• Nenhum resultado encontrado

5.1 Os conhecimentos verbalizados dos poetas sobre os aspectos

5.1.5 Conteúdo temático

Optamos por inserir o conteúdo temático nos aspectos sociodiscursivos do gênero por compreendermos que “o que se diz” está vinculado ao “para que” e “para quem se diz”. O conteúdo do dizer é, pois, influenciado pelas condições de produção discursiva (interlocutores; propósitos comunicativos; suporte). Ramos e Pinto (2015) declaram, com isso, que são de mais valia os estudos que se voltam às peculiaridades do cordel e às suas finalidades de comunicação do que aqueles que pretendem apenas apresentar um sistema de classificação temática deslocada do contexto de produção.

Por conseguinte, não buscamos apresentar uma listagem de temas presentes nas produções literárias dos poetas, pois reconhecemos que as temáticas são diversas e derivam, em geral, da vivência particular de cada autor. Por certo, essa questão da classificação temática no âmbito da literatura de cordel despertou o interesse de muitos pesquisadores ao longo dos anos. Entretanto, Santos (2007, p.32) tem advertido, com certo teor de denúncia,

que muitos desses estudos que procuram demostrar os temas recorrentes nos cordéis na realidade têm como pretensão “mostrar, exoticamente, que, apesar de o autor popular ser um homem simples, preocupou-se com temas os mais diversos, como se estivesse descobrindo o mundo e seus semelhantes, emergindo das trevas profundas da ignorância”. Ademais, os critérios utilizados para a classificação dos cordéis por “ciclos temáticos” são bastante imprecisos.

Propomo-nos, à vista disso, refletir sobre os conteúdos temáticos dos cordéis que se relacionam tanto com o nível sociodiscursivo quanto com o nível linguístico, sem a intenção de enumerar todos os temas. Ao tratarmos, nesta seção, sobre conteúdo temático, não estamos nos referindo ao assunto específico de um texto, “mas a um domínio de sentido de que se ocupa o gênero” (FIORIN, 2006, p 62). Tais proposições fizeram-nos perscrutar os seguintes questionamentos: “Que assuntos podem ser abordados em um cordel?”, “Qual o assunto desse cordel?” e “Você costuma realizar alguma pesquisa sobre o tema do cordel? Onde? Por quê?”.

Os poetas verbalizaram inúmeros temas que dificultaram qualquer tentativa de categorização. Desta feita, concordamos com Ramos e Pinto (2015, p.54) acerca de que as classificações do cordel orientadas pelo tema agem no nível do gênero onde mais vigorosamente atuam as forças de expansão, responsáveis pelas inovações, o que “torna praticamente impossível qualquer busca de classificação mais sedimentada e/ou definitiva”. Existe uma grande variedade de temas dos cordéis, como, aliás, já sublinharam estes autores e que foi reconhecida pelos próprios cordelistas, como ficou evidente neste extrato da entrevista:

Olhe, os meus temas são variados. Eu faço falando em floresta, em animais, o que aconteceu no dia-a-dia. É você querer fazer. Faço de quem leva gaia, de quem bota gaia, dos passarinhos, do rio Ipojuca, de amor, de brincadeira...[...] Você pode falar na fundação de uma escola, você pode falar numa feira, você pode falar numa vizinha ruim, qualquer tema você pode fazer cordel. Qualquer tema dá cordel. Você vai a uma viagem, gostou daquela viagem, aí você vai escrever um cordel sobre aquela viagem que você fez mostrando como aconteceu (o que você comeu, por onde você andou, onde você dormiu...). O cordel é uma leitura importante. Você tem um namorado, marido ou se separou, aí você pode fazer um cordel sobre separação. Tudo dá cordel. A questão é você saber a métrica, a rima e a oração, sem fugir daquele assunto (Paulo Pereira).

Todos os poetas (6) conseguiram identificar os temas dos seus cordéis rapidamente quando perguntamos “qual o assunto desse cordel?”. Os folhetos, em geral, abarcavam duas linguagens, a verbal e a visual, que permitia o acesso imediato, por parte do autor e leitor, do

tema do texto. Para melhor firmar o expresso, destacamos, a seguir, algumas falas consoantes este entendimento:

O assunto desse aqui é “A solidão da donzela e a precisão da viúva”, como tá no título. É solidão da donzela, porque ela só, né? A viúva sozinha também, já é parecida uma com a outra. A donzela mora mais o pai e tal, mas na base do marido ela é sozinha. No caso da viúva, ela pode estar com quem for, mas é sozinha também. Aí, eu bolei aqui uma história da solidão da moça e da precisão da viúva que são quase iguais (Zé Guri).

