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2.2 Consciência metatextual: reflexão sobre diferentes dimensões do

2.2.2 Consciência metalinguística

Após essas considerações iniciais sobre o termo consciência e as contribuições do Modelo de Redescrição Representacional para a superação de dicotomias como implícito/explícito e consciente/ não consciente, julgamos ser oportuno proceder à reflexão sobre o que seria a consciência metalinguística. Para isso, comecemos tomando como objeto de reflexão o prefixo “meta” (que tem origem no grego e cujo sentido é de mudança e transformação). Trata-se de uma questão também abordada por Arruda (2008, p.13), ao afirmar que este prefixo serve “para indicar uma atividade cognitiva que ocorre sobre processos e conteúdos cognitivos”. Quando anteposto a um nome em particular - como, por exemplo, em “metalinguístico” ou “metatextual” -, o prefixo meta significa voltar-se para

19 A autora busca distinguir o domínio do módulo. O primeiro é um conjunto de representações de uma área de conhecimento com diferentes microdomínios. O segundo corresponde à unidade de processamento da informação.

20 A atividade epilinguística envolve, segundo Gombert (1992), comportamentos semelhantes aos comportamentos metalinguísticos, mas que não são controlados conscientemente pelos sujeitos.

aquilo que é denotado pelo nome. Sendo assim, quando o termo metalinguístico é utilizado, expressa um retorno para o linguístico (GOMBERT, 2013).

Entretanto, Poersch (1999, p.515) considera que a partícula meta significa consciência. Dessa maneira, e segundo esse autor, o termo consciência metalinguística seria inapropriado, dado o seu caráter redundante. Logo, a consciência estaria presente tanto no próprio termo consciência quanto na palavra metalinguística. Por conseguinte, a expressão “consciência metalinguística” traria, portanto, o mesmo significado duas vezes. Por isso, Poersch (1999) sugeriu que o termo consciência metalinguística fosse evitado e substituído pela expressão metalinguagem ou consciência linguística.

Embora o uso do termo “consciência linguística” talvez seja mais apropriado que o de “consciência metalinguística”, optamos por esse último, tendo em vista sua ampla utilização21. Por outro lado, diferentemente do autor supracitado, consideramos que substituir o termo consciência metalinguística por metalinguagem parece-nos inviável, porque esse último termo tem o sentido de linguagem que é usada para se referir à própria linguagem, não contemplando, portanto, o processo de reflexão ou de análise sobre ela.

Nesse debate, é, igualmente, importante declarar, segundo Morais e outros (2010), citando Gombert (2003), que o prefixo meta tem significado diferente para a linguística e a psicologia. Na perspectiva linguística, a metalinguística é compreendida como autorreferenciação da língua (metalinguagem), isto é, o foco de interesse é dirigido para o exame da produção verbal, cujo propósito é o de observar a utilização da linguagem para referir-se a ela mesma. Do ponto de vista da psicologia, a partícula meta, no termo metalinguístico, é usada, sobretudo, no que diz respeito ao conhecimento do sujeito em relação ao seu próprio conhecimento. Apesar disso, para Morais e outros (2010), a psicolinguística tem usado esse termo em ambos os sentidos: no sentindo de metalinguagem enquanto autorreferenciação da língua e, no sentido mais amplo, de refletir e examinar a linguagem a partir de um monitoramento intencional e deliberado. Nessa direção, essa atividade requer, por parte do indivíduo, um distanciamento em relação ao seu uso, para aproximar-se das suas propriedades.

Em síntese, é preciso distinguir esses dois termos a fim de evitar certos equívocos conceituais, já que alguns estudiosos têm tratado “consciência metalinguística” e “metalinguagem” como expressões equivalentes. Como já deixamos antever, a consciência

21 Apesar disso, tem-se observado entre pesquisadores, nacionais e internacionais, a variação quanto ao uso do prefixo meta, o qual ora é excluído, ora é acrescentado. Por exemplo, Soares (2016), no livro Alfabetização: a

questão dos métodos, agrega para algumas habilidades a partícula meta (metatextual), mas em outras já não o

metalinguística refere-se à capacidade do sujeito de refletir ou de manipular a língua de modo consciente. Já a metalinguagem concerne ao uso da linguagem para referir-se à própria linguagem. Como elucida Morais (no prelo), a partir dos anos 1980, o termo “metalinguístico” passou a ter, no Brasil, e mais precisamente no campo da linguística, um significado bastante limitado, já que “metalinguagem” e “metalinguístico” passaram a ser sinônimos do ensino tradicional de nomenclaturas gramaticais.

No que concerne à atividade metalinguística, Teberosky (1992) aponta que essa atividade pressupõe, para além do uso da linguagem, o desenvolvimento de certa consciência e atenção para decidir “como” e “quando” é apropriado analisar seus componentes e refletir sobre as suas combinações. A autora concebe, ainda, que as atividades metalinguísticas podem ser divididas em dois grupos: (1) as que analisam as expressões em si, as suas unidades, bem como o modo como se referem ao universo extralinguístico (denominadas de atividades metalinguísticas estruturais) e (2) as que refletem sobre a utilização das expressões em contextos comunicativos: sobre a propriedade com relação aos interlocutores, às finalidades do discurso e ao contexto da situação (nomeadas de atividades metalinguísticas pragmáticas).

Nos últimos vinte anos, diversas pesquisas também têm revelado que o desenvolvimento da consciência metalinguística é fulcral no desempenho das crianças no que se refere à aprendizagem da leitura e da escrita. Para alguns estudiosos, ela se encontraria, inclusive, diretamente vinculada com o sucesso escolar (ROAZZI; CARVALHO, 1995). Do mesmo modo, estudos têm apontado o inverso: o domínio da leitura e da escrita também teria um papel fundamental na aquisição das competências metalinguísticas (GOMBERT, 2013).

Para Stumpf (2013), os estudos que relacionam a consciência metalinguística à aprendizagem da leitura podem ser distribuídos em três correntes de pensamento: (1) aquelas em que a consciência metalinguística é pré-requisito para a aprendizagem da leitura; (2) a que entende que seria o processo de escolarização e, portanto, a aprendizagem da leitura que garantiria o aumento da consciência metalinguística; e (3) os pesquisadores que defendem a existência de uma “via de mão dupla”, já que certo grau de consciência metalinguística é necessário antes da aprendizagem da leitura, mas a própria capacidade de ler, por sua vez, aumentaria a consciência da língua.

Entretanto, muitos desses estudos não evidenciam quais habilidades metalinguísticas seriam pré-requisito para a aprendizagem da leitura e quais seriam consequência da capacidade metalinguística. O que as abordagens teóricas mais recentes – que constituem o

terceiro grupo de pesquisadores –, têm defendido é que a relação entre a consciência metalinguística e a alfabetização é de influência mútua. De fato, muitas evidências apresentadas mostram que é necessário algum grau de consciência metalinguística para aprender a ler e escrever e que, concomitantemente, a alfabetização tem um papel fundamental no desenvolvimento dessa habilidade (GOMBERT, 2003).

É preciso ainda lembrar, a partir de uma perspectiva histórica e antropológica, que as disposições metalinguísticas, cuja gênese é particularmente vinculada à relação com a linguagem (mais reflexiva, distanciada, metalinguística) que a escrita instaurou, não são apenas disposições cognitivas, mas também sócio-políticas (LAHIRE, 1994). Segundo esse autor, a origem das dificuldades das crianças dos meios populares estaria diretamente relacionada à natureza da cultura escolar, que pressupõe o desenvolvimento de uma capacidade socialmente instituída que aquelas crianças muitas vezes não dispõem: a de adotar uma relação distanciada e reflexiva com a linguagem, dissociando-a dos sentidos que ela produz. Como indica o referido autor,

Sabe-se hoje, pela infinidade de trabalhos internacionais consagrados a essas questões, que as famílias dotadas de recursos culturais mandam para a escola crianças já portadoras de formas bem constituídas de habilidades de linguagem (particularmente capacidades metalinguísticas), de conhecimentos culturais diversificados e inclusive de competências escolares não desprezíveis (LAHIRE, 2012, n.p.).

Considerando as discussões anteriormente desenvolvidas, refletiremos, a seguir, sobre as diferentes dimensões da consciência metalinguística, que constitui um amplo construto que envolve habilidades de reflexão e de manipulação consciente de diferentes estratos da língua, como os fonológicos, morfológicos, sintáticos, textuais e pragmáticos.