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As imagens as quais nos dedicamos nesta tese se situam em um regime de signos ao qual Gilles Deleuze chamou de imagens-tempo (DELEUZE, 2006). Em seus livros sobre cinema, o autor submete as imagens a uma taxionomia que se circunscreve a dois grandes regimes de signos chamados por ele de imagem- movimento e imagem-tempo.

A imagem-movimento, situada historicamente entre a invenção da linguagem cinematográfica e a profusão do cinema político do pré-guerra, concebe o mundo como uma totalidade construída a partir de cortes racionais entre os planos, segundo ordens de montagem que são responsáveis por engendrar “esquemas sensório-motores” capazes de induzir a imagens indiretas do tempo, produzindo relações de continuidade entre ações e reações que se passam em meios históricos e supõem relações de organicidade entre os conjuntos e o todo, sendo este todo, conforme Bellour (2004), “ao mesmo tempo todo apreendido pela imagem e o todo possível do mundo” (p. 235).

Tal imagem tem por função reproduzir um modo de relação entre o homem e o mundo que se cristalizou, como vimos, desde o platonismo, engendrando o que Deleuze chamou de uma “imagem clássica do pensamento”. Tal esquema obedece às lógicas do movimento, que submete o tempo às suas leis, portanto, dentro do regime do movimento, tudo o que existe é regido pelas leis da percepção, da ação, da pulsão, da afecção e da relação (DELEUZE, 2009). Assim, a história do homem ocidental, vista no interior do cinema clássico, pode ser medida pela variação deste esquema, nas ligações entre o homem e o

mundo que são expressas pelo encadeamento de imagens atuais segundo uma dessas possibilidades (VERAS, 2010).

Há, deste modo, um movimento para cada lei, sendo o movimento da ação responsável pela produção de comportamentos, o movimento da pulsão responsável pela produção de pulsões elementares do corpo e o movimento expressivo responsável pela produção de afetos. As ações e os comportamentos se passam em meios sócio-históricos, geograficamente determinados, as pulsões se passam nos chamados meios derivados e os afetos se passam nos espaços quaisquer. Estes territórios abrigam todos os modos de atuação no interior do tempo cronológico, aquele que produz a naturalização do movimento e a lógica representacional que funda o modelo perceptivo ainda vigente nas sociedades ocidentais, produzindo uma impressão de realidade estável e acessível à contemplação. Tal modelo reproduz o modo como o cinema é visto (imagem-percepção), sentido (imagem-afecção) e o que nele age (imagem-ação) em sua relação com o mundo.

O esquema sensório-motor, deste modo, tem seu funcionamento a partir de uma lógica que percorre um caminho que se inicia na percepção, executada pelo aparelho sensório, e chega até a ação, realizada pelo aparelho motor. A percepção recebe o movimento e o prolonga até o corpo, exprimindo uma ação. Entretanto, entre ambas, há um intervalo (o cérebro) e é neste intervalo que se alojam as afecções. Quando o movimento recebido não se prolonga até o espaço da ação, o esquema sensório-motor é quebrado e novos tipos de espaço-tempo são criados. No Cinema, quando o que se exprime nas imagens é - a) uma situação-limite: medo extremo, violência intolerável, iminência da morte, b) um estado alterado de consciência: transes, hipnose, amnésia ou c) um estado onírico: sonhos, dormências - a ligação sensório-motora é suspensa, restando à imagem-atual um encadeamento que não pode mais se prolongar em uma situação-motriz, seja uma ação, uma percepção, uma lembrança, um afeto. A partir deste ponto, o que entra em jogo é um conjunto de virtualidades, como imagens flutuantes, desencadeadas e disjuntivas. Assim, o cinema das imagens-tempo se erige sob a regência dos movimentos disruptivos, dos cortes irracionais (DELEUZE, 2006) que, segundo Bellour (2004):

Supõe um novo intervalo, não determinável, entre os planos, [onde] as ações não são mais determinadas em função de um sistema estímulo-resposta, mas são submetidas a um fenômeno geral de imobilização e de vidência, que levam a um acesso direto ao tempo, a uma imagem direta do tempo. (p. 235) A ruptura que se dá entre os regimes de imagem, nos livros de Deleuze, é coincidente a um momento singular e de graves consequências na história recente, a Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, tal ruptura, ao quebrar o elo sensório-motor das imagens-

movimento, engendra situações puras, porque as ações dentro da história levam a insuficiência dos atos, como respostas inadequadas.

Rancière (2001) lança, a partir desta coincidência, o que considera um problema a ser resolvido, pois tal ruptura se torna obscura a partir da observação de dois pontos: primeiro, como pensar “a relação entre um corte interno à arte das imagens e as rupturas que afetam a história geral?” (p. 03). Em segundo lugar, “como reconhecer, em seguida, dentro do concreto das obras as marcas desse corte entre duas eras da imagem e dois tipos de imagem?” (p. 03).

A resposta não é simples, mas passa fundamentalmente pelo equívoco do pensamento modernista, que enxerga dentro das manifestações da arte uma espécie de espelhamento de sua essência, “a novidade própria ao ‘moderno’ consiste então em que o próprio da arte, sua essência já ativa em suas manifestações anteriores, conquista sua figura autônoma ao romper os limites da mimese que a enquadra” (RANCIÈRE, 2001, p. 03). A ruptura, neste cenário de coincidência, apareceria quase como condição necessária à modernidade das imagens. Para alguns teóricos como Bazin, por exemplo, Welles e Rossellini teriam apenas cumprido suas funções realistas, acompanhando a contemporaneidade de sua própria condição histórica.

É neste ponto que Rancière lança mão do argumento que talvez mais interesse a esta tese, a de que a partilha reconhecida por Deleuze na passagem entre os regimes, embora não escape “do círculo geral da teoria modernista” (RANCIÈRE, 2001, p. 03), faz insurgir, a partir das relações entre a classificação das imagens e historicidade, da ruptura um problema bem mais radical:

Com efeito, não se trata mais simplesmente, em Deleuze, de se adequar uma história da arte a uma história geral. Porque nele não há propriamente como falar nem de história da arte nem de história geral. Para ele, toda história é “história natural”. A “passagem” de um tipo de imagem a outro é suspensa num episódio teórico, a “ruptura do elo sensório-motor” definido no interior de uma história natural das imagens, que é, em seu princípio, ontológica e cosmológica. (RANCIÈRE, 2001, p. 03)

A discussão trazida por Rancière é relevante não apenas enquanto debate teórico acerca das imagens, mas também como questão metodológica, pois os regimes de imagem são, antes de serem oposições, regimes complementares da imagem. Trata-se de instaurar não uma ruptura entre tipos distintos sistemas de signos, mas de constituir diferentes pontos de vista sobre as mesmas imagens.

A questão ainda não resolvida por esta perspectiva é a que se coloca a partir da constatação de uma coincidência entre a dita história natural, as novas formas de uma arte e o corte sincrônico de um acontecimento como uma guerra mundial. A resposta formulada por

Rancière vai direto ao pensamento de uma ontologia das imagens, mas o próprio Deleuze já a havia formulado, ainda no começo dos livros sobre cinema, quando alerta que seu trabalho não deve ser visto nos termos de uma “história do cinema”, mas sim o de uma classificação dos signos.

Rancière (2001) pergunta, então, o que seria uma imagem? “não é nem o que vemos nem um duplo das coisas formado por nosso espírito” (p. 04). Compreender o âmago do problema entre as imagens e a história é, deste modo, embrenhar-se na própria dissolução entre as imagens e as coisas, pois “as imagens não são o duplo das coisas” (p. 04), elas são as próprias coisas, “o conjunto de tudo o que aparece” (DELEUZE, 2006, p. 45). As imagens são, deste modo, propriamente as coisas do mundo, o cinema, por sua vez, é o próprio mundo.

2 TERRITORIALIDADES DO TRANSE