Pensa bem, se você...Veja aqui. Dá uma olhada pra o tema e pra essa capa, o que é que você imagina que é o maior trauma do Nordestino?... É a seca. É exatamente isso. Por isso, a importância da imagem. A imagem já retrata, né? (Diosman Avelino).

Posto isso, atestamos ainda que a escolha dos temas, por parte dos poetas, dependia da finalidade e dos objetivos que queriam alcançar, bem como do público-alvo que se visava atingir.

Tem vários segmentos na poesia, por exemplo, tem movimentos escolares em que os professores nos convidam para que a gente possa dar uma aula de poesia. É como se fosse uma aula meio show, que serve para mostrar como se fazer um cordel, mas também se escuta as poesias declamadas. Então, nesse público se tem professores e alunos. Os alunos, geralmente, na fase jovem e também tem os alunos do EJA. Ontem à noite, nós fizemos uma apresentação assim. E também tem encontros de poesia com cantadores de viola. Aí o público já é bem diferente. Não são estudantes, não são professores, mas são apologistas, que são aquelas pessoas que curtem e gostam da poesia. Ai é um público que, com certeza, os aplausos são garantidos. Os cordéis que faço e recito dependem do público. Pronto, ontem mesmo nós fomos para escola e lá eram estudantes e a professora de português que estava lá. Então, eu fiz um poema que fala da língua portuguesa e esse é o lugar ideal para recitar essa poesia. Como eu gosto muito de ler a bíblia, nós somos convidados a dar palestras em movimentos religiosos e nesses movimentos religiosos eu uso muito poesias religiosas que prende muito a atenção. [...] Aí, o poder da poesia é esse. É muito interessante, porque o poder da poesia desperta a curiosidade nas pessoas (Val Tabosa).

A abordagem de um tema requeria, do autor, o domínio das informações das quais iria tratar no texto. É relevante ressaltar que ainda que todos os poetas tenham declarado fazer algum tipo de pesquisa sobre os temas dos cordéis (nomes de pessoas, descrições de lugares e outros) com o objetivo de melhor conhecê-los, apenas os poetas mais escolarizados recorriam à internet para estes fins, já que o acesso à informação na internet é mais fácil.

Qualquer um. Qualquer assunto você pode falar dele. Agora, nem todo poeta pode falar de qualquer assunto. Aí é diferente. Tem que ter conhecimento dele. Se você me disse assim: “Me fale do computador”. O que é que vou dizer? Vou dizer que tem um monitor, tem um CPU e vou terminar por aí, porque eu não sei desmanchar um computador e nem montá-lo. Então, pra que você fale, você tem que conhecer. Então, pra fazer esse poema vou ter que estudar, vou ter que pesquisar, vou ter que... Por isso que eu digo que um poema você pode fazer com qualquer assunto, mas nem todo mundo pode fazer, porque tem que ter conhecimento. [...] Quando a gente pega um tema, às vezes, eu procuro na internet. Hoje, o livro a gente não usa mais, né? A internet está tão fácil. Por exemplo, eu participei de um concurso de literatura de cordel falando sobre o Nordeste. Então, eu pesquisei na internet os pontos principais, as culturas de cada estado do Nordeste. Então, eu não tinha conhecimento, mas a internet favorece muito. Aí, quando você tem a história, você pega os fatos e coloca a rima nos fatos. Tem também o estilo da poesia, né? (Val Tabosa). Seguidamente, perscrutamos os poetas sobre os cordéis contarem ou não uma história: “Todo cordel conta sempre uma história? Por quê?” e “Esse cordel conta uma história? (não sendo uma história, o que é esse cordel?)”.No Quadro 21, reunimos as resposta dos poetas para esses questionamentos.

Quadro 21 – Caráter narrativo ou não dos cordéis

Nomes dos poetas Caráter dos cordéis J. Borges Paulo Pereira Zé Guri Val Tabosa Diosman Avelino Jailton Pereira Total Os cordéis não, necessariamente, se tratam de histórias. X X X X X 5 Os cordéis sempre contam histórias X 1 Fonte: A Autora (2017)

Dois tipos de respostas foram dados ao primeiro questionamento, a saber: 1) entendia que havia cordéis que se tratavam de histórias e outros que não e 2) compreendia que todos os cordéis referiam-se a histórias. Para quase todos os cordelistas, com exceção de Paulo Pereira, no cordel não vigorava apenas a narrativa, pois existiam outras formas de expressão que escapam a essa estrutura, a exemplo das pelejas e abecês.

Às vezes não é uma história. Eles vão informando em algumas estrofes, mas sem ter uma história definida com começo, meio e fim. Vai falando das coisas, mas não tem sequência. Então, não precisa ser uma história até o fim. Pronto, posso dar um exemplo. Pode ser um cordel sobre a feira, mas eu posso falar do ambulante. Não é obrigado contar a história da feira, assim. É tipo uma reportagem. Uma reportagem nem sempre conta uma história, às vezes ela apenas denuncia... Sobre a questão crítica, o cordel

pode ser também pra denunciar algo. [...] Acho que se encaixa aí o cordel “Nosso Brasil é assim”. Aí, é uma parceria minha com Dorge.

No Brasil que eu vejo todo dia Tem sem terra, conflito e tem ladrão

Crianças sem ter educação Que padecem com fome e agonia

Tem mendigo em toda periferia Mas tem gente ricaça bem contente

Que pro pobre só olha indiferente Duvidando da sua honestidade Pois são poucos que tem capacidade

De um gesto bondoso e consciente Tem um povo que luta bravamente Que trabalha no sol, vai pro roçado Mas tem sempre um bandido deputado

Que não está nem aí pra essa gente Esse é bom e muito competente Quando é pra roubar nosso povão

Emprego só dá ao seu irmão Ele é rei se tratando de egoísmo

Sabe bem praticar o nepotismo E que se dane o futuro da nação

No meu modo de ver, eu não estou contando uma história, eu estou fazendo uma análise do contexto e dando umas agulhadas necessárias. Eu acho que pode ser dessa forma. Pode-se fazer uma análise, pode criticar e não só contar histórias. O que são histórias? Geralmente, gracejo, porque começa com um personagem e conta até o fim o que foi que aconteceu. Geralmente é assim. Aí, tem as histórias reais com as pitadas inventadas e tem as que são inventadas mesmo, só pra fazer graça mesmo. O cordel em si é gracioso, mas não é necessário que ele seja uma história verídica. O poeta pode usar e abusar (Jailton Pereira).

A narração é um tipo de texto que apresenta uma sequência de fatos, reais ou fictícios, nos quais os personagens atuam em um determinado tempo e espaço. Detendo-se, também, a essa questão, Santos (2009) explica que, embora a narratividade seja predominante nessa literatura, ela é não é determinante para classificar se um texto é ou não cordel. Esse entendimento parece se diferenciar do relato de Paulo Pereira, que pode não dominar suficientemente o termo metalinguístico “história”. O próprio exemplo que ele fornece (do pai) não remete a uma história.

E num é contando aquilo que aconteceu? É uma história. O cordel é contando o que acontece, uma história. Digamos, você tem seu pai, você ama o seu pai, aí pode fazer um cordel privilegiando o seu pai. Aí, você vai fazer um cordel só falando em seu pai, no amor que ele lhe dedica, que dedica à família, dizendo: meu pai é assim... , meu pai foi assim... Aí faz o cordel (Paulo Pereira).

Partimos do entendimento de que um texto narrativo pode conter elementos da descrição ou argumentação, mas sem perder as características predominantes da narrativa. Galvão (2006), ao analisar 8 (oito) folhetos, evidenciou que a maioria das histórias tinha características de narrativa e, mesmo aqueles que não contavam uma história, dedicavam grande parte do texto à narração. Eram poucos os casos em que as estrofes apresentavam descrição ou análise de um fato.

Por fim, não podemos desconsiderar que no cordel há, em certa medida, uma relação de dependência entre forma e conteúdo temático. Assim, forma e conteúdo são elementos interdependentes, embora cada um desses mantenha características próprias. Focaremos nos aspectos composicionais do gênero na seção seguinte.

5.2 Os conhecimentos verbalizados pelos poetas sobre os aspectos composicionais do