• Nenhum resultado encontrado

1.3. As imagens e suas inscrições

1.3.1 As descrições em transe

Articulando este conjunto de relações acerca da semelhança e da representação aos temas deste trabalho, veremos que, no que concerne às superfícies de registro, o cinema reproduziu os mecanismos do mundo analógico da cultura ocidental no seio do regime orgânico das imagens, tal como descreveu Gilles Deleuze (2006). As duas grandes figuras do registro no cinema são a descrição e a narração. Deleuze reconhece, em Cinema II, A

imagem-tempo (2006) que as formas do registro estão circunscritas a dois grandes regimes da

imagem, chamados por ele de orgânico e cristalino.

No regime orgânico, a descrição é dita cinética e produz relações espaciais de semelhança e representação, tal como aquelas descritas por Foucault (2000). Deleuze (2006) diz que “chamaremos orgânica uma descrição que supõe a independência do seu objeto” (p. 165), elas são plenamente extensivas, com coordenadas espaço-temporais bem delimitadas. Isso porque elas descrevem lugares onde se passarão as situações sensoriais motrizes. Os objetos descritos pela câmera representam uma realidade supostamente preexistente, analógica.

Por outro lado, as descrições cristalinas são aquelas válidas para o objeto, que os substituem, os criam ao mesmo tempo em que os apagam e não param de “dar lugar a outras

descrições” (DELEUZE, 2006, p. 165) que constituem o único objeto decomposto, multiplicado. Tais descrições apontam para situações puramente ópticas e sonoras, distintas de seu prolongamento motor: “um cinema de vidente, não actante” (DELEUZE, 2006, p. 165). A segunda componente do transe diz respeito a esse modelo descritivo das imagens segundo suas impermanências: são descrições de objetos ruinosos, instáveis.

Há uma segunda variável na descrição que ultrapassa a questão dos objetos, ela se refere ao nível de real ao qual a descrição remete. Deleuze (2006) diz que na descrição orgânica, analógica, “o real suposto reconhece-se na sua continuidade, mesmo interrompida, nos raccords, que a restabelecem, nas leis que determinam as sucessões, as simultaneidades, as permanências” (p. 166). O regime analógico das imagens é, portanto, representacional, de relações localizáveis, de encadeamentos atuais e conexões causais e lógicas. Um regime apolíneo da imagem, como diriam os platônicos e seus continuadores. Dentro desta lógica, como vimos na breve genealogia apresentada por Foucault (2000), há um real pressuposto, o mundo que duplica a si mesmo, mas há também a lembrança, os sonhos, o imaginário, mesmo que estes estejam dispostos no regime como o negativo dionisíaco do harmônico, o imaginário assumindo a forma do descontínuo, sendo “um segundo polo da existência que se definirá pela pura aparição à consciência” (DELEUZE, 2006, p. 166). As imagens do imaginário, do sonho e talvez de um suposto transe, dentro das descrições orgânicas, se apresentariam à consciência atualizadas sob a forma das necessidades do real pressuposto e, mesmo quando operassem crises neste real, seriam vistas como um negativo a ser superado.

Nas descrições em transe, o atual é o que é cortado dos seus encadeamentos motores, sendo o real desanalogisado. O virtual, por sua vez, é liberto dos presentes atuais e salta à imagem como uma existência que vale por si mesma. A descrição em transe é partícipe da forma elementar das imagens-cristal, da coexistência de uma imagem-atual e de sua imagem virtual, até a indiscernibilidade entre ambas.

Figura 08 - Frames de Amazonas, Amazonas (1966).

Os frames acima, extraídos de Amazonas, Amazonas (1966) nos evidenciam um tipo de descrição em transe que submete as imagens a uma constituição muito específica de suas formas, são imagens atuais que trazem, para dentro de seu presente, partes de um passado. Há em toda a filmografia de Glauber Rocha a configuração dessas espacialidades em transe, vistas na constituição territorial de uma aglutinação improvável de matérias e materiais. Nas ruínas que se sucedem como rastros de uma civilização que ainda nem chegou e já se desfez, na sobreimpressão do novo no velho. Na comunicação transversal entre o luxo e a miséria. A apresentação do teatro em Amazonas, Amazonas (1966) constitui um exemplo bem elaborado do que estamos dizendo.

Figura 09 - Frames de Amazonas, Amazonas (1966)

Sobre as imagens do teatro que mistura luxo e decadência, o narrador do filme, um suposto conquistador Espanhol do século XVI, descreve os processos de extração e comercialização da borracha amazônica enquanto a câmera passeia pelas imponentes pilastras do teatro. A suntuosidade da construção vai sendo contrastada com a narração que descreve os efeitos colaterais da extração na formação de pobreza e miséria do povo, criando uma

sobreposição que tornam díspares o visível e o enunciável. Diz o narrador sobrepondo o passeio da câmera no teatro:

A ambição que gerou a conquista. A conquista que gerou o extrativismo onde os caudilhos fixaram suas leis homicidas. O extrativismo que gerou as súbitas fortunas de aventureiros dos quatro cantos. Era o Eldorado. O esplendor de uma selvagem nobreza dos trópicos, cujos cenários e costumes foram importados de Inglaterra, França e Itália. (ROCHA, 1966)

Figura 10 - Frames de Pátio - espaço em transe

As imagens acima foram retiradas de Pátio (1959). Este é claramente um filme sobre o espaço, um espaço cujos contornos são indiscerníveis. Não há fora do pátio, pois é ele o próprio fora, uma espacialidade em transe que acaba por engendrar também novas temporalidades da imagem. O conflito entre tipos de espacialidades fica demarcado no chão do pátio, filmado de cima, inscrito sobre coordenadas euclidianas e em relação permanente com o espaço que excede suas linhas, um horizonte sem fim, uma textura selvagem e disforme que impede que vejamos onde o pátio se situa.

O espaço em transe recorta um espaço que é seu, uma parte do acontecimento fílmico que não se reduz a um estado de coisas, como diz Deleuze sobre os espaços quaisquer, o “mistério de um presente recomeçado” (DELEUZE, 2009, p. 168), ritualístico. Assim são os espaços em transe, lugares cujas coordenadas não se confundem com meios históricos, pois são espaços cuja lei é a da fragmentação. Sobre estes entre-lugares que a imagem em transe estabiliza, Deleuze diz, referindo-se aos espaços cristalinos, que “é como se o espírito esbarrasse em cada parte como num ângulo fechado” (DELEUZE, 2009, p. 168), em Pátio (1959), a montagem remete sempre à dissolução de suas linhas espaço-temporais,

constituindo um entre-espaço em transe, um espaço que exprime não mais uma potencialidade pura, mas uma impossibilidade, como um espaço impossível.