já que depende, segundo Marcuschi (2003a), da perspectiva teórica que assumimos e do modo como encaramos os fenômenos.

Evidentemente, existem muitas possibilidades teóricas de análise para a abordagem da questão. No entanto, nesta pesquisa, apoiamo-nos principalmente na visão bakhtiniana, por entendermos, assim como o autor, que a língua, enquanto manifestação da interação social entre as pessoas, materializa-se através das enunciações, também reconhecidas como gêneros discursivos (ou gêneros do discurso). Nas diferentes esferas de atividade humana, fazemos uso da linguagem, seja ela falada ou escrita, por meio de gêneros que, por sua vez, são caracterizados por seus aspectos sociocomunicativos, conteúdo temático, estrutura composicional e estilo verbal.

Essas dimensões que constituem os gêneros serviram-nos como categorias de análise dos dados. Contudo, decidimos não contemplar a análise dos aspectos estilísticos do cordel haja vista a necessidade de realizarmos um recorte, dada pelas limitações temporais de um trabalho de dissertação de mestrado.

Nesse sentido, apresentaremos, inicialmente, os dados relativos aos conhecimentos dos poetas acerca da dimensão sociodiscursiva do cordel (finalidade; suporte; autor; interlocutor; e objetivo). Em seguida, deter-nos-emos no exame das verbalizações dos depoentes sobre as características temáticas e composicionais do gênero. De antemão, destacamos que cada uma das categorias e subcategorias que perfazem esta análise não depende exclusivamente da sua natureza ou de sua forma própria, mas de sua relação com as outras.

5.1 Os conhecimentos verbalizados dos poetas sobre os aspectos sociodiscursivos